quarta-feira, 30 de novembro de 2022

SOBRE AVES E ÁRVORES

 

Da janela do meu quarto ainda vejo os passarinhos nas mangueiras, nas laranjeiras, na jabuticabeira, ou comendo os farelos de ração que os cachorros deixam para trás. Bem-te-vis, jandaias, maritacas, pássaros-pretos e uma infinidade de aves canoras que ainda escuro começam a cantar a brilhante sinfonia do dia.

Descendo uns trezentos metros, já à beira da lagoa, é possível vislumbrar a beleza dos mergulhões, a ferocidade dos quero-queros em voos rasantes para proteger seus filhotes, a sincronia das araras que voam em bando, conversando amenidades, enquanto procuram alguma roça para assaltarem.

Alguns desses pássaros, aventureiros natos, destemidos desbravadores, talvez para se avantajarem na ferrenha luta pelas, cada dia menos comuns, parceiras de procriação, se assentam, com a caixa alta, sobre o tosco chapéu do espantalho ou num dos chifres da cabeça de gado, que, há tempos, já não assustam mais bicho algum.

A verdade é que os tempos são outros e, nem mesmo os passarinhos, são mais tão bobos como antigamente. Tivesse um daqueles bichinhos um celular de última geração e, obviamente, tiraria uma selfie para postar nas suas redes sociais (Twitter, talvez!). Quem sabe assim ficaria famoso e fosse mais fácil arranjar uma “passarinha” para chamar de sua.

Mas, em tempos de pouca chuva, com as roças cada vez mais escassas e as pequenas cidades sendo infestadas pelos pardais, aves tipicamente urbanas, muitos desses simplórios passarinhos do interior certamente já estejam pensando em migrarem para as metrópoles; quem sabe, implorarem pelos milhos de pipocas, igual fazem os pombos, nas pracinhas ou nos parques das grandes urbes.

Em última instância, se não houver mais outro jeito, talvez o mais plausível seja se embrenharem ainda mais pelo mato a dentro. Quem sabe, como nas lembranças nostálgicas dos seus velhos pais, ainda possam achar algum recanto tranquilo, quem sabe um reino perdido onde exista muita água e comida, onde as gaiolas não existam e as bombinhas que os homens soltam nos milharais para espantá-los não passem apenas de tristes lembranças de um tempo bom, em que ainda existiam mangueiras, laranjeiras, jabuticabeiras.

sábado, 26 de novembro de 2022

SONHOS BRASILIENSES

 

Do alto da torre de tv, vários sonhos viajam por Brasília. Assessores parlamentares, policiais federais, juízes, deputados, senadores... uma vastidão de desejos que passeiam sobre o Lagoa Paranoá, a igrejinha de Nossa Senhora de Fátima, a Quadra Modelo...

Nem mesmo as pesadas nuvens que se aproximam são capazes de esmorecê-los; e, entre os gritos do guardinha... bombeiro... humorista e... fotógrafo, em meio às pernas trêmulas, ao som dos corações acelerados, eles – os sonhos – se vestem de esperança, como se o futuro fosse apenas uma certeza a se completar.

Talvez nem mesmo Dom Bosco tenha sonhado com tamanha maravilha milimetricamente planejada: uma cidade de túneis, de enormidades, de responsabilidades; mais de três milhões de pessoas em meio ao cerrado, longe dos grandes centros, banhadas pela magnífica naturalidade de um lago artificial, protegidas pelos olhares das grandes estátuas, dos imponentes monumentos, das opulentas construções.

Quais daqueles sonhos ainda permanecerão; quais serão efêmeros devaneios? É impossível distinguir, entre tantos, o que é sonho, esperança, ou mera ilusão; assim como dentro daqueles pequeninos carros que transitam pelas enormes vias, diuturnamente, nunca se sabe se estão apenas homens, mulheres, crianças, ou se todos são sonhos que ainda perambulam pelas quadras, palácios e monumentos à espera do dia em que haverão de se realizar.

Qualquer transeunte, se olhar bem, não apenas com os olhos, mas, com a alma, ainda que agora, ou num futuro próximo, certamente avistará, dentre as grades da torre, vários sonhos que teimam em não voltar, à espera de que, em breve, seus donos retornem... talvez, assessores parlamentares, policiais federais, juízes, deputados, senadores ou, simplesmente, como cidadãos que tomaram as rédeas do seu destino e aprenderam a voar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

A COPA DISTANTE

 

          A Copa do Mundo já bate à porta e, embora a mídia tente incansavelmente, o interesse do brasileiro ainda não decolou. Ainda não fomos imbuídos do espírito futebolístico que, em outros tempos, sempre tomava a nossa alma. Ainda há tempo, e, mesmo que eu não acredite, pode ser que nos transformemos no “País do Futebol” novamente, ao menos neste quase um mês de Copa no Catar.

            Neste torneio, três atletas da seleção brasileira atuam no nosso futebol. Dentre os 26 convocados pelo Adenor, a grande maioria joga na Europa, sendo que alguns nem mesmo chegaram a atuar por algum time brasileiro. E, apenas por curiosidade, entre os convocados para o selecionado canarinho de 1982, apenas o meia Falcão e o atacante Dirceu jogavam fora do Brasil.

            A verdade é que não temos uma Seleção brasileira, e isso nos distancia, esfria, arrefece a nossa torcida. Nós, pobres mortais torcedores, gostamos de torcer por quem está perto de nós; os mesmos com os quais brigamos quando perdem um gol feito, quando engolem um frango monumental, quando não fazem a jogada que traçamos perfeitamente nas nossas mentes.

            O brasileiro não gosta de torcer para estranhos. E não é que tenhamos raiva desses pobres (?) jogadores. Da minha parte, até me afeiçoo com o Pombo, o Pedro e mais um ou outro; mas, daí a torcer com afinco são outros quinhentos. E reconheço que a culpa não é deles; afinal, os caras estão lá, trabalhando, treinando, jogando... A culpa é do sistema, que faz com que os times cada vez entreguem nossos jogadores mais cedo para a Europa, deixando aqui apenas os “comuns” ou os “aposentados”.

            Embora falte menos de uma semana para a estreia do nosso selecionado, esperemos, para ver se as ruas serão cobertas pelo verde e amarelo da nossa bandeira; se as conversas sobre futebol alcançarão os bares, as repartições públicas, as nossas casas; se as crianças começarão a correr pelas calçadas entoando os nomes dos jogadores e soltando o grito de gol!

            Essa falta de empatia não significa que não torceremos. Eu estarei plantado em frente a tevê, como, acredito, estarão quase todos os brasileiros, esperando pelo Hexa; torcendo pela Copa do Neymar e cornetando o Adenor. Mas não esperem que eu torça como em outras Copas; que eu pinte a minha rua, enfeite a minha casa ou entoe cantos de guerra; afinal, convenhamos, o nosso futebol já não é mais o mesmo.  

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

NAQUELE TEMPO

 

          Alguém disse que, após a Pandemia, as festas esfriaram-se e que as pessoas se esqueceram de como fazê-las. A culpa não é do Corona vírus. Esta decadência festiva – e não falo aqui das grandes festividades promovidas pelas prefeituras e igrejas, que talvez nunca se acabarão – não se resume a este tempo, mas vêm de anos de constante esquecimento.

            Uma das verdades é que, paulatinamente, temos nos esquecido de festejar, de comemorar; ainda que não as grandes vitórias, mas também a vida, o simples fato de acordar... de existir. Estamos nos tornando pessoas reservadas, individualistas, antissociais. Estamos nos tornando indivíduos midiáticos e, ao mesmo tempo, solitários; pois queremos aparecer sem que precisemos nos confraternizar.

            Quem não se lembra das festas nas roças, nos quintais, nas garagens e varandas das casas, quando, em pequenos grupos, depois dos terços, das rezas, conversávamos e dançávamos; muitas vezes, até que o dia nascesse e a labuta nos chamasse para a dura realidade.

            Não havia pompas, não existia luxos, e, acredite, às vezes, nem mesmo motivo havia. Bastava que alguém chegasse com um violão, outro com um pandeiro e aparecesse uma sanfona que se fazia a algazarra. Um, mais açoitado, gritava um “Bora dançar, pessoal! ”; outro agarrava a companheira pela cintura e... era dois pra lá, dois pra cá...

            Não importava se a roupa era nova e o chão de terra batida ou se a calça era branca e o quintal estava tomado pela lama; o importante era não passar “chanfrão”, não “levar um fora”, nem ficar parado. As mães mandavam as filhas dançarem, sempre de olho, para que os rapazotes não passassem do limite e as moçoilas não mostrassem “riguilimento”, se não já ia toda a família para casa.

            Naquele tempo, não havia celular. Ninguém filmava. Ninguém ficava sentado num cantinho conversando nas redes sociais, com o fone nos ouvidos, com os olhos na tela. Naquele tempo, todo mundo sabia o nome de cada um; cada família tinha um apelido que servia para todos; todo mundo cumprimentava todos pelo nome, com um aperto firme de mãos, com um olhar altivo bem nos olhos do interlocutor.

            Daquele tempo, quem não se lembra dos cheiros, dos sabores, das músicas, das danças?! Mas tudo isso era em outro tempo, quando o mundo ainda não era moderno. Quando ainda não éramos midiáticos, não tínhamos celulares, não queríamos virar memes, ser famosos e conquistar likes. Queríamos apenas comemorar o simples fato de existir, de sonhar, de viver e de sorrir de tudo e para todos... Mas, isso... foi naquele tempo!  

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

LIVROS, LIVROS

 

    Livros, livros; melhor não os ler. Mas se não os ler, como saber? Grosseiramente parafraseando Vinícius inicia-se esta Crônica. Para seguir a linha de pensamento, talvez pudesse ter-se apropriado de Drummond (Roberto ou Carlos), de Cora, ou mesmo de Cecília e Clarice, que não se fugiria ao pretendido, afinal, ler é construir os saberes.

            É prazeroso perceber que a leitura não exige bateria nem nos fere os olhos. Pode ser realizada debaixo de uma árvore, na sala de espera de um consultório, nos bancos de uma igreja em dia de casamento. O livro nos dá a liberdade de lê-lo sem pressa, a qualquer hora, onde quisermos, e entendê-lo como nos der na telha.

            É a leitura quem nos permite viajar, na velocidade da luz, numa dobra do tempo, num piscar de olhos. Ela que nos faz ir de Goiás Velho até a velha Itabira num virar de página; que nos deixa apaixonar por Julieta, sofrer por Diadorim, duvidar de Capitu.

            Nesse reino não existem amarras, nem prisões, penas de morte, quiçá julgamentos; todos os homens, mulheres e crianças são livres; todos os sonhos podem ser sonhados, vividos, mas, principalmente, devem ser escritos. E, acredite! Todos eles vêm com cheiro, sabor e sentimentos.

            Que atire a primeira pedra aquele que tendo lido o Grande Mentecapto não tenha se endoidado, ao menos um pouquinho, mesmo que de brincadeira, só para ver a delícia da loucura de Boaventura; que não tenha querido ser jagunço depois de ler o Grande Sertão; Veredas; senão, viajar pra Pasárgada e ser amigo do rei, assim como o é Bandeira.

            É verdade que não se deve escolher um livro pela capa; mas, convenhamos, ela faz toda a diferença. Também é verdade que ele pode ser lido nos ipads, ipods, celulares e mais um monte de lugares virtuais; mas, concordemos, não existe nada mais gostoso do que abrir um bom livro e sentir seu cheiro (de velho ou novo) tomando todo o ambiente e de passar as suas páginas, uma a uma, enquanto deleita cada palavra.

            Voltemos, pois, a época dos grandes leitores. Afinal, o que seria dos nossos renomados autores se não fossem os leitores a cobrá-los suas obras mais relevantes?! O que seria dos nossos melhores livros, se não fossem os nossos leitores?! E o que seria dos nossos leitores se não fossem os nossos grandes autores com seus majestosos livros. O que seria...

A CHUVA CHEGOU

 

         A chuva chegou novamente. Para o norte mineiro este é um momento de comemoração, de se pagarem as promessas feitas a todos os santos e de tomar pinga, ainda de manhãzinha, no boteco da esquina, para espantar o frio; afinal, basta chover para as blusas de frio saírem do armário, ainda com o cheiro de muito tempo guardadas.

            Junto da chuva vêm as lembranças... de quando chovia bem mais; de quando o São Francisco enchia tanto, mas tanto, que ninguém conseguia passar de um lado para outro e muitas famílias ficavam ilhadas por mais de mês; de quando a ponte do Pacuí foi levada pela cheia do rio, numa chuvarada de início de ano; de quando...

            A verdade é que sempre encontramos desculpas para relembrarmos daqueles tempos. E isso nos faz bem. Não como uma nostalgia que nos prende ao passado e entristece a alma, mas como mero saudosismo dos tempos em que fomos forjados entre brincadeiras e esperanças, construindo nossos caminhos, entrelaçando nossos sonhos.

            Naquele tempo, enquanto chovia, tomávamos café e comíamos broas de milho, contando os minutos para irmos à rua. Não havia qualquer acordo ou tratado, apenas nos encontrávamos para brincar, como se aquilo fosse a coisa mais normal da nossa infância.

            Alguns meninos vinham da rua debaixo, perto da Sanitária, enquanto outros desciam da Amintas Sales, para fazermos grandes barragens de lama; enormes construções que seguravam toda a água que descia desde a vicinal, desviando dos cascalhos. Depois, já com toda a engenharia traçada, um de nós estourava a primeira, lá em cima, fazendo com que todas as outras se arrebentassem, como numa fileira de cartas. E aquilo para nós era uma tremenda diversão.

            Aos domingos, enquanto a chuva caía calmamente, pegávamos as nossas bicicletas e, feito desbravadores desajuizados, saímos em disparada pelas poças de lama, sujando as roupas que, mais tarde, nossas mães lavariam prometendo todas as suas que merecíamos, mas que nunca chegariam; quando muito, ganhávamos pequenos sopapos, que hoje mais se parecem com carinhosos afagos a nos aquecer o coração.

            Não há dúvidas de que as chuvas têm rareado; mas, convenhamos, os tempos já não são os mesmos; as crianças não são as mesmas e nem mesmo nós somos os mesmos. De uma forma inevitável tudo mudo (talvez a diminuição da chuva poderia ter sido evitada, ou, se não, minimizada), mas, quanto a nós, quanto às crianças, quanto ao tempo, nada haveria de se fazer.

            Em meio a tanta tecnologia, enquanto a chuva cai mansamente lá fora, as crianças de hoje assistem desenhos, brincam nos celulares, conversam nos aplicativos, sem perceberem que sob os pingos gelados velhas crianças ainda brincam de fazer barragem, de andar de bicicleta, jogar bola, todas ensopadas, sujas de lama, mas felizes; felizes como a lembrança de um tempo que não mais voltará.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

SOBRE AS CONVERSAS À TOA NA PORTA DA RUA

            

                    Com a chegada do progresso, até mesmo a conversa à toa na porta da rua foi deixada de lado. E, convenhamos, esta era um dos nossos maiores patrimônios imateriais; uma ferramenta de comunicação que mantinha informada grande parte da população de qualquer pequena cidade.

            Não é que os homens e mulheres de cidadelas com menos de trinta mil habitantes fossem meros desocupados. Pelo contrário, a maioria destes conversadores de boa índole era pais e mães de família que pegavam no pesado durante todo o dia, nos arrozais, nas carvoeiras ou mesmo nas capinas dos lotes citadinos.

            A verdade é que eles apenas seguiam a máxima de que diversão e informação sempre fazem bem para o corpo e a alma. Prova cabal desta é o fato de que poucos foram os conversadores que morreram de “doença ruim” ou sofreram com depressão e outras terríveis doenças que infelizmente assolam os tempos modernos.

            O sumiço daqueles conversadores, aos quais muitos chamavam de fofoqueiros, mas que talvez tenham vindo das Ágoras e seus intermináveis debates, evoluindo junto ao tempo, em meio às guerras, intempéries e tantas outras pragas (sociais, econômicas e políticas), pode ser explicado por vários fatores, mas, nenhum deles se sustenta solitariamente.

            É verdade que, naquele tempo, quando, à título de exemplo, eu era criança e ainda vivia correndo pelas ruas corjesuenses brincando de polícia e ladrão, ou, mais tarde, já rapazote, quando eles ainda insistiam por ali, enquanto eu engraxava sapatos ou vendia picolés, aqueles homens e mulheres já eram maduros, se não idosos.

            O triste e inconteste fato de muitos deles já terem morrido não anularia a continuidade de tão importante ofício, afinal, muitas também eram as crianças, adolescentes e até jovens que os circundavam, talvez à espera de alguma fofoca mais áspera, de alguma piada constrangedora ou mesmo de uma simples frase aleatória que, mais tarde, circularia em tom de chacota pela boca dos outros meninos da cidade.

            Todos os fios se entrelaçam e, dessa forma, a falta daqueles destemidos tagarelas juntou-se à chegada dos passatempos modernos e, lentamente, a sombra do Pé-de-Sete-Copas, o banco à porta dos botecos, as esperas na barbearia e tantos outros recantos de diversão e informação foram dando lugar à televisão com seus incontáveis canais e Streams e aos celulares com suas redes sociais e sua solitária comunicação em grupos.

            Outro vilão, em meio a esse desmanche da nossa história, é a violência tão presente na atualidade. Naquele tempo, ainda se podia ficar despreocupado na porta da rua (acredite!) a qualquer hora. Comumente, esses importantes transmissores de informação e promovedores de diversão, reuniam-se de manhã, a fim de pegarem os primeiros raios de sol; ou de tardezinha, assim que chegavam do serviço, enquanto se preparavam para o banho ou tomavam uma dose de cachaça.

            A violência existia, não sejamos tão ingênuos! Mas era uma violência pacata, interiorana, que, calmamente também era debatida nessas rodas, sem que, muitas vezes, se chegasse a uma solução plausível, mas, invariavelmente, rendia pano para muita manga! E ela, a violência, se resumia aos roubos de galinha na noite anterior, aos homens que se embriagavam e, por pequenos excessos, eram levados à Maria Chiquinha, de onde voltavam envergonhados no dia seguinte. Nada que valesse o medo e a liberdade dos citadinos.

            Mas eis que o progresso chegou e, com ele, os conversadores à toa na porta da rua se foram. É verdade que o ofício não morreu de todo. Mas também não há dúvidas de que não tem mais forças para voltar às ruas e, por isso, divaga pelas redes sociais, sem grandes emoções, sem as acaloradas conversas, as tiradas faraônicas, as piadas e palavras aleatórias de outrora.

            Ainda se pode encontrar, se olhar com muita atenção, pequenos grupos, em cidades ainda menores. Mas não são mais os mesmos conversadores. Quando muito, são dois ou três remanescentes que assopram a chama da saudade, para que as velhas conversas não se esvaiam no obscurantismo do esquecimento; mas não têm mais força para lutar e nem mesmo assunto, ou outras pessoas a repassar.

            Por tudo isso, muitos desses guerreiros, remanescentes daqueles tempos áureos, andam falando sozinhos, conversam entre si ou simplesmente se calam, relembrando o tempo em que a chama da conversa à toa ainda brilhava nos lábios e aquecia os felizes ouvidos dos pacatos moradores interioranos.

domingo, 6 de novembro de 2022

AS CRIANÇAS DE 80

 

Fui criança nos anos 80, em uma minúscula cidade norte mineira, onde quase não havia carros e as pessoas conheciam-se pela sua filiação. Eu, por exemplo, andava com Tinca de Lu, Fá de Merita e Marquim de Socorro; todos éramos filhos de alguém e sempre prezávamos por este nome. E, assim, entre o Buriti e o Sagrada Família, todos conheciam Robim de Mudim, Fabim de Gabrielzim, Elismar de Lena e de Zé Olímpio.

            Naquele tempo, brincávamos de ser fazendeiros, nos quintais das casas, construindo extensas rodovias que cortavam pequenos lagos, grandes propriedades rurais com seus boizinhos de sabugo de milho ou manga verde, sem contar nos amontoados de tijolos que fazíamos colocando lama dentro de caixinhas de fósforos e depois transportávamos em caminhõezinhos e caçambas.

            De todos nós, Marquim era quem tinha os melhores brinquedos: revólveres que atiravam espoletas, um quebra-cabeças enorme do Jiraya, espadas, bonecos de todos os tamanhos e uma Monareta irada, com vários adesivos escritos obscenidades em Inglês e que nenhum de nós sabia os significados.

            As outras crianças corríamos para cima e para baixo com nossos revólveres de madeira, que pegávamos na serraria de Bimba e que, enquanto apontávamos para os meninos, em meio à correria, caprichávamos na onomatopeia, saindo belos tiros das nossas gargantas, como “Pow” “Pei” “Pá”, até que prendêssemos os ladrõezinhos debaixo das camas-de-gato, que ficavam nos lotes de Zé Lopes e onde tramávamos as nossas estripulias diárias.

            Ainda nesse tempo, também tive a minha Monareta. Certamente, não era

Tão irada como a de Marquim. Também não era totalmente minha. Chegou em casa numa tarde em que brincávamos na porta da rua, chutando bola de meia por entre as pedrinhas de cascalho há pouco jogadas pela caçamba da prefeitura, que vira e mexe tapava os inúmeros buracos causados pela chuva, pois ainda não havia asfalto na João Celestino, assim como em nenhuma rua do Buriti.

            Meu pai trouxe a magrela arrastada pelo guidão e deu-a para minhas irmãs e eu. Como não soubéssemos andar de bicicleta, coube à Luciana de Lu a honra de estreá-la e, como também ela não sabia que lhe faltavam os freios, também foi dela o primeiro acidente com a nossa Monareta, batendo de cara num muro duas ruas abaixo.

            Sem que déssemos conta, cada uma daquelas crianças foi tomando o seu rumo na vida. Cessaram as partidinhas de futebol no meio da rua, as conversas até à noite debaixo do Pé-de-sete-copas, as idas ao campinho de Menon, as brincadeiras de Pique-esconde. Restaram as lembranças de um tempo em que a únicas grandes preocupações eram quem seria as polícias e os ladrões, quem seria contaria até que os outros escondessem.... Quem?!    

DE MÉDICO E JORNALISTA, TODO POVO TEM UM LOUCO

 

Em questões de doença, sou como todo brasileiro e sempre dou o meu jeitinho. Antes de ir ao médico, atenho-me aos chás que, ainda hoje, minha esposa cultiva no quintal de casa: Poejo, Hortelã, Capim santo e uma infinidade de folhas que curam da garganta aos rins, de acordo com os mais antigos.

            Já sobre o Jornalismo, minhas passagens deram-se amadoristicamente durante a adolescência e educativamente em quando professor. Talvez tenha sido o constante interesse pela comunicação quem me tenha despertado para essa área, embora sempre tenha tido dificuldades em iniciar conversações ou mesmo em responder às mínimas indagações que me eram dirigidas.

            A timidez era tamanha que, tempos depois, enquanto uma aluna descrevia à sua tia um professor de Português que contava piadas em sala de aula e conversava como uma tagarela, esta se assustou ao saber de quem se tratava, comentando, despretensiosamente que “ele era tão simplesinho coitado... e virou professor?!”.

            O menino virou professor, locutor, poeta, escritor e, durante um tempo, jornalista. É verdade que de jornaizinhos de vida curta e sem grandes pretensões; mas, convenhamos, uma enorme vitória para quem apenas lia e, como Drummond (quanta pretensão!), mineiramente, andava, conforme disse Belisa Ribeiro, no livro “Jornal do Brasil, História e Memória”, “meio que se escondendo, se encostando nas paredes, como se pudesse não ser visto”.

            Talvez tenha sido em 1997, se não, em 1998, que veio a primeira aventura jornalística, depois de ter acesso, pelas mãos de Leandro Alves, um amigo egresso do Colégio Agrícola de Montes Claros, que trouxe, à tiracolo, algumas edições de “Acuzada”, um jornalzinho de humor ácido que rodava por entre os alunos daquela instituição. Pois eis aí a sementinha que faltava para a criação de um semanal adolescente.

            “O Jornal” surgiu pelas mãos e ideias minhas e do Aparecido Jossan, um pau-pra-toda obra. Quando surgia uma ideia, bastava acioná-lo, que estava a postos para pôr em prática. Assim, a impressão acontecia com a ajuda do diretor do colégio, em folhas A4, que traziam poemas, poucas notícias locais, desenhos de artistas-estudantes e entrevistas com uma ou outra autoridade da cidade. Talvez tenham saído três ou quatro tiragens, cujos exemplares nunca mais vi ou sobre os quais ouvi falar.

            Já “Humorcego”, um jornal crítico-educativo, surgiu durante uma viagem à Capital Federal, dentro de um ônibus, à meia-noite, enquanto a chuva molhava o asfalto e as luzes dos carros atrapalhavam o sono dos passageiros, que conversavam ou mexiam nos celulares. Talvez fosse em 2010, quiçá, 2011.

            Deste ainda tenho um ou dois exemplares, em folha de papel-jornal, com letras bem definidas e Crônicas minhas, desenhos e pesquisas de alunos e verdadeiras obras de arte, cujos autores nem mesmo lembram que fizeram, mas que contribuíram para que o semanário tivesse uma crítica interessante entre os seus poucos leitores, que o leram em poucos números, talvez quatro ou cinco.

            Assim como duraram pouco, certamente não mais serão lembrados futuramente, sobretudo com a proliferação da internet e suas informações rápidas, efêmeras, superficiais. Também assim, talvez ninguém se lembrará do “Tejuco”, “A Comarca”, “A Tribuna” e tantos outros noticiosos corjesuenses, que contribuíram para as letras locais.

             Talvez não tenha mais remédio para a derrocada dos nossos jornais e o mais plausível seja aceitarmos que a internet, com suas grandes marcas, seja o futuro das nossas letras; senão, cabe a nós voltarmos às velhas ágoras e fazermos as nossas mais ricas ideias, alçando a voos maiores nomes grandes das nossas letras e artes, como: Valmintas, Gilberto Medeiros, Bira Macedo, Daniel Artes, Levy Lafetá, Daniel Oliva, e tantos outros que ainda guerreiam pela arte corjesuense.

           

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

É COMO ANDAR DE BICICLETA

 

Talvez você não tenha dado pela falta, mas fazia tempo que eu não aparecia. Muito se explica pela correria diária, ato comum entre os nossos contemporâneos; outro tanto se justifica pela minha falta de disciplina na escrita, fato que acontece entre vários outros maiores escritores e que, imodestamente, teimo em seguir e, por isso, me adianto em me desculpar. Em minha defesa, não para suprir as minhas faltas, nem para delas me redimir, mas tão somente como desencargo de consciência, afirmo, e assino, que tenho lido bastante, mesmo entre tantos e desconexos afazeres, e, mais que isso, tenho feito todos os deveres cabidos a um mínimo cronista: observando todos os pormenores, estudando os transeuntes e, sobretudo, pensando todas as coisas, ainda que mais vagas e descabidas.

            Depois de muito tempo, fiz uma pequena Crônica para o blog do meu amigo Werneck. E, como dizem os literatos que o fazem de cabeça, sem nem se preocuparem com as técnicas e as veleidades que o leitor comum quase nunca observa, realmente, escrever é como andar de bicicleta: por mais que fiquemos por anos sem fazê-lo, nunca esquecemos da arte.

            Também é verdade que, ao deixarmos de praticar, dificilmente pedalaremos – ou melhor, escreveremos como antes, a não ser que o façamos por diversas vezes, sequencialmente, corrigindo cada erro e consertando cada ranhura que o sedentarismo literário nos leve a causar; muitas vezes, chegando ao ponto de rasgar, não a folha, mas os olhos do guerreiro leitor que ainda teima em prestigiar.

            Antes que eu finde estas linhas, agradeço ao prestimoso leitor que permanecera até esta vírgula, e, espero que cotidianamente retorne para uma conversa, em quando eu pedalarei a minha bicicleta literária, talvez com mais suavidade, com maior agilidade e, quiçá, com todo o equilíbrio que uma boa leitura nos cobra. Por ora, fiquemos com o automatismo que nos une e, indiscutivelmente, nos dá a certeza de que tudo sempre dá certo no final. E tenho dito.