sábado, 30 de novembro de 2019

MELHORAS

Faz um tempo que não escrevo nada . Tem me faltado tempo, assim como também tem me faltado ânimo. Vem chovendo bastante e as roças estão vingando aos poucos; ainda não será uma grande produção, mas tudo tende a melhorar. Tonico é um bom homem, trabalhador; parece que nas mãos dele tudo há de prosperar. Não vai muito tempo e o Sarará retomará os tempos de glória que meu pai plantou.

Com as chuvas, a boa vontade dos bancos  parece ter aumentado. Consegui um bom empréstimo, que pagarei com juros mínimos, em pequenas parcelas. Como garantia, coloquei o Sarará; mas logo retomo as rédeas e pago a dívida. Candinha não queria que eu pegasse o empréstimo, mas expliquei tudo o que pretendia fazer e, embora eu visse que não entendera quase nada, assentiu meio ressabiada, dizendo que eu sabia o que estava fazendo.

Falei com ela à noite, enquanto estávamos deitados, acariciando os seus cabelos, ela respirando fundo, pensando em tudo o que eu sonhava. É verdade que não desisti de ir embora para a capital, levar Candinha, fazê-la uma dama na sociedade; mas, com a chuva e sem o Arnaldo, talvez dê para ficar mais um tempo, até que a seca chegue de novo e tudo tenha que ser recomeçado.

O meu amigo não deu qualquer sinal; acredito que tenha mesmo morrido. É verdade que ainda sinto a sua presença; não digo que em sonhos ou lembranças, pois a presença de Candinha me enche de prazer e me faz esquecer as boas lembranças do pobre diabo. A presença que sinto é bastante física; vejo o vulto do Arnaldo próximo a casa, ouço a sua voz ao longe, passos em redor. Os cachorros, às vezes, latem à noite, sem que ninguém esteja por perto. Não são latidos de raiva, mas resmungos saudosos  de alguém que aparece depois de muito tempo. Saio, a contragosto da minha esposa do Arnaldo, e, sem ver nada, retorno assustado para dentro.

Creio que tudo isso não passe de cismas minhas, mas, como de tudo devemos desconfiar, depois que peguei o dinheiro tratei logo de contratar mais homens para o Sarará. Disse que seriam braços para a lavoura, mas não passam de seguranças para Candinha e eu. Os filhos do Tião já não existem. Misteriosamente, morreram queimados numa choupana, pelos lados do Baluarte, onde estavam trabalhando para um fazendeiro. Não pensaram no Arnaldo; mas a sua lembrança logo me veio à mente.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

DIAS MELHORES

Faz um mês do desaparecimento do Arnaldo. Não me arrependo do que fiz, mas, confesso, sinto saudades do meu amigo. Às vezes sinto a sua presença e até penso tê-lo visto em um canto ou outro do Sarará. O corpo dele não apareceu, talvez tenha sido comido por alguma onça ou outro bicho do mato. 

Foi Maria quem viera com este pensamento: Arnaldo não estaria morto; teria fugido para a Lapa, de onde haveria de voltar algum dia. Quem tinha dito isso a ela foram as mulheres que frequentavam o culto na casa de Liodina. Diziam que Andrelino, o filho de Sá Lúcia, tinha encontrado com o homem, baleado, no meio do mato e, contrariando a promessa feita  ao meu amigo, contara o ocorrido a Sebastiana, sua esposa, que tratara de espalhar a notícia.

Assim que eu soube da notícia, procurei o fuxiquento, que desmentiu tudo. Disse não terem falado nada, nem ele nem a esposa. Que era tudo invencionices do povo. Por via das dúvidas, antes que o homem falasse mais alguma coisa, mandei recado a Joaquim e Luciovânio, que logo deram fim em Andrelino e sua esposa.

Seguindo a indicação do meu amigo Tião, contratei o Tonico para o lugar de Arnaldo. Não é homem de muitas palavras . Casado, trouxe a esposa e dois moleques para o Sarará. Meninos ainda pequenos, catarrentos e barrigudos. Tonico morava próximo à fazenda do Tião e contara com a força do velho para se arrumar, embora não tivesse qualquer ligação com a família.

Para que Tonico e sua família pudessem se acomodar, tive que trazer Candinha para dentro da minha casa. Com alguma dificuldade, consegui convencê-la da necessidade da mudança e, como justificativa, dentre outras, empreguei-a como auxiliar de Maria.

A verdade é que com a chuva caindo de bom grado, as roças plantadas pelo Arnaldo têm ganhado sobrevida e, provavelmente, depois de muito tempo, o Sarará terá uma boa produção. Talvez seja o início de uma nova era, de grande prosperidade. E, conforme espero, com a esposa do meu falecido amigo se transformando em minha esposa. Por enquanto, apenas um sonho, que acredito, não esteja tão distante.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

A VOLTA DE REIS

Foram três dias longe de casa. Um velho amigo do meu pai me dera o pouso necessário. Eu tinha dito que iria ver uns gados pelos lados de Baluarte, mas, sobre o pretexto das fortes chuvas que caíram, fiquei por três dias em sua casa.

A saudade de Candinha era dolorosa para minha alma, mas eu precisava me manter firme, demonstrar interesse na procura do meu amigo. A verdade é que não me interessava nem um pouco que o mesmo fosse encontrado. Se vivo, seria um atropelo justificar a tentativa de homicídio; se morto, seria uma eterna lembrança, um fardo a separar Candinha de mim.

Enquanto estive na casa de Gilermando, o amigo do meu pai, fui tratado com todas as pompas e circunstâncias; ainda assim, nunca estivera satisfeito. Faltava-me a felicidade, doíam-me as saudades de Candinha. Por isso, no terceiro dia, saí ainda de madrugada, contra a vontade do velho, quase em desespero.

A viagem parecia não ter fim.  As lembranças misturavam-se na minha cabeça. Lembrava-me do meu amigo Arnaldo, das nossas conversas na varanda enquanto tomávamos café com bolo de fubá ou uma dose de pinga com tiragosto. E as imagens misturavam-se com a esperança de que Candinha me esperasse junto à entrada do Sarará, que viesse ao meu encontro, me abraçasse, já se esquecendo do falecido.

Candinha não estava na cancela; não viera me esperar. Meu coração bateu forte e uma enorme tristeza tomou a minha alma. Retomei a minha coragem e continuei o meu caminho. Imaginei a esposa do meu amigo jogada sobre a cama, chorando, ainda gritando pelo pobre diabo. E isto me causava raiva, uma grande raiva do Arnaldo.

domingo, 17 de novembro de 2019

O DIA SEGUINTE

O dia amanheceu chuvoso. Candinha levantou-se bem cedo e eu já estava tomando o café com pães de queijo preparados por Maria. Ela disse que tinha passado quase a noite toda acordada, só adormecendo quando já era quase de manhã.

Os olhos da viúva do Arnaldo continuavam inchados e ela estava com grandes olheiras, certamente tinha chorado bastante durante a noite. Insisti que se sentasse e tomasse o café. Maria se retirou para a cozinha. Candinha não queria o café, disse que  precisava procurar o marido, pois ele ainda não tinha aparecido. Voltaria para a sua casa e ficaria a esperá-lo, pois, quando voltasse, não gostaria de vê-la fora de casa.

Eu quis dizer toda a verdade; falar que eu tinha mandado matá-lo e que ele não voltaria. Ela haveria de me perdoar e, se o fizesse, eu a convenceria a morar comigo. Não tive coragem; calei-me e deixei que ela mantivesse suas esperanças. Era preciso ter calma e fazer tudo sem precipitações, afinal, o tempo é senhor de tudo e tudo haveria de se arrumar.

Ela não quis o café. Ainda estava com a camisola da noite anterior e nem se preocupava que eu a olhasse, talvez nem mesmo tivesse notado o quanto eu a desejava. Prometi que sairia a procura do meu amigo e que não voltaria ao Sarará enquanto houvesse a mínima esperança de encontrá-lo, com vida ou não. Ela agradeceu-me com um abraço. O seu cheiro era bom e sua pele era quente, fazendo o meu peito acelerar. Depois, preparei o meu cavalo e partir rumo ao Pitão; haveria de passar uns dias por lá, até que tudo se acalmasse.

O CHORO DE CANDINHA

Já era noite quando Candinha batera à minha porta. Vestia-se de uma camisola esverdeada e tinha os olhos inchados. Levantei-me rapidamente ao ouvir seus gritos e batidas na porta, pois a negra Maria há muito dormia no seu quartinho, próximo à cozinha, como se fosse uma pedra jogada no fundo de um rio.

A esposa do Arnaldo falava desesperada sobre a demora do marido, que ele havia saído ainda de madrugada prometendo voltar antes que a noite chegasse. E ela estava maravilhosa dentro daquela roupa de dormir. Embora eu tentasse, não conseguia deixar de olhar para os seus peitinhos duros, quase perfurando a camisola, os cabelos negros descendo pelo pescoço liso, indo até próximo aos seios. Segurei-me para não agarrá-la; puxar para dentro de casa; levá-la ao meu quarto e fazê-la esquecer aquele desgraçado.

Ordenei que a mulher se acalmasse, puxei-a para dentro de casa e gritei por Maria. Enquanto a negra despertava e até que viesse à sala, tentei acalmar Candinha. Sentei-me ao seu lado no sofá e pedi que tivesse paciência; o Arnaldo ainda voltaria, talvez tivesse tido algum contratempo e resolvera dormir na fazenda do Tião. Pus a mão direita sobre a sua perna. Como eram quentes as suas pernas, os cabelinhos eriçados; senti que ela tremia; meu coração palpitava, eu tinha vontade de agarrá-la de uma vez.

Maria chegou trazendo um copo de água com açúcar, pois tinha ouvido as lamúrias de Candinha. Ordenei que fizesse um chá para a pobre esposa do Arnaldo e, enquanto ela corria para a cozinha, puxei a cabeça da viúva para junto do meu ombro. Candinha não relutou; deixou-se cair e chorando disse que não saberia o que fazer se lhe faltasse o marido.

Eu sabia da morte do meu amigo. E, embora sentisse o coração apertado, enchia-me de alegria ao imaginar a sua esposa nos meus braços, na minha cama, ao meu lado até o fim dos nossos dias. Controlei a minha euforia e, enquanto alisava os seus cabelos, sentindo os seus seios tocarem o meu peito, dizia palavras de esperança e tentava acalmá-la dizendo que esperasse até o amanhecer. Se o Arnaldo não voltasse, eu mesmo o haveria de procurar.

Os filhos de Tião deviam ter feito um bom serviço. Era para o meu amigo ter voltado antes que escuressece e se não o fizera é porque já não havia mais o Arnaldo. Nada mais poderia atrapalhar, Candinha seria a minha esposa, o grande amor da minha vida. Se ela quisesse, iríamos embora para a capital, construir uma nova vida, numa casa cheia de filhos, sem as lembranças do falecido.

Insisti para que dormisse conosco. Talvez fosse perigoso ficar sozinha em sua casa, sem a presença do marido. Ela não queria, mas, ante a minha insistência, enquanto tomava o chá de camomila preparado por Maria, aceitou passar a noite. Mandei a negra preparar o quarto de hóspedes, que fica bem ao lado do meu; Candinha foi junto e, enquanto caminhava, lentamente, ainda soluçando, eu reparei o quanto tinha as ancas largas, certamente seria uma boa parideira, um desperdício para o meu falecido amigo.

sábado, 16 de novembro de 2019

PARÊNTESES

Às vezes, parênteses são necessários para que tudo possa ser colocado em seu devido lugar. Eis, portanto, algumas explicações...

Da primeira vez, vim à São João da Lagoa, como dissera no "Juca Pessoa", contratado pela prefeitura para escrever sobre a história local. Do livro não obtive notícias, nem uma noite de autógrafos, nem um exemplar para os meus guardados. Mas disso não faço questão, pois cumpri a tarefa que me foi dada e recebi o combinado pela sua confecção.

Desta vez, vim por conta própria. Aproveitando-me das minhas férias, depois de um longo tempo vagando pelos salões dos palácios belorizontinos. Há tempos não escrevo um livro, nem faço qualquer reportagem; acomodei-me  no gabinete de um deputado, de onde tiro o meu sustento e guardo algum para a velhice, que já me bate à porta. Mas o espírito de jornalista ainda me causa arrepios e a história do Arnaldo, faz tempo, me perturba as noites de sono.

Muito do que tenho escrito até aqui não passa de fruto da minha imaginação, e disso não me orgulho em dizer. De fato, não conheci o Arnaldo, o Reis ou a Candinha e o pouco que sei de cada um são recontos de bocas alheias, alguns poucos lagoanos ( ou seriam lagoenses?), que se dizem crianças àquela época, ou que ouviram de outras bocas as histórias que falam.

É verdade que São João da Lagoa, assim como as tantas pequenas cidades norte-mineiras, é um prato cheio para aqueles que gostam de boas histórias, recheadas de poesias e encantamentos. E assim foi com o Arnaldo. Talvez eu a tenha escutado enquanto tomava uma cerveja à beira da lagoa ou nas pesquisas que fizera sobre o Juca. Pode ser que ambos tenham sido contemporâneos, embora nenhuma ligação eu tenha encontrado entre eles.

Pelo que me consta, nenhum dos personagens até aqui descritos deixara qualquer herdeiro. Desta feita, tem-se brutalmente o fim das linhagens, o fim de todas as histórias. As fazendas já não existem, embora seja possível encontrar, através do GPS e alguma pesquisa, os locais exatos de cada uma, mas já não existem as velhas casas ou coisas que remontem aos velhos tempos. O que há são pequenos sítios, com homens e mulheres simples que nada sabem do passado.

O paradeiro de Arnaldo, de Reis e Candinha não é possível precisar. Até aqui, chegamos ao instante em que, possivelmente, tenham matado o primeiro, conforme se poderá constatar nos escritos supostamente deixados pelo doutor. Em tempo, reafirmo a imprecisão em se afirmar a veracidade dos escritos, uma vez que os recebi de um senhor de jeito simples e fala mansa, que disse tê-los recebidos do pai, que dissera ter achado numa noite chuvosa, quando voltava de uma viagem que fizera ao Pitão, para onde levara um rebanho. O cansaço já lhe pesava as pálpebras e doía-lhe o corpo, por isso, embora não estivesse tão longe do Pitinha, resolvera passar a noite na velha fazenda. Tudo já era uma tapera, mas as coisas ainda estavam todas intactas dentro da casa.

‌O homem teria arrebentado a porta e invadido o casarão. Sabia da história do doutor e por diversas vezes já tinha ouvido dizer que os fantasmas tomavam conta das coisas do homem, que , diziam, também já teria falecido; mas o cansaço era maior que o medo e, por isso, tinha resolvido dormir por ali. Descansara por toda a noite e, antes de partir, pegou tudo o que via de valor e aguentava carregar. Tempos depois, venderia tudo para um homem que passara pela cidade, mas esquecera-se do calhamaço, que o filho, agora, deixava guardado numa gaveta no meio da sala.
‌Do paradeiro de Candinha, muito pouco se sabe. Alguns afirmam que ela endoidecera e saira andando pelo mundo, tendo sido vista pela última vez pelos lados de Salinas; outros dizem que ela fugiu para a beira do Velho Chico, tendo se jogado, finalmente, no aconchego eterno dos seus braços. Assim, ficam o dito pelo não dito e passemos logo aos escritos do Doutor Reis.

TOCAIA

Os filhos de Tião, Joaquim e Luciovânio, assim que saíram da fazenda, puseram-se a planejar a morte de Arnaldo. O aviso do Doutor era a senha para o combinado, o bicho já estava no mato, agora era a hora de fazer valer o faro de caçadores.

O velho tinha segurado o pobre diabo o quanto pôde, para que os filhos se arranchassem nos matos em tocaia. Deveriam andar um bom pedaço, pois tudo deveria acontecer longe daquelas bandas, para que não suspeitassem das gentes da fazenda. Pensaram logo no Gaforão, lugar ermo, cheio de mato fechado e onças. Ninguém haveria de achar o corpo do homem.

A chuva chegou de repente, mas os dois caçadores continuavam nos seus postos: Joaquim, escondido detrás de um pequizeiro, do lado esquerdo, bem junto da estrada. Do outro lado, Luciovânio deitara-se junto de uma moita de macambira, com os espinhos cheirando o seu rosto. Ficaram por horas esperando, mas valia a pena, o Doutor tinha dado uma boa paga, dissera que era herança do velho Lourenço, que dava com pena, mas que não tinha mais jeito, precisava do serviço.

Luciovânio já começava a cochilar quando Joaquim deu o primeiro tiro. Arnaldo vinha tentando segurar o cavalo, que debatia-se a cada corisco que corria no céu. O tiro do irmão tinha sido certeiro, indo direto no peito do viajante, que cambaleou sobre o animal. Por via das dúvidas, era melhor dar outro tiro. Luciovânio mirou direitinho no lado esquerdo, queria acertar o coração, mas como o desgraçado não parasse quieto, acertou um pouco abaixo, fazendo-o cair.

O cavalo pôs-se em disparada rumo ao Sarará, deixando o cavaleiro no chão. Os irmãos saíram dos seus postos e foram conferir o serviço. Luciovânio queria dar mais um tiro, o de misericórdia, que era para garantir o serviço, mas foi logo dissuadido pelo mais velho:

- Não é preciso gastar mais bala, mano. O desgraçado já está morto. Vamos tirar ele daqui, antes de escurecer as onças já dão um fim no banquete.

Arrastaram o corpo para dentro do matagal e depositaram-no debaixo de uma mangabeira. Joaquim ainda deixou uma flor sobre o peito do miserável, que era para tornar a ceia mais bonita para os gatinhos. Montaram nos cavalos e saíram sem olhar para trás. A chuva caía forte e os raios pareciam nunca acabar. A noite ainda os pegaria na estrada, mas tudo tinha valido a pena.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A CHUVA E OS FILHOS DE TIÃO


A chuva caía forte depois de muito tempo. As novenas e promessas de Candinha tinham surtido efeito. Talvez ainda desse para salvar ao menos o feijão e isto já seria de agradecer. Foi muito tempo de sol, as árvores agradeciam e os passarinhos cantavam enquanto tomavam o banho dos céus.

Relampiava e trovejava, mas Arnaldo não podia parar. Tinha que chegar em casa antes do escurecer. O cavalo ia sarapantado e a cada raio que cortava as nuvens, o homem rebolava para não deixá-lo enfiar mata à dentro. Era uma luta ferrenha com as rédeas, enquanto desfiava o Rosário; sempre tivera medo da barulheira que São Pedro mandava, mas não reclamava, bastava que chegasse logo em casa depois de todo  dia longe.

Doutor Reis o fizera sair ainda de madrugada do Sarará. Que fosse na fazenda de Tião de Noca, uma eternidade para os lados do Pitão, e desse um recado ao velho: "que mandasse  os filhos trazerem as armas no final de semana, que iam caçar".

Arnaldo estranhara as ordens do patrão, pois o mesmo nunca fora dado às caçadas, pelo contrário, dizia ser amante da natureza e contra as desumanidades com os bichos, mas, como sempre havia se postado,  não fizera qualquer indagação, e, junto do canto dos galos, selou o cavalo e partiu.

Tião de Noca era um homem velho, dono de uma fazenda em frangalhos, que em outros tempos tinha sido um grande produtor de cachaça. Diziam à boca pequena que tinha sido amigo de Lampião, nos tempos do Ceará, de onde viera ainda jovem, tendo, de acordo com algumas lendas, dado pouso ao cangaceiro e seu bando na única vez que eles passaram por estas bandas, fugindo dos homens do governo. Agora, ainda diziam, vivia dos pequenos serviços dos filhos, trabalhos sujos, pagos  adiantado, para que não restasse qualquer dúvida ou perigo.

O velho o recebera sem pompas, mas dignamente. Mandou que soltasse o cavalo na manga para que pudesse pastar até a volta, serviu um café preto com biscoitos de toalha e ordenou que esperasse o almoço. Deixasse o sol abaixar um pouco e à tarde podia partir de volta, com a confirmação dos meninos. Arnaldo não contradisse as ordens, o sol estava forte e a fome já fazia a barriga roncar.

Os filhos de Tião chegaram quando almoçavam. Pediram a benção do velho e cumprimentaram o forasteiro; ouviram da boca do pai o recado do Doutor Reis e, sem olhar para Arnaldo, mandaram dizer que partiriam na manhã seguinte para o Sarará e que não calhava qualquer preocupação da parte do doutor. Pediram a benção do pai, pegaram as armas na despensa e saíram sem se despedir do visitante, que se lembrava de Candinha e pensava no que fazia o patrão: por certo, estaria na varanda tomando pinga e olhando o tempo seco.

A chuva começara a cair no meio da estrada e o pobre diabo voltava sem capa de chuva, mas, também, quem diria que ela viria tão de repente, depois de um sol escaldante. Arnaldo não reclamava; apenas rezava e lembrava dos filhos de Tião; não tinha gostado daqueles dois, pareciam duas pestes, duas cobras prontas a dar o bote. Fortalecia a reza e punha o cavalo pra correr; besteira, naquela lama toda, logo o cavalo cansaria; voltava à toada de antes, enquanto os arrepios tomavam o seu corpo.   Tinha maus pressentimentos e, por isso, rezava mais e lembrava de Candinha e pensava no patrão, enquanto os raios cortavam os céus.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

A CHUVA

Fazia tempos que não chovia. Arnaldo olhava para o céu pensava que seria bom umas boas pancadas d'água no Sarará. A barragem lá embaixo já estava com os dias contados,  dificilmente chegaria a dezembro; dos braços de rio, muitos tinham secado e nem mesmo lama existia no lugar, só terra seca e lembranças do exagero de água que havia.

Nos tempos de Lourenço tinha muita água. Até mesmo das pedras desciam filetes, que escorriam até o rio. Os pastos estavam sempre verdes e o gado escolhia, como ricos senhores, onde tirar o de comer. Agora, sobraram poucas cabeças, reses secas esparramadas pelo chão, debaixo dos pequizeiros, sem forças para se levantar, sem coragem para viver.

Candinha fazia promessas e rezava novenas. Maria não gostava da esposa do Arnaldo, não engolia a forasteira e arrematava, consigo mesma, nos sozinhos da cozinha, que um dia ela haveria de aprontar alguma com o marido. Desde há muito percebera os olhares de Reizinho, dos quais a mulher porcamente se desvencilhava, aquilo nas lhe descia. Pobre Arnaldo! Por isso, Candinha rezava suas novenas sozinha e prometia que, se chovesse antes de findar o ano, haveria de acender uma vela na gruta do Bom Jesus. Ela não queria mais voltar àquele lugar, mas a fé lhe fazia crer no sacrifício.

Doutor Reis continuava lendo seus livros. Entretinha-se agora com o Memorial de Maria Moura, enquanto construía a heroína com a feição de Candinha. Seria ele o assassino do Arnaldo? E se ela não o quisesse, se o fizesse matar e depois o findasse também?! Candinha não seria capazes de tudo isso. Com certeza, não seria. Fechou o livro e olhou para os céus: a chuva não chegaria tão cedo. Talvez o melhor fosse esquecer a promessa feita ao velho; vender a fazenda; pegar Candinha e fugir para a capital. E isso não tardaria a consumar-se.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

REIS E ARNALDO


Sentado no velho banco de madeira, Reis olhava o pasto do Sarará enquanto tomava o seu café com rapadura e comia broas quentinhas, feitas por Maria. A negra já tinha voltado para a cozinha, daí a pouco as panelas começariam a chiar, jorrando o cheiro do tempero pela casa, aumentando a fome do patrão.

O café estava quente, redondo, assim como gostava o velho Lourenço. As lembranças do pai ainda estavam impregnadas em cada canto; às vezes ainda se ouviam os seus gritos de 'aiou' tangendo o gado que pastava bem em frente a casa ou o seu ronco na rede que agora balançava solitária na varanda, assim como em muitas manhãs de pouco sol se podia vê-lo passeando pelas roças de milho e feijão, calculando toda a produção em contas de Noves-fora. Reis sentia saudades do velho, embora não se apegasse tanto à sua falta. A distância física entre ambos fizera com que as afeições do filho para com o pai se resumissem ao respeito e à admiração. Talvez não existisse amor, Lourenço não era afeito a estas bobagens.

O Sarará estava em decadência. Não fosse a promessa feita ao velho, já teria mandado embora a negra e o Arnaldo. Venderia tudo aquilo, de porteira fechada, pegaria a esposa do Arnaldo e iriam embora para a capital. Se arranjaria como advogado, podia ser que conseguisse mesmo alguma assessoria no Palácio e isto já estaria de boa monta. Mas tinha medo de tudo isso. O fantasma do pai ainda estava muito vivo naquele lugar.

Assim como acontecia todos os dias àquela hora, Arnaldo chegava vagarosamente junto a portinhola da varanda; dava um 'bom dia, Doutor' e ficava à espera de que o mandasse entrar.

- Bom dia, Arnaldo. Entre, tome um café comigo. As broas ainda estão quentes e o café está no ponto.

O pobre homem, envergonhado em tomar o café do patrão, resistia à tentação e, agradecendo efusivamente, tratava logo de mudar o assunto; falava da chuva que tardava, das roças que quase nada vingariam, das últimas cabeças de gado que precisavam de sal  e ração para aguentar a espera de tempos mais amenos. Tudo aquilo deveria ser castigo, só podia ser isso. Não dizia ao patrão, mas talvez fosse alguma dívida deixada pelo falecido e  podia ser que com alguma promessa e um tanto de novenas tudo pudesse mudar. Mas o Doutor não acreditava naquelas coisas, preferia os livros e as palavras difíceis. Desse jeito, o Sarará não ia muito longe.

Reis sentia raiva do Arnaldo. Como podia um pobre diabo desse arrumar uma mulher tão bonita?! Sentia vontade de lhe dar uns sopapos, meter-lhe duas balas na fuça, mas a promessa. Miserável promessa. Podia até imaginar os pensamentos do homem; devia estar pensando que ele era um frouxo, que não conseguiria resolver os problemas da fazenda, até devia sentir saudades dos tempos do velho. Mas o pai havia morrido, agora era com ele. E ele resolveria tudo. Respirou fundo, bebericou o café e olhou novamente para o pasto bastante seco.

- Não se afobe, meu dileto amigo. Eu já lhe disse que nesta canícula, a sofreguidão é o que impera. Não soltemos os impropérios ainda. Irei hoje à cidade; comprarei sal e ração. A chuva não há de tardar e tudo se assenta, afinal, não há mal que perdure.

Sabia que o Arnaldo não entendia quase nada do que ele falava, e isto lhe aprazia. Gostava de se mostrar superior ao pobre homem, embora invejasse a sua sabedoria. O empregado quase não falava e quando o fazia era para concordar com as suas palavras; mas sabia que em muita coisa  ambos discordavam e, às vezes, quando falava, dizia coisas simples, cheias de filosofias e sapiências, assim como são os sertanejos. A raiva lhe subia pelas ventas, mas ele respirava fundo e vaticinava:

- Não se apavore, meu caro, vamos tomar um trago. Espere o almoço, Maria já está refogando o frango, e o quiabo daqui a pouco já começa a ferver na panela.

Arnaldo se corava todo e isto fazia Reis se divertir. Não gostava de contrariar o patrão, mas Candinha já o devia estar esperando. Não queria brigar com a esposa.

- O senhor me há de desculpar, Doutor, mas o almoço eu não vou aceitar. Está cheirando mesmo e deve estar gostoso, a comida da negra Maria sempre é uma maravilha, mas o lá de casa já está quase pronto também. E Candinha não gosta de minha desfeita, o senhor sabe como é mulher, a gente não pode contrariar. Mas a pinga eu aceito, que é pra refrescar o calor. Se Deus não tiver dó...

Reis pegou a garrafa de pinga com escada de macaco e pôs uma dose em cada copo. Arnaldo pegou o saleiro que descansava na janela, botou um punhado nas costas da mão, tomou um trago e comeu o sal, enquanto o patrão bebericava o seu copo e imaginava Candinha preparando o almoço; Comida boa, como a esposa do Arnaldo.

domingo, 3 de novembro de 2019

AINDA CANDINHA



As lembranças da mãe ainda doíam, mas Candinha não reclamava. Preferiu se calar e seguir a vida, assim como fizera a velha desde a morte do marido. Nunca havia reclamado, apenas rezava, e quando chorava, fazia-o silenciosamente debaixo da mangueira. Se a menina via era por ser bisbilhoteira, pois a mãe sempre tinha procurado não demonstrar a sua dor. E Candinha a perdoava: se dera cabo da sua vida, foi porque não aguentava mais. O melhor era não sofrer e nem fazer com que a filha sofresse ainda mais. E isto Candinha compreendia.

O Sarará era um bom lugar para se viver e Arnaldo era um homem bom. A mãe ensinara que nunca devia mentir, e por isso se calava. Ele nunca a havia perguntado, assim como ela também nunca tocara no assunto; mas, se Arnaldo perguntasse, haveria de dizer a verdade: gostava deveras do pobre homem, mas nunca o amara. Talvez tivesse gratidão e, por isso, respeitava e queria bem ao pobre diabo.

O marido não era bonito e já era velho. A diferença de dez anos já se fazia sentir. Ela gozava o fogo da idade, sentia calor, suava, sonhava desejos e imaginava coisas; ele dormia toda a noite como uma pedra, falava sobre a lida na roça, o tratado dos cavalos, as conversas com o Doutor Reis. O patrão era um homem bonito: Loiro, forte, de olhar desavergonhado. Ela sempre pensava nele enquanto se dava ao Arnaldo, senão não gozaria, não sentiria prazer.

Desde quando Arnaldo a tinha tirado de dentro  do rio, sentia-se na obrigação de servi-lo, como se fosse sua escrava, sempre grata por tê-la salvado. Não que ficasse feliz em desvencilhar-se da morte; pelo contrário, aquela seria a sua libertação. Mas ele a tinha liberto de si mesma, dos seus traumas, das suas amarras. Candinha não o amava e se não pensasse no Doutor Reis também não sentiria prazer em deitar-se com ele, pois, que Deus a perdoasse, sentia nojo do seu cheiro de suor, do seu bigode raspando o seu corpo, da sua boca acarinhando o seu pescoço, mas devia-o pela sua vida e sentia-se segura ao seu lado.

O patrão também a desejava, ela sabia disso. Quando, propositalmente, andava de um lado a outro do quintal, molhando as plantas, pegando folhas verdes para o almoço, levando recados do Marido, ela percebia os olhos do homem a lhe comer inteira, como se estivesse pronto a agarrá-la. Ela sentia desejos de que ele o fizesse, mas recompunha-se e abaixava os olhos em sinal de respeito, envergonhada com os seus pensamentos, com seus pecaminosos desejos.

Arnaldo não merecia, mas ela tinha pena. Era um homem simples, sem grandes vontades. Aceitava todas as ordens do Doutor sem reclamar e, ela sentia, ele ainda agradecia por todas as considerações que o patrão lhe reservava. O marido não tinha maldades, não via que o patrão apenas se aproveitava da sua simplicidade, da sua força, do seu suor, enquanto a desejava. E isso lhe crescia a raiva do Arnaldo. Ela o respeitava, sentia-se agradecida, mas tinha raiva, e desejava o Doutor Reis.