domingo, 27 de junho de 2010

UM AMOR IMPOSSÍVEL (ROMANCE)

Candidamente a chuva caía. A tarde parecia um velhinho sem pressa. Alguma vez passava um transeunte, sempre despreocupado, algum pensando bobagens, outro relembrando um fato a pouco acontecido, e, outro, ainda, sem pensar em nada, apenas andando, lentamente, como aquela tarde de dezembro.
Uma velhinha gorducha sentada em um banco de cimento, bem debaixo de uma grande árvore com copas recheadas de pingos da chuva, esses que sempre ameaçavam, mas, quase sempre, ficavam estagnados sobre as folhas compridas que mais pareciam uma velha canoa indígena toda pintada de verde; um velho careca, eternamente sentado em seu banquinho de madeira, sempre a reclamar da vida, ora do calor ora do frio, sempre relembrando o seu tempo “quando tudo era bem melhor que hoje” e um sujeito gordo, sem qualquer perspectiva, bebendo as suas bebidas cheias de álcool, e que um dia talvez o matariam, fumando seus cigarros repletos de nicotina, que sempre o tentavam findar...
Da sua janela, toda envernizada, coberta por uma enorme grade de ferro, o que deixava toda a casa com um ar de prisão, era aquela a paisagem que o escritor vislumbrava. Fosse ele um pintor de artes plásticas e gozaria naquele recanto todas as suas obras de arte. Naquela tarde monótona a visão era somente aquela, mas, em outros instantes, feito flashes fotográficos, era possível observar pássaros voando baixo, como se passeassem tranquilamente pela cidade, pousarem na grande árvore, como se quisessem, de verdade, posar para uma fotografia; tipos estranhos que todos os dias passavam por ali e deixavam um pouco de sua essência para que o escritor pudesse recriá-los nas páginas de um livro que, por ironia do destino, ou teimosia de alguma inspiração, teimava em manter-se recolhida dentro da fonte de criação.
Todo escritor recebe essa alcunha por ter escrito um livro, qualquer obra que seja, desde um simples livro de crônicas até mesmo um livro de contos, poesias ou um Romance; deve o mesmo ter simplesmente publicado um livro. Aquele, porém nunca escrevera qualquer livro em sua vida. Minto, escrevera sim, contudo, nunca o publicara. Certa feita, aquele indivíduo escrevera um Romance, pequeno, fraco, sem qualquer perspectiva de ascensão comercial ou literária, escrevera somente pelo prazer de colocar suas idéias numa folha de papel. Levara seis meses para escrever o Romance e, após terminá-lo, sem ter coragem de lê-lo, deu-lhe a um amigo para que o lesse e desse a sua opinião. Nunca obtivera o veredicto do primeiro e único leitor, contudo, desde então passou a ser conhecido na cidade como “O escritor”, o primeiro indivíduo do lugar a escrever um livro, ainda que sem qualquer publicação. Não é possível distinguir se nessa alcunha existe um quê de ironia ou verdade, afinal nunca se soube se o livro era bom ou ruim, na concepção do seu amigo leitor.
O escritor tinha um nome: Augusto Luís de Castro; morava solitariamente numa enorme casa, era professor de Literatura Brasileira e conhecia todos os grandes escritores nacionais, desde José de Alencar até os escritores contemporâneos, como Fábio Gonçalves, um poeta regional; Moacyr Scliar e Fernando Sabino. Conhecia toda a história literária do país e sempre trazia em mãos um livro de bolso para que pudesse exercer o prazer da leitura.
Apesar de todas as suas leituras e as imaginações que as mesmas lhe propiciavam, Augusto era um homem triste e solitário. Não era velho, tinha pouco mais de quarenta anos, mas era uma pessoa desgostosa, um tipo que a vida e a solidão trataram de moldar com toda a rabugice e manias dos mais idosos. Augusto era, assim, um velho homem de meia idade. Quase não saía de casa, fazendo-o somente nos casos em que era inevitável a sua perambulagem pela rua; não gostava de cumprimentar os vizinhos ou quem quer que lhe dirigisse um Bom-dia e, se o fazia, era simplesmente pela educação que tinha e pela qual muito prezava; não tinha qualquer apreço pelas crianças, sendo que as suportava somente por causa dos ossos do ofício.
Augusto Luís era um homem sem qualquer perspectiva de felicidade. Não gostava de nada que fazia, apenas sentia prazer com suas infindáveis leituras, desde sua adolescência não conhecia mais o sabor dengoso de uma boca de mulher, nunca havia transado em sua vida, não possuía uma vida social, era, de fato, um animal, um ser estranho em meio às tantas vidas que o cercavam naquela cidade. Aquela seria para ele somente mais uma tarde monótona, com uma chuvinha mansa, a velha gorducha no banco de cimento, o velho careca eternamente reclamando da vida e o homem gordo sempre bebendo e fumando, sem qualquer perspectiva para o futuro. Enquanto, da sua janela protegida por enormes grades de ferro, olhava a monótona cena decembral, Augusto Luís não percebeu, mas uma simples sombrinha que subisse a sua rua haveria de mudar toda a sua vida, se ele assim o desejasse.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

SÁ LÚCIA


SÁ LÚCIA

Não sei de onde ela é, nem como apareceu na minha vida. Eu era ainda bem novo quando ela surgiu com sua negritude branca e sua incomparável inocência. Nem a própria sabia sua idade, dizia ter uns sessenta e dezesseis e cinco anos, mais ou menos.
Sempre vinha com seus passinhos lentos, arrastando os sofrimentos que os anos lhe incubiram de suportar; sentava-se numa cadeira velha de madeira – que parecia sempre estar à sua espera, naquele mesmo lugar – começava a puxar um assunto qualquer com minha mãe – assuntos desconexos – e, como que por um encanto, adormecia.
A sua casa era pequenina, não tinha reboco, não tinha muro, apenas uma cerca de arame farpado todo cheio de ferrugem e sacos plásticos e lixo... A casa de Sá Lúcia era o seu retrato – simples e sem luz.
Durante todo o dia perambulava pelas ruas catando sacos plásticos, gravetos e todo o lixo que achasse necessário. Não tinha filhos; dizia já tê-los possuído, não lhe restando mais nenhum dentre tantos.
Nos meses de junho e julho era um sufoco. A velha comprava uns rojões, acendia uma fogueira bem de frente à sua casa e, inocente feito uma criança, jogava toda a caixa de fogos dentro da labareda – era um “Deus nos acuda!”; um dia, porém, alguns rojões estouraram dentro da sua casa e não quiseram mais vender-lhe fogos tão perigosos; passou a comprar apenas traques para as fogueiras, mas a luz que brilhava em seus olhos ainda era a mesma .
Ela era uma criança, simples e sem luz. Mas, com uma sabedoria imensa, foi saindo de mansinho e,sem que ninguém percebesse, recolheu-se num asilo- ou exílio? – talvez na espera que, um dia, um de seus tantos filhos lhe venha buscar.

Coração de Jesus, 04/ 06/ 2010