domingo, 17 de dezembro de 2017

JUCA PESSOA CAPÍTULO III


CAPÍTULO III

Os pássaros amontoaram-se no sete-copas de frente a casa. Eles não cantavam, apenas observavam, quase que solenes, o que se passava naquele lugar. A janela já estava aberta, na tentativa de que o ar fresco daquela manhã penetrasse no ambiente. Nenhuma daquelas aves ousava entrar, apenas olhavam compenetradas, entristecidas. Eram papa-capins, sabiás, curiós, pintassilgos, trinca-ferros e canários-da-terra. É bem verdade que eles sempre estiveram por ali, mas, antes, chegavam em algazarra, entravam casa adentro e tomavam o restinho de café que o velho deixava na velha xícara de porcelana, já encardida pelo líquido e pelo tempo.

A casa era simples e não tinha muros. Uma grande cerca de arame farpado era a única barreira que a separava da esburacada rua de terra. O pé de sete-copas ficava do lado de dentro da cerca, tendo embaixo um pequeno banco de madeira, onde os namorados transavam de madrugada, depois que a meninada brincava de pique - esconde e os mais velhos conversavam amenidades.

As duas janelas passavam todo o dia abertas, a não ser nos meses de agosto, quando Catarina tinha que correr a todo instante para fechá-las contra algum redemoinho, enquanto a molecada ficava assoviando no meio da rua, só para ver o saci fazendo travessuras. Ambas eram azuis, de um azulado envelhecido, há muito pintadas por Juca, pouco antes de trazer a menina para a sua casa.

As paredes, caiadas de branco e tomadas pela poeira, fazia tempos já estavam amarelecidas, precisando de uma nova pintura, sempre prometida pelo velho. E, aqui e acolá, ainda se podiam ver as marcas das bolas de leite de mangaba que os meninos jogavam, enquanto Juca estava em alguma roça, trabalhando para algum fazendeiro.

Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera. Fazia tempos que morava naquela pequenina casa; primeiro sozinho, depois com Catarina, que alguns suspeitavam ser sua amásia, recriminando-os pelo ato, já que, quando da sua chegada, ainda era ela uma menina. Outros afirmavam ser Catarina uma filha do velho, recuperada tempos depois de ser deixada em cuidados de alguma senhora, porque teria Juca matado a companheira num átimo de ódio enciumado. Ainda havia aqueles que diziam que a mocinha era apenas uma criança órfã, que Juca encontrara pelas bandas de Bocaiuva num dia de muita chuva, debaixo de um enorme pequizeiro, enquanto descia da Bahia, de onde teria vindo fugido de um velho coronel, cuja filha tinha sido desvirginada pelo vaqueiro, estando este, há muito, jurado de morte.


Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera e nem mesmo qual a sua relação com Catarina, embora ela sempre dissesse que o considerava como se deve considerar a um pai. Também não sabiam as pessoas do Pitinha que naquela manhã Juca estava morrendo, nos braços da mocinha, enquanto os pássaros observavam-nos de cima do Sete-copas, respeitando aquele momento triste e derradeiro.  

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

CONSCIÊNCIA HUMANA

Tolice
dividir a vida
em branco e preto
se
por dentro
somos todos da mesma cor.
Por isso,
diuturnamente,
meu coração padece
e
desnudo de cores
chora
feito o menino
de um ventre livre
que canta o choro arrastado
chicoteado
ecoado pelos ventos
vestindo-se de vários rostos
doridos
sem cor.
Tolice
dividir a vida
Preto no Branco.

São João da Lagoa 28-11-2017

sábado, 28 de outubro de 2017

DRAGÃO

O homenzinho desce da árvore. O sol já começa a nascer detrás do morro. Do outro lado, a lagoa reflete um brilho forte, quase ofuscando os seus olhos. A espingarda, que descansava junto a um galho próximo, desce primeiro. Ele a desce devagar, segurando pelo cabo. Depois, pega o chapéu de palha, que se agarrava à ponta de outro galho menor, ajeita o cabelo bastante negro e o assenta com cuidado. Mais uma noite perdida.

Já no chão, esticando a coluna, judiada por toda uma noite mal dormida sobre um pequizeiro, o homenzinho excomunga o catingueiro. Bicho disgramado, deixa a gente toda a noite esperando à toa.. À toa! Depois, já recomposto e mais tranquilo, olha para a lagoa e pensa que, à noite, vai descer é para lá, pegar uns peixes, levar um litro de pinga, pescar a noite inteira debaixo da lua. Só não pode é chover... Mas com esse tempo doido, talvez nem nunca mais chova!

Enquanto desce por entre as macambiras, o homenzinho lembra de Dragão. Aquilo é que era cachorro de verdade. Tivesse ele ainda, nem que fosse um Peba levaria para casa. Aquilo que era cachorro! A espingarda balança de um lado para outro, tocando suas costas, dançando no ar. Bem que podia vender essa bicha, compraria uma bicicleta, ou, quem sabe, até um cavalo. Correria todo o lugar no lombo do bicho...


A venda ainda está fechada. Assenta-se no banquinho do lado da porta e fica esperando. O sono pesa os seus olhos. A roça, se quiser, que espere! Hoje é dia de descansar! Não tem certeza se é domingo ou segunda. Ainda não são nem seis horas. O jeito é esperar. O jeito é tomar uma pinga e ir dormir. À noite, se não chover, descerá para a lagoa. Os peixes ele pegará, com certeza. Mas, se Dragão ainda existisse, pegaria o catingueiro e ainda traria um Peba de lucro. Aquilo é que era cachorro! Aquilo é que era!

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

SANHARÓ

A parede era rasgada por uma grande rachadura, quase como o rasgo de um pedaço de papel. Um pau fazia as vezes de escora, até que ela pudesse refazer aquele lado. Uma tarefa difícil, pois era ainda uma casa de adobe e somente ela poderia consertar, afinal, os meninos não teriam tempo para isso, estavam sempre no mato, cortando lenha, enchendo e esvaziando os fornos.

O rio barulhava no quintal, como se quisesse dizer alguma coisa. Mas ela não tinha tempo para ouvi-lo. Não àquela hora. Ainda tinha que bater a massa para a mistura, preparar o almoço, lavar as roupas, carpir os matos do terreiro. Os cachorros corriam de um lado para outro, brincando com um Jacu, que, do nada, aparecera. Ao longe, uma nuvem de chuva caminhava lentamente. De certo, choveria, depois de muitas luas. As plantas agradeceriam.

Enquanto a massa descansava e o arroz secava a água no fogão à lenha, assentava junto à porta e ficava a observar o tempo. Algumas lembranças vinham e uma lágrima, timidamente, escorria pelo rosto. Mas não tinha tempo para as lembranças. Levantava-se e punha a água para a vaquinha, que lambia o bezerro no curral, bem junto da casa, como que num puxadinho.

Tinha que passar a vassoura na casa, jogar uma água para abaixar a poeira. As crianças não tardariam a chegar em férias. Será que os biscoitos seriam suficientes? Melhor seria garantir mais uma sacada de pães de queijo! Alguns macaquinhos saltavam nas copas das árvores, enquanto as nuvens já se achegavam sobre a casa. O rio barulhava no quintal, parecia brincar de um lado para outro, alegrava-se com a chuva, aprazia-se em vê-la andando de um lado para outro. Alegrava-se deveras.


Os tempos passaram. As chuvas já não caem como outrora. Ela já anda de um lado para outro, descansa apenas. A velha casa já não existe, o rio, dantes alegre e brincalhão, silenciou-se quase por completo. Os meninos já não vivem mais no mato, alguns se foram, viraram lembranças carinhosas. As crianças cresceram, enquanto o Sanharó já não é mais nem um quadro na parede: Apenas um rasgo na alma.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

PEDRO

Já perto da aposentadoria, Pedro fizera uma promessa: quando se aposentasse, compraria um sítio, lá mesmo no Tabocal, e tomaria conta das casas de todos os outros sitiantes. Ele não queria criar gado, carneiro ou galinhas; plantaria algumas plantinhas, que molharia duas vezes ao dia, e, enquanto tivesse forças, vigiaria as casas dos outros, que não podiam ficar o tempo todo na roça.

 Pedreiro de mão cheia, quase nunca ficava sem serviço, mas, a cachaça e as mulheres nunca o haviam permitido comprar sua terrinha. De segunda à sexta ficava na cidade. Morava num pequeno barraco, sem reboco, que construíra com a ajuda do irmão, que mora em São Paulo e vem visitá-lo uma vez ao ano. Nos finais de semana, punha-se a rodar pelos sítios do Tabocal. Almoçava na casa de algum conhecido, tomava o café da tarde nalgum botequim por ali e jantava e dormia na casa de outro amigo.

A aposentadoria demorara um pouco mais do que o esperado. Aposentara-se com três anos de atraso. Dez por cento do que recebera atrasado foi para a conta do advogado, enquanto boa parte do que restara serviu para comprar a sua terrinha, uns quatro campos de futebol. A terra não era boa para o cultivo, nem havia água para irrigação. Recebia a água do poço artesiano, que servia a todos e era controlada pelo presidente da associação. Vendera o barraco que tinha na cidade, construiu uma casinha para morar, simplesinha, mas acolhedora. Arranjou quatro cachorros, que perambulavam solitários pelas ruas, e sentia-se feliz.


Todos já conhecem os hábitos de Pedro. Alguns já nem trancam mais a porta de casa e outros ainda deixam um lanchinho para que ele possa se alimentar. Uns, mais folgados, faz tempo que não voltam ao Tabocal. Pedro não importa, nem se sente explorado. Tira a poeira dos móveis, varre a porta das casas, molha as plantas, dá de comer aos animais, tira o leite das vacas e, já tarde da noite, volta feliz para casa. Agora ele possui uma razão para viver. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

CLÁUDIO

Sentado em uma pedra, Cláudio olhava para o céu. A chuva não tarda a chegar. E este pensamento ia se misturando a tantos outros que povoavam a sua mente. No dia de São Miguel havia chovido um pouquinho, bem pouco mesmo, algo como uma garoa, que nem bem molhara a terra. O ano que vem não será bom pra chuvas, a não ser que tudo vire. Se Deus não tiver dó, tudo isso aqui vira um grande deserto...

Cláudio se benzeu três vezes, procurou uma madeira e deu três pancadinhas. Que Deus perdoasse, às vezes, a gente pensa umas coisas meio sem pé nem cabeça. Mas o ano que vem não deve ser mesmo bom de chuva. Este ano começou até agradável, com pancadas para o lado de Pitão, algumas invernadas vindas de Água Boa e, dizem, no sul de Minas tinha chovido bastante; depois, já passado o meio do ano, tudo descambou para essa secura desvairada.

Ás vezes, Cláudio tinha vontade de xingar ao céus, dizer mesmo alguns palavrões, pôr para fora todas as suas insatisfações. Mas, e se Deus castigar?! O melhor era ficar quieto, guardar tudo dentro de si e rezar para que as coisas melhorassem. Onde ele estava já fora um rio frondoso, de águas violentas, tudo verde e bonito. Agora, tudo virou isso aqui: apenas pedras e terra, um toazão, só pedra e pó. A maioria dos sitiantes foi para a cidade. Alguns montaram vendas e vendem pinga para os que não arrajaram grandes coisas e viraram apenas beberrões, aguentando os desaforos dos filhinhos de papai, que acham que são os donos do mundo.


Cláudio, ás vezes, também pensa em ir para a cidade. Se vender o burro com a carroça, a casinha e a vaquinha com o bezerro, talvez dê para montar uma venda... Mas, e se nada der certo? E se um dos filhinhos de papai me encontrar pela rua, deitado nalguma esquina, embriagado, dormindo no relento? Não sou homem para aguentar desafios! O jeito é ir ficando, esperando pela chuva, que nunca vem.  

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

UM POEMA BRASILEIRO

Toda poesia inicia-se num devaneio metafísico.
Algo como uma pequenina e aloprada andorinha
Perdida num intenso (e imenso) matagal de ilusões.
Mas
Eis que a minha poesia
Que cisma em ser rústica e sistemática
Descamba às profundezas da politicalha
Inundando-se nas várias caixas em aranzel
Para
Depois
Já mais calma e influente
Poetizar-se num rio seco de emoções
Onde já não chovem mais palavras
Nem emergem dos sulcos queimados
Quaisquer gotículas de esperança.
Ao longe,
Enquanto minha triste poesia canta
Uma mínima luz me surge
Como uma lucidez em meio à noite
Escura, solitária e impiedosa
Desta gleba podre e sem futuro.

domingo, 3 de setembro de 2017

TONICO E A TRAIÇÃO

Agarrado ao cano da espingarda
O pequeno homem chorava
Tendo o corpo inerte aos seus pés.
Pela primeira vez
                  Ela estava aos seus pés
E rastejava.
Mas o pobre diabo não se alegrava,
Chorava apenas
                                  Copiosamente
Como se arrependesse do seu crime.
De súbito,
           O sangue subiu-lhe à cabeça:
- Nada poderia ser assim!
Ajeitou o corpo
                       Endireitou-se
                                           E atirou.
Depois, já mais leve
                                          E liberto
Virou-se

                                           E voou.

sábado, 2 de setembro de 2017

PRIMEIRAS SETEMBRINAS

1.
A mínima poesia
Em seus poucos versos
E várias entrelinhas
Trazem mais informações
Que toda uma vida
Despejada no sofá.
A verdade é que muitas letras me confundem
E tenho medo de me afogar.
Sou péssimo nadador
Sem nem ter aprendido voar.
Por isso
Não me alongo :
Prefiro o morro ao mar.


2.
Livre o livro voou
Planou perto do sol 
Beijou a face da lua
E
Inesperadamente
Pousou num canto da biblioteca. 
Estava preso por amor.

3.
A décima parte de uma poesia
É construção.
Uma mínima parte
É mera lapidação.
Todo o resto
Luzes
Dores
E aforismos
São flores em desconstrução.

4.
Do galho seco surgiu uma folha
que deu semente e se fez em flor.

Acocorado debaixo da velha árvore
com o machado em mãos
O homem se via perdido numa encruzilhada:
Era ainda Agosto,
Ou a Primavera já se achegava?


5.
Desnudo,
Abro a gaveta 
E entre tantas caras
Procuro
Paciente
a que melhor se encaixe
Na minha pobre poesia.


6.
Nesta sórdida nau, navegamos ao futuro incerto.
Não é preciso planos
Teses ou ações. 
Basta que fechemos os olhos e abramos asas à liberdade.


Talvez não passemos de fantoches,
Inocentemente manuseados
Por alguma infante mente nuclear;
E, enquanto escrevo poesias,
Nalguma parte costeira desta pobre embarcação,
Algum poeta desanuviado
Já tente se libertar
Aportando-se na triste praia da razão.

sábado, 19 de agosto de 2017

GILDA

Hoje, me peguei pensando em Gilda. (E quem ainda não teve o prazer de conhecê-la, por favor, retorne aos dois textos que fiz para ela, pesquisando na caixinha de pesquisa, bem acima, ainda nesta página) Fiquei pensando sobre o que terá acontecido com ela e o seu namorado. Terão os dois se casado, ou será que o roxo amor do embriagado Romeu não passava de delírios alcoólicos?

Se casados estiverem, será que ele cumprira as suas promessas? Será que ambos se tratam, ainda, por apelidos carinhosos, ou será que já se chamam apenas por “ou”? Ainda me vêm à ideia as tantas fisionomias de Gilda, afinal, quantas Gildas devem existir neste mundo, sendo amadas por bêbados amorosos capazes de vender tudo que têm, ou mesmo o que não lhes pertence, para juntar-se ao seu amor!

Soturnamente, sou poeta. E, enquanto poeta, como ofício, tendo a imaginar toda a maldita poesia agreste no amor da pobre Gilda. Por isso, enquanto fecho os olhos, em busca de alguma derradeira imaginação, posso encontrá-la com os cabelos desgrenhados preparando já o jantar, com a barriga toda suja, encostada num velho fogão à lenha, numa mísera casinha de adobe, enquanto o seu esposo, embora nunca tenham se casado de verdade, pois “amigado com fé, casado o é”, tira o último forno de carvão.

Talvez Gilda já tenha filhos. Pode ser que ela já traga, arrastados na barra da saia, dois catarrentinhos, que brincam o tempo todo no quintal, pelados e com a pele toda acinzentada. Quem sabe Gilda ainda traga um outro molequinho na barriga. E este não há de ser o último, afinal “Deus sempre ajuda a criar”. E, desse jeito, tenho a certeza de que ela é feliz. Assim são todas as Gildas que por aí existem, embora com fisionomias diferentes, com pensamentos e ideais distintos, mas todas sabedoras de que o amor ainda é o melhor remédio para todas as desventuras.


Talvez Gilda tenha se casado. Mas, pode ser ainda, que o nosso desgraçado Romeu tenha adormecido embriagado no passeio, naquela noite fria em que fizera tantas juras a sua amada. E, no dia seguinte, nem mesmo se lembrasse de quem realmente era Gilda; enquanto a pobre amante esperava, toda cintilante, pela chegada do seu príncipe encantado.   

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

MENINICE

O Pitinha ainda é um lugar onde as crianças brincam na rua. Com certeza, já não mais como brincávamos antigamente. No meu tempo de criança, quando ainda não havia tantos carros dirigidos por malucos ávidos por velocidade e nem tanta violência gratuita, quase todos os meus amigos estudavam de manhã. Os desenhos que curtíamos iam ao ar depois das cinco da tarde e os deveres de casa eram feitos logo depois do almoço, dentro de meia-hora, quando muito. A tarde, portanto, era toda nossa. Era um tempo longo e livre para brincarmos de tudo o que quiséssemos, onde bem entendêssemos.

Ainda vejo, na minha rua, alguns meninos e meninas brincando na porta de casa, sob os olhares vigilantes dos pais, sem a liberdade que tínhamos noutros tempos. É certo que alguns prefiram ficar em casa, cutucando as redes sociais ou assistindo aos desenhos na tevê; mas, ainda existe uma centelha que inspira aos mais velhos uma pontinha de esperança. Eu não seria louco de imaginar um bando de garotos correndo pelas ruas armados de tocos e gravetos, brincando de polícia e ladrão, nem tão ingênuo ao ponto de pensar que brincariam de “caiu no Poço”, sem segundas intenções. Já não vivemos os anos 80 e 90.

Às vezes, como quase sempre acontece com os infantes atuais, sentíamos tédio. Era difícil, mas, de tanto brincar, Existiam os momentos em que faltava saco para as velhas brincadeiras e, por isso, vez ou outra, fazíamos qualquer asneira; mas, como diz o ditado: “Deus protege os bêbados e as crianças”. Talvez, por isso, sentíamos no direito de pegar alguns gravetos e fazer uma “macumba” para que a velha Rural Willis do vizinho sumisse da frente de casa; assustando-nos, no outro dia, quando ela já não estava mais lá; ou de pegar a “traseirinha” de uma velha Picape, depois que o motorista já nos tivesse mandado descer. E foi numa destas que eu quase me lasquei.

Era uma tarde tomada pelo tédio. Robertinho e eu, assentados no degrau mais alto da calçada, escutávamos as conversas que rolavam no boteco do meu pai, geralmente, coisas à toa, banalidades e filosofias que nasciam e morriam entre os goles de cachaça. A velha Picape estava parada à nossa frente, com o seu dono bebericando o seu último copo de pinga, enquanto maquinávamos o nosso intento.

O carro deu partida e seguia devagar. Penduramo-nos na carroceria do carro e seguimos. Como o homem havia avistado a nossa subida, o veículo não ganhou grande velocidade e, depois de dobrar a esquina, parou lentamente para que nós apeássemos. Descemos e já íamos voltando para a porta do boteco, quando Robertinho ordenou:

- Vamos de novo, mas não deixa ele ver, senão ele não corre!

Subimos novamente, escondidos, na traseira da Picape, que rapidamente desenvolveu a sua velocidade. O vento me soprava o rosto e uma incrível sensação de liberdade tomava conta de mim; as casas passavam rápidas ao meu lado e, olhando para baixo, o asfalto corria em carreira desabalada. Eu nunca havia pegado “Traseirinha” de carro algum e não sabia como descer. Se continuasse em cima do carro, breve já não saberia como voltar.

- Vou pular. Depois você pula também. O carro tá ganhando velocidade!

Robertinho pulou e ficou à minha espera. Puxei o fôlego, segurei o ar e pulei. O pulo teria sido magistral, se eu tivesse me lembrado de soltar as mãos da carroceria. O dono da Picape não nos viu subir, logo, também não viu quando pulamos; arrastou-me por alguns metros, com o asfalto comendo os meus dedos, meus joelhos e cotovelos, até que eu fosse de encontro a um buraco no meio da rua. Com o bate no buraco, dei um salto para cima e, automaticamente, soltei as mãos da carroceria, estatelando-me no chão.


Lembro-me de que fui embora chorando, cheio de dores e com medo da minha mãe. Já em casa, ainda me recordo da surra que levei com um velho cinto de couro e, depois, sob os veementes sermões de minha mãe, da espátula do mertiolate tocando os machucados e ardendo até a alma.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

ARNALDO 1

Sente-se nesse banco e, por favor, reconsidere algumas falhas e mesmo alguns sentimentalismos meus; afinal, não é fácil relembrar um amigo de tão longa data. Mais que isso, o Arnaldo era um irmão que eu nunca tive. É verdade que, enquanto aqui esteve, nunca me veio a ideia de abraçá-lo ou dizer qualquer palavra de apreço. Você sabe... Posso chamá-lo de você?... Aqui no meio deste cerrado, junto das vacas e dos cavalos, acabamos por nos tornar duros, meio bicho mesmo. Falo de mim, que, às vezes, ainda me escondo das pessoas que me procuram ou invento alguma mentira só para não ter que estar junto de outros indivíduos. Veja você que prefiro conversar com o meu cavalo, enquanto perambulo por estes campos, a conversar amenidades com algum velho conhecido. Deveras, conversar mesmo, apenas com o meu amigo Arnaldo, que todos os dias vinha a minha casa tomar uma pinguinha e filosofar sobre coisas de pouca monta.

Interessante que você tenha vindo falar justamente do amigo. Não desacredito, quando diz que as histórias do Arnaldo têm corrido por este mundo a fora; o povo gosta mesmo de conversar. Só espero que a minha esposa do meu amigo não nos ouça, temo que ela fique meio atordoada com as lembranças que lhe contarei, se você tiver tempo e paciência de escutá-las. Pode ser que em nada isso acrescente às suas pesquisas; além do mais, nem sei que importâncias teriam as lembranças de um pobre desgraçado às páginas de um livro, de um blog, ou, mesmo, de um caderninho de anotações. Mas não julgo o seu interesse, cada um deseja o que lhe vier na telha.

Lindaura. Esse é o nome dela. E, você ainda há de vê-la, o nome faz jus a ela. Ainda é tão bonita quanto em quando era a esposa do meu amigo e vinha a minha casa, acompanhando-o, como uma mãe, na flor da idade, que leva seu pequeno filho à escola. Lindaura sempre fora uma mulher cheia de si, sempre com o cabelo solto dançando de um lado para outro, o rosto pintado e os lábios sempre cobertos por um vistoso batom vermelho. O Arnaldo, pobre coitado, vinha quase que arrastado pela esposa, com a sua cara de inocente e a felicidade com vergonha de se mostrar. Ele trazia sempre um sorriso tímido no rosto, como se isso irritasse alguém e, por isso, lhe causasse certo constrangimento. Mas, é inegável que ele sentia-se feliz ao lado de Lindaura.

Vejo que você não gosta de cachaça, se não, tem pouco o hábito de bebericá-la. Pois bem, Lindaura está na cozinha e, certamente, prepara um cafezinho para o nosso deleite. Também deve estar preparando um bolo de fubá. Sinta o cheiro, ela tem mãos de fada para essas coisas! Se quiser, mando que faça alguns beijus ou xiriris; ela é boa e, rapidinho, prepara tudo isso... Então, continuemos. Primeiro, um golinho para o santo... Essa é das boas!

Uma data certa não sou capaz de lhe dar, afinal, quando voltei de Montes Claros, ele já estava por essas bandas. Sim, eu era ainda um rapaz, tinha cursado o ensino médio, fiz um curso técnico e fiquei perambulando por lá durante um tempo. Conforme ele dissera depois, tinha vindo da Lapa do Bom Jesus, fugindo da seca, procurando algum recurso de vida. Nada mais dissera sobre si, e, confesso a você, também eu nunca perguntei.

Meu pai o empregara como vaqueiro. Tinha que ajudar os outros, tirar o leite das vacas, roçar os matos à beira da casa e, sempre que necessário, ir à cidade comprar coisas para a cozinha. Eu sempre lhe dissera que era o meu menino de recado, pois, nas festas que íamos por essas bandas, era ele quem sempre levava os meus recados às namoradinhas. O Arnaldo nunca se irritava com essa minha provocação, e, confesso a você, essa indiferença e resignação sempre me causava raiva do amigo.

Não se preocupe, amanhã continuamos a falar sobre o meu amigo. Mas, antes que parta, tomemos o café e comamos as guloseimas que Lindaura preparou. Depois da sua partida, ficarei um pouco mais nessa varanda. Vou esperar; quem sabe o meu amigo ainda volte. Sinto saudade das nossas conversas, enquanto bebericávamos os nossos goles de cachaça comendo torresmo e olhando o gado no pasto. Mas, se ele vier, me encontrará prevenido; sempre tenho o meu revólver a tiracolo e os olhos sempre abertos, afinal, seguro morreu de velho!  

  


sábado, 5 de agosto de 2017

AS LEMBRANÇAS DO POBRE ARNALDO

O Arnaldo é uma lembrança sobre quem não gostamos de lembrar, mas que a todo tempo nos assola. De vez em quando, vejo a minha sua esposa choramingando pelos cantos. Ela nunca me diz qualquer palavra sobre o marido, mas, sinto que a tristeza, ou algum sentimento obscuro, por vezes, toma a sua alma. E eu a entendo. Também eu sinto saudades do amigo.

Nesta manhã, enquanto tomava o meu café com pães de queijo, requeijão e alguns pedaços de bolo de fubá, observando as vacas que pastavam e os pássaros que cantavam na mangueira bem de frente a minha casa, eis que a lembrança do amigo me viera à mente. Senti que ele assentava-se ao meu lado, talvez querendo um trago de cachaça, como sempre tomávamos em quando vinha à minha casa. Meus olhos quase lacrimejaram e, por precaução, tratei de segurar firme o revólver que trazia debaixo do blusão.

É verdade que sinto falta do amigo, das nossas conversas, das discussões filosóficas e dos tragos de pinga, mas, e se tudo isso não fosse apenas a saudade trazendo as velhas recordações?! Ouvi, certa feita, pelos lados de Ibiaí, da boca de uma rezadeira, que somos capazes de sentir a presença de um inimigo, quando ele se aproxima, assim como também sentimos a presença da morte, assim que ela nos bate à porta.

O Arnaldo nunca fora um inimigo meu, mas, ninguém conhece o coração alheio. Ademais, entre o saber se vive ou se está morto, o melhor é ficar precavido. Espero ainda a vinda do amigo. Que venha num dia de chuva, quando eu tomar o meu café da manhã, e beberemos juntos, faremos uma “boca de pito” e colocaremos em dia todas as prosas que deixamos de versar durante todo este tempo.

Por enquanto, tenho rareado as minhas idas ao Pitinha. Quando a ida se torna inadiável, procuro alternar os caminhos e as horas de transitar. Faz tempo que não paro à beira da lagoa para sentir o vento que mais parece beijar a face dos transeuntes, enquanto brinca com as águas cristalinas, formando pequenas ondas que passeiam de um lado para outro. Também não me assento mais nos bancos da praça nas manhãs de domingo, quando a feirinha ainda dá os seus suspiros matinais.

Por estes dias, um compadre veio me falar dos bancos da praça, que davam um ar de modernidade ao lugar, enquanto a feirinha continuava com a sua tradicional cara de domingo interiorano, como deveriam ser todas as feirinhas, na visão do pobre homem. Eu não quisera render conversa e, antes que houvesse mais delongas, desculpei-me por algum mentiroso compromisso e fi-lo partir dali. Depois, lembrei-me do Arnaldo e deduzi todo o seu pensamento sobre os tais bancos.

Era comum que o meu amigo chegasse sempre cabisbaixo, segurando a mão da sua esposa. Ela vinha de cabeça erguida, caminhando sobre o quintal gramado como se desfilasse por uma passarela, os cabelos dançando de um lado a outro, enquanto os seios pareciam querer saltar de dentro da blusa e a saia querer subir pela cintura. Assentavam-se, ambos, à minha frente e, enquanto ela ajeitava-se, cruzando as pernas de um lado para outro, ele começava a falar sobre os vários assuntos de que ouvira na cidade.

A verdade é que eu sempre teimava em não concordar com o amigo, embora sempre soubesse, secretamente, que, em toda a sua simplicidade, ele sempre estivesse com a razão. A esposa não dizia nada, apenas sorria timidamente, com seus olhos de ressaca, enquanto eu vislumbrava toda a sua beleza ao lado daquele mísero sujeito. E ele falava sobre a falta de chuva, sobre os políticos, as politicagens e as politicalhas, até que chegássemos às pequenas coisas e às insignificâncias do lugar.

Certamente que o Arnaldo teria um parecer sobre os banquinhos, sobre o qual discorreria após pedir desculpas pela ousadia da palavra. Antes ainda, beberia mais uma talagada de cachaça, tiraria o pigarro da garganta, fumaria uma puxada do cigarro de palha e concluiria que “se fosse para modernizar que se modernizasse tudo”. O mais incrível do meu velho amigo é que com ele ou era oito ou oitenta. Talvez por isso nunca fora capaz de tomar qualquer decisão na vida, de dar qualquer opinião em meio às grandes autoridades, de seguir qualquer caminho por suas próprias pernas.

O Arnaldo era um sujeito inteligente, embora fosse rude e sempre trouxesse consigo um ar de inferioridade que, muitas vezes, não me causavam pena, mas, repulsa daquele homem. Eu gostava do amigo, embora às vezes tivesse raiva dele. Parece estranho, mas era um sentimento dúbio, que fazia com que eu esperasse a sua chegada, junto da sua esposa e as suas filosofias catrumanas.


Algumas vezes fui à casa do amigo, procurando por vestígios seus. Não tenho encontrado nada que valha a pena; mas também não tenho encontrado nada que comprove a sua morte. Por isso, tenho me precavido e andado menos pela cidade ou pelos matos. Prefiro ficar em casa com a sua minha esposa, tomando as minhas cachaças, fumando o meu roleiro, enquanto ela prepara o café da tarde, com broa e beiju. Mas as lembranças do amigo Arnaldo ainda teimam em ficar.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A POESIA DE DINGO



Os jornais do dia davam a mesma notícia, todos versavam sobre a votação contra o presidente. Na esquina, alguns homens, esquentando o sol da manhã, com toda a autoridade que o Jornal Nacional lhes dera, filosofavam sobre a situação do país. Um, mais exaltado, com o dedo em riste, falava que apenas o exército é quem resolveria o problema da nação.

Algumas mulheres tomavam café na porta da rua. Com um lenço encardido na cabeça, uma balançava a cabeça para outra e dizia, ainda com a cara amarrotada, um “Bom dia, vizinha”. A resposta vinha seguida por uma pergunta sobre a situação política e, logo, passavam-se às amenidades, enquanto o frio da madrugada dava lugar ao tímido sol matutino.

As varredeiras subiam a rua arrastando as vassouras de um lado a outro, jogando a terra que descia lá de cima para dentro dos buracos que formavam à beira do asfalto. Entre risos, uma vaticinava que “Um dia, alguém ainda cai dentro duma cratera dessas”. As outras riam olhando para o lado, para verem se o fiscal não estava chegando. Um homem passava de bicicleta e, balançando a cabeça, dava um rápido “Opa!” e seguia para o boteco. Precisava de um trago de pinga para começar o dia.

Algumas crianças desciam para a escola. As pesadas mochilas pareciam dançar em suas costas, enquanto elas conversavam sobre futebol, brincadeiras, namorados e vídeos do Youtube. O sino da igreja batia as sete badaladas e elas já deveriam estar no portão, ou dentro das salas de aula. Chegariam no segundo horário, não tinham pressa, nem vontade de estudar.

Alheio a tudo isso, Dingo descia, rapidamente a rua, com o sorriso estampado no rosto e toda a alegria que os sonhos lhe permitiam. Não guardava rancores ou desilusões; apenas parecia ter a certeza de que tudo não passava de mera poesia e, esfregando rapidamente as mãos, repetia aos sisudos transeuntes:


- Bora pra roça, bora pra roça, bora! 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O FIM DO NOSSO FUTEBOL

Quando criança, eu sonhava em ser jogador de futebol. Aliás, a maioria das crianças de antigamente sonhava a mesma coisa. Lembro-me de que todas as tardes brincávamos de “Golzinho” na rua da minha casa, se não, íamos até o “campinho de Menon” ou “detrás do parque” para batermos a nossa bolinha. Era incrível como surgiam tantos meninos, de todos os cantos, alguns que nem mesmo conhecíamos. E jogávamos todos.

Nos sábados e domingos, se não estivéssemos no campo, ou jogando algum torneio em Inhaúma, eu ligava o rádio na Itatiaia e, enquanto o Willy Gonser ia narrando as partidas do Galo, corria de um lado a outro do quintal, fingindo ser o Gutenberg, o Doriva, quiçá o Taffarel. É estranho, mas, naquela época eu não queria ganhar dinheiro com futebol, nem ir para a Europa jogar no Barcelona ou no Real. Queria apenas jogar no Mineirão lotado e (Incrível!), jogando no gol, defender uma bola “indefensável”, colocá-la à frente, fintar o primeiro, o segundo, o terceiro, partir pela direita, ultrapassar o meio de campo, fintar o zagueiro duas vezes, dar um chapeuzinho no goleiro e, só por pirraça, fintá-lo outra vez e marcar o gol por entre as suas pernas.

Depois, já sabedor da minha incompetência futebolística, contrariando o amigo que queria ir ao CT do Atlético para que fizéssemos o Teste, resignei-me em fazer carreira amadora, sem qualquer prestígio e qualidade, no glorioso Real Madri corjesuense. Sem qualquer brilhantismo, uns três gols de pênalti e um contra, corria em todas as posições das quatro linhas, apenas não me aventurando debaixo dos três paus.
Por fim, pendurei a chuteira conhecendo um pouco da numerologia que rege o esporte bretão, com a certeza de que todo bom time começa por uma defesa sólida, passando por um meio de campo rápido, firme e com alguma habilidade, culminando em atacantes matadores. A harmonia, portanto, deve dar o tom do esquadrão, caso contrário, ter-se-á apenas um aglomerado de homens correndo de um lado a outro, cada um querendo resolver do seu jeito, sem estratégia ou previsão de sucesso, assim como vemos hoje no Alvinegro Mineiro.

Certamente, no ano que vem, o Galo volte aos bons tempos, com um melhor planejamento e jogadores de maior qualidade, sobretudo, com um verdadeiro espírito coletivo. Quanto ao velho sonho de ser futebolista, adormeceu nas tardes dos finais de semana em que eu corria atrás da bola no quintal, para dar lugar a um mero espectador, sem maiores pretensões ou qualquer rusga pelo desarranjo profissional dentro do tapete verde.

O que me impressionam, no entanto, são as proporções a que o futebol tem chegado. Quando criança, enquanto via Bebeto desfilando o seu talento no La Coruña, da Espanha, e, por isso, torcia para aquele time, nunca imaginava que tantas cifras estivessem por trás do espetáculo. Aliás, se comparado com os dias atuais, nem era tanto dinheiro assim. O dinheiro já movia os atletas, afinal, é sempre preciso buscar uma melhor condição de vida, sobretudo, no futebol, onde a maioria dos jogadores é oriunda de famílias com baixo poder aquisitivo, muitos vindos de favelas e comunidades extremamente pobres.

Lendo “O Tempo”, de BH, fiquei sabendo que os cerca de 820 milhões de Reais que o Paris Saint German, da França, pagou (pagaria, ou pagará?) para tirar o Neymar do Barcelona, da Espanha, daria para pagar um mês de salário aos servidores da Educação de Minas Gerais. E olha que não ganhamos tanto assim, pelo contrário. É muito dinheiro para um jogador, indiferente se  seja o Ney, o Messi, Cristiano ou o Tonico de Dona Florzinha; o futebol deveria ser apenas uma brincadeira, com noventa minutos de diversão .

Algum leitor mais atento haverá de indagar o fato de a transação ter ocorrido em solo europeu e, por isso, nada termos nós a ver com isso. Mas, o problema não é o dinheiro ganho por Neymar, nem o salário recebido pelos professores. O problema é a essência do futebol. Poucas são as crianças que sonham jogar em um grande clube brasileiro. Os nossos pequenos futebolistas já saem das fraudas com um grande empresário (geralmente o pai ou um irmão mais velho), sonhando jogar num dos grandes clubes da Europa, ganhando milhões, comprando iates, carros de luxo, mansões, sempre acompanhados de lindas mulheres.

Salvas raríssimas exceções, já não existe mais a paixão pelo clube. Não nas nossas crianças. Os aficionados pelos times de futebol brasileiros somos os pobres mortais que já nem sonhamos mais em jogar bola profissionalmente. Os atletas, preparados desde o berço para seguirem a carreira de Pelé, Tostão e Reinaldo, são seres desprovidos de paixão clubística. No máximo, têm alguma simpatia por um time nacional, o que não o impediria de vestir a camisa do seu principal adversário. O importante são os barões caindo na conta, os seguidores das redes sociais, as aparições televisivas nas quartas e domingos.

O futebol de outros tempos não existe. Nelson Rodrigues, o mestre de todos os cronistas esportivos, haveria de decretar a falência do nosso futebol. O que existe, nestes tempos robóticos, são atletas de laboratório, criados para serem jogadores, cheios de músculos, com toscos cortes de cabelo e um monte de palavras pré-estabelecidas, a serem ditas nas concorridas coletivas, onde os repórteres de sempre haverão de fazer as mesmas perguntas, sem conteúdo nem interesse. Enquanto isso, os torcedores ficam em casa, assentados no sofá, tomando cerveja e comendo seu tira-gosto, xingando o “professor pardal”, que não soube mexer no time; pedindo a cabeça do presidente, que montou mal o seu elenco. Nas arquibancadas, alheios ao futebol, alguns indivíduos acenam para as câmeras de TV, enquanto outros tiram selfies para as redes sociais e outros, menos socializados, matam-se com paus, pedras e cusparadas.  



sábado, 29 de julho de 2017

O RUSTICÃO



- Catarina nunca haveria de me compreender.

E enquanto caminhava, à beira do asfalto, André ia relembrando os tantos anos que havia vivido ao lado dela. Catarina tinha sido a primeira paixão da sua vida. Filha de um desembargador, ela crescera passando as férias na Europa, comendo escargot, andando de iate e frequentando as melhores festas da high Society. Desde criança, acostumara-se a aparecer nas Colunas Sociais, sempre com o ar de superioridade e a falsa modéstia que caracterizavam os nobres das grandes cidades.

André não era de família rica. Seus pais, no máximo, eram “bem de vida”. Ele nunca havia passado fome, mas também nunca havia ganhado do pai um autorama ou um videogame de aniversário. Nas férias, ia ao sítio do avô, onde ficava isolado durante um mês, andando a cavalo, tomando banho de rio, comendo abóbora com quiabo e carne de porco.  Os pais nunca passavam as férias na roça. O velho era dono de uma pequena loja de baterias para veículos, enquanto a mãe trabalhava no fórum, revisando arquivos e enviando cartas. A mãe, embora tirasse férias ao mesmo tempo em que André, sempre tivera que ficar com o pai, ajudando na loja, cuidando da casa.

Ele nunca reclamara a falta dos velhos. Era melhor assim: tinha a liberdade para andar de um lado a outro sempre que quisesse. Os avós não reclamavam e até incentivavam aquela vida. O avô dizia que a liberdade e os tocos far-no-iam um homem, enquanto a avó dizia que criança tinha mesmo era que brincar. Que os pais ficassem na cidade, ele gostava mesmo era da roça.

 Na escola, nunca fora um nerd, embora sempre passasse com notas consideráveis. Estudava menos do que devia, mas, talvez pela facilidade em escrever, sempre alcançava as notas que lhe garantissem a manutenção da bolsa. Os pais não tinham condição de pagar a escola particular em que estudava, mas, graças a uma prova que fizera ainda nos anos iniciais, já no último ano, adentrara o sexto ano como bolsista e ia caminhando devagar.

Todos os dias, acordava às cinco e trinta, banhava-se, vestia-se e, com o cabelo besuntado de gel, seguia para a escola. Já adolescente, com as barbas começando a crescer, via-se obrigado a passar a Gilete na cara e ir, feito uma criança, todo engomado, para junto dos outros mauricinhos. A maioria dos alunos eram filhos de juízes, desembargadores, políticos e grandes empresários. Apenas dez por cento, seguindo às novas regras sociais, eram advindos de classes inferiores. Nada mais justo que estes se unissem contra a maioria.

André havia frequentado os dois lados da trincheira. De início, andara se enturmando com os bolsistas. Pelos corredores da escola, era possível vislumbrar um pequeno grupo que se juntava e começava a tagarelar, em alto e bom som, contra as políticas vigentes. Em sua maioria, aquele grupo era composto por negros, indígenas e pobres.  O uniforme era doado pela escola, mas, ainda assim, muitos conseguiam destruí-los. Alguns rasgavam as calças e andavam sempre com as camisas para fora, amarrotados e com as roupas enxovalhadas. Ainda havia aqueles que vestiam o uniforme, com a gravata arrumadinha e a camisa por dentro da calça, mas, só para subverter a ordem, conforme dizia o diretor, calçavam uma velha alpercata feita com borracha de pneu.

A verdade é que aquele grupo tinha feito um pacto. A união deles não deveria ser um mero ajuntamento de classe, mais que isso, eles deveriam ser uma família, ou algo parecido. Resolveram chamar, então, o grupo de Irmandade; de fato, uma irmandade secreta, com regras e objetivos certos, a serem cumpridos a seu tempo, como forma de solidificar os pensamentos em que acreditavam.

E durante muito tempo André seguiu todos os preceitos da irmandade. As notas nunca poderiam passar dos setenta e cinco pontos, também não podendo ser menor do que sessenta e cinco, para que nenhum deles perdesse a bolsa. Assim, era preciso que houvesse um controle nos estudos e nos distúrbios, mostrando que eram eles quem mandava no seu próprio destino. A barba, antes sempre raspada, como ordenavam os pais, agora era deixada por fazer, como sinal de rebeldia e maturidade. E dentre as tantas regras a serem seguidas, uma satisfazia plenamente os anseios de André: “Todos somos frutos da terra e, por isso, como ela sempre devemos ser”. Portanto, a rusticidade deveria prevalecer no âmago daquele grupo.

André era feliz com a irmandade, as suas regras e as férias na roça. Mas, eis que numa festa de fim de ano, quando todos os alunos deveriam se confraternizar, Catarina floresceu à sua frente. É verdade que já a tinha visto muitas vezes pelos corredores da escola. Era aluna do primeiro ano azul, enquanto ele era do verde. Nunca haviam conversado, apenas respiravam o mesmo ar, independentes um do outro.

Ele estava encostado na parede, coçando a barba, conversando com dois colegas. Alguns alunos dançavam no salão, enquanto algumas meninas conversavam assentadas no sofá e uns professores tomavam ponche à beira da janela. A festa não tinha graça alguma, mas todos tinham que estar ali, sob a ameaça de não passarem de ano. Ele não tinha reparado quando ela aproximou, mas com um sorriso aberto e solícito, com a voz firme, Catarina convocou:

- Vamos dançar!

Por um tempo, meio estupefato, André não soube o que dizer. Quando ia negar, ela já o puxava pelo braço. Dançaram durante um bom tempo sem que qualquer palavra fosse dita; depois, como que num sobressalto, Catarina parou de dançar e, antes de se afastar, cochichou no seu ouvido:

- Estou te esperando no jardim.

André e Catarina namoraram durante seis anos e meio. A Irmandade tinha sido deixada de lado e, embora os amigos sempre reclamassem a sua falta, preferia ficar junto da amada. Deixara de ir ao sítio nas férias e até mesmo o gosto da abóbora já não sabia mais qual era. Aparecia nas Colunas Sociais junto de Catarina, mas, nunca de mãos dadas, sempre a um passo atrás, como se fosse um passante que estivesse por ali na hora da fotografia. Sempre frequentava a casa dos sogros, mas nunca era convidado para as reuniões de família.

Ele não se sentia excluído ou inferiorizado por isso. Até entendia os motivos daquela família: Ele não era da Alta Sociedade e, por isso, deveria saber o seu lugar. Contrariamente, agradecia sempre ao sogro pela ajudava que lhe havia dado, afinal de contas, fora uma indicação sua que o permitira um estágio remunerado num dos maiores escritórios de advocacia do estado. Se havia se formado em Direito, devia ao sogro e sua influência.

Catarina também se formara em direito e, graças ao pai, já estava convocada para trabalhar na Noruega, no consulado brasileiro, como adjunta, já com as pretensas oportunidades para que, logo, galgasse ao posto máximo da diplomacia internacional. Ele ainda não sabia bem o que faria, talvez estudasse para promotor ou juiz, quiçá, montasse o seu próprio escritório de advocacia. Se bem que, bem no fundo de sua alma, uma centelha ainda nutria a vontade de voltar ao sítio.

O convite de casamento viera faltando apenas seis meses para a viagem de Catarina, num jantar em família, enquanto o sogro abria o vinho chileno, que havia anos descansava na adega:

- André, meu querido. Faz tempo que namoramos e acho que já é tempo de nos casarmos. Estive conversando com o papai e acho que é plausível fazermos a cerimônia daqui a seis meses. Casamos num dia e no outro viajamos à Noruega. O que acha?

Ele pensara em negar. Lembrara-se da Irmandade, do sítio e dos avós. Aquela seria a oportunidade de realizar o sonho dos seus pais. Seria alguém na vida, embora sempre à sombra da sua esposa. Teria o amor que Catarina tanto sentia e sempre lhe demonstrava, mas, ainda assim, seria sempre o menino solitário, querendo andar a cavalo e tomar banho de rio. Resignou-se e aceitou as ordens de Catarina. Marcaram, enfim, o casamento.

Os seis meses passaram rápido. A notícia da cerimônia estava estampada nos jornais e vários colunistas afirmavam ser aquele o casamento do mês, a maior realização pessoal na vida da filha do desembargador, que, em breve, haveria de ser uma influente consulesa. Alguns ainda diziam que aquela também seria a virada na vida de André, um plebeu que tirava a sorte grande, ao se casar com uma mulher bonita, inteligente e rica. Ele lia tudo aquilo em silencio, mas, seus olhos demonstravam toda a sua insatisfação.

O casamento haveria de acontecer no sábado à tarde. Durante a semana, os noivos ficaram isolados, Catarina numa clínica particular, descansando, cuidando da beleza, fazendo os planos para o futuro de ambos. André não quisera ir para o hotel sugerido pelo sogro. Durante toda a semana ficara em casa, trancafiado no seu quarto. Não quisera falar com os pais, falar ao telefone ou ler jornais e revistas. Durante todos os dias, o som permanecia ligado todo o tempo, sempre tocando música caipira, reavivando as lembranças dos velhos tempos.

No dia do casamento, ainda de madrugada, André olhara-se no espelho. Fazia uma semana que não se barbeava. A barba estava grande e já com alguns brancos. A roupa, há muito não trocada, estava enxovalhada e amassada. O cabelo estava emaranhado e precisando de uma boa lavada. Não tinha como fugir daquelas lembranças; a sua imagem no espelho fazia-o relembrar da Irmandade e dos tempos no sítio. E junto das lembranças, viera também a recordação de que no dia em que criaram o grupo, numa das tantas regras propostas, prometeram todos, independente do que acontecesse, reunirem-se novamente, a fim de garantir a fidelidade do grupo.

É bem verdade que já não se achava no direito de frequentar a Irmandade. Mas, como na Parábola do Filho Pródigo, haveria de ser ainda recebido pelos seus irmãos. Depois, haveria de seguir para o sítio. Os pais não entenderiam, assim como nunca o tentaram entender, mas, embora ele amasse Catarina, aquela não era a sua vida. Sempre fora um membro da Irmandade, embora corrompido pelo amor, e a roça era a sua liberdade. Queria, de novo, tomar banho de rio, andar a cavalo, comer abóbora com quiabo e carne de porco.

Antes que os pais acordassem, André pegou a sua mochila e saiu porta à fora. A reunião da Irmandade aconteceria no sítio dos seus avós. Os velhos já não existiam e os pais há tempos não o frequentavam. Chegaria ainda durante o dia, arrumaria tudo e esperaria pelo resto do grupo. Depois haveria de ficar por lá, solitário, liberto de tudo aquilo, como se fosse um rústico de verdade, um fruto da terra que como ela deveria ser. E, enquanto caminhava à beira do asfalto, repetia:

- Catarina nunca haveria de me compreender.

   
    

   

sexta-feira, 28 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO FINAL)

O vento estava ainda fraco e trazia nuvens, até então, brancas e muito pouco densas, no entanto, à medida que este aumentava a sua força, apareciam algodoais de nuvens escurecidas, de um acinzentado grosso e raios faiscantes que cortavam todo o seu interior como se fossem onças, animais febris, em noite de lua cheia e tempos de cio. Era a hora da Ave Maria e o tempo, que antes era claro e brincalhão, escurecia paulatinamente e tornava toda a estrada sombria, pouco habitada e quase intransitável. Os bichos corriam desesperados para as suas tocas e ninhos, enquanto as árvores tentavam se equilibrar sobre seus próprios troncos. Era o mês de março, em meados da quaresma, tempos em que a religiosidade era o guia do sertanejo e o medo dos demônios e espíritos do mal encolhia a coragem dos jagunços e homens de força, fazendo destes, nada mais que simples mortais. Eram poucos os que se atreviam a sair da segurança de suas casas após o cair a noite e, não obstante, os que se diziam destemidos precaviam-se com terços e rezas milagrosas - como aquelas de afastar maus-agouros e as de se manter o corpo fechado. Era ainda o tempo prestoso para macumbas e os serviços de pouca-fé, e as estradas, quase todas elas, enchiam-se de velas vermelhas, orações fortes, galinhas pretas e outros objetos de porcarias e pensamentos ruins.

     O cavalo andava a trote manso, como se nem uma rédea ou estribo o guiasse pelo caminho. Uma voz desafinada tentava entoar um cântico triste, a qual, vez ou outra, era interrompida para um pigarro ou uma reclamação. José tentava se equilibrar sobre o selote do cavalo, mas sentia que alguma coisa o tentava puxar para junto do chão. Sustentava-se com muita dificuldade e quase não podia enxergar o que havia à sua frente. Fiava-se no cavalo que conhecia todo o caminho a ser percorrido como se fosse uma parte da sua pata. Sentia cabeça rodando e o corpo cansado, como se estivesse quase por adormecer, tentava manter-se acordado, no que sempre se via traído pelo cansaço; algumas vezes se esquecia das pernas e, outroras, não tinha mais o tato dos dedos e das mãos, então soltava as rédeas e se deixava cair deitado sobre a crina do seu cavalo, o único amigo que lhe havia resistido a todos os problemas e tempestades.
     Primeiro foi uma luz intensa que quase o pôs cego; depois foi um estrondo forte e virulento que quase o ensurdeceu. O cavalo, num átimo de medo e espanto, saltou de costas e dando solavancos para frente e para trás, saiu em disparada pelos lados de onde vinha vindo; José, que quase não tinha mais segurança dos seus sentidos, no primeiro solavanco do animal, despencou da montaria, sendo jogado fortemente com as costas contra o chão. O bate foi forte, causando um grande estardalhaço entre os animais que presenciaram aquela cena, no entanto, não foi o suficiente para que ele perdesse de todo os sentidos. Uma lágrima caiu dos seus olhos e, enquanto a chuva começava a desmoronar, não sentindo mais as pernas, buscou forças para se arrastar até debaixo de um pequizeiro, onde, chorando copiosamente, adormeceu sob os raios e os trovões que cortavam os céus em grande velocidade, enquanto chamava pelo nome de madalena.


     Ela olhava pela janela a tempestade que começava a cair. Sentia saudades do Sanharó e, o que mais fazia sofrer o seu coração, tinha saudade de sentir o corpo, de ver o rosto, tinha saudade de ouvir a voz bonita de José. Sentia o peito apertado e um frio estranho e envolvente cismava em lhe subir pelo corpo; sentiu-se estontear e, para que não caísse de encontro ao chão, segurou-se à janela para que pudesse se manter de pé. Eleovaldo, que estava numa das ante-salas da casa, veio chamá-la para que fosse descansar:

     - Meu amor, já é tarde, vem dormir; vem descansar e se esconder deste frio, que isso pode lhe deixar febril.

       Vendo que a esposa não respondia ao seu chamado, chegou mais para perto dela e envolvendo-a pela cintura afilada, abraçou-a calorosamente. Madalena refutou aquele abraço com uma palavra carinhosa, mas, dentro de si, sentia uma grande ojeriza por aquele homem que a envolvera e tinha vontade de vomitar. Logo que ele saiu para o seu quarto, ela deixou que uma lágrima brotasse dos seus olhos, se lembrava do seu casamento, das lembranças que tivera de José naquela noite e a vontade que tinha de fugir daquele momento. Tinha sido uma cerimônia bonita e todos puderam notar que o noivo fizera todos os esforços para quer tudo fosse do bom e do melhor, ele era um homem repleto de felicidade. Eleovaldo era quem, de fato, havia se casado, mas Madalena tinha a sincera convicção que era a outro que ela pertencia; Nunca havia gostado daquele homem com quem contraíra matrimônio, deixara-se levar pelas suas palavras bonitas e sedutoras e não quisera acreditar nas verdades do seu amor; as circunstâncias a haviam traído. Temia que já fosse tarde para se arrepender, pagava um alto preço por não ter acreditado na verdade. Deitara-se com outro homem, mas tinha a certeza de que a criança que gerava em seu ventre era daquele homem há quem um dia, quando criança, fora prometida pelas águas do Sanharó.

      Os pensamentos vinham como se fossem cascatas em sua mente, enquanto, do lado de fora, por entre as árvores e mato fechado, a chuva, a cada minuto que passava, aumentava ainda muito mais. Lembrava-se de Bento, e suas palavras vinham-lhe à mente de uma forma mansa e previam todo o seu futuro: “Sabe, Madalena, o futuro é do rio, e ele diz que ocê há de pertencer somente pra o Zé. Cê foi prometida pelo rio e ele diz que ele é quem vai guiar ocês. E ele é quem faz o futuro d’ocês”.

     Talvez, outra pessoa pudesse não crê naquelas palavras infantis, mas ela, Madalena, sabia, de muita verdade em si, que todas as profecias do irmão ainda haviam de se realizar um dia. Não sabia, nem podia imaginar por quais bandas o irmão andava, mas estava com a certeza no coração de que ele já tinha completado o seu destino e, agora, era chegada a sua vez, tinha de se fazer realizar a profecia.

     Madalena foi até o quarto em que o marido dormia como se fosse uma pedra, trocou-se do pijama - roupa que aprendera a usar após o casamento - por uma roupa qualquer e, de pont-pé, sem que ninguém desse por sua falta, saiu vagando na noite escura, debaixo da chuva forte, para cumprir o seu destino e encontrar a sua felicidade.


     Talvez ao leitor possa causar estranhamento, ou mesmo incredulidade, no entanto, faço sabê-lo que tudo o que nestas linhas está escrito é a única e mais pura das verdades. Antes que possa causar a alguém alguma dificuldade, cabe o esclarecimento de que nem sempre o que me é tido como verdade, de fato, o é para quem possa parecer, logo, me abstenho das discussões prolongadas e procuro me ater somente àquilo pelo qual pude me convencer.

      Não quis abrir nenhum capítulo especial para uma observação tão desprovida de relevância e, não obstante, continuo a relatar os fatos a que me prendo e digo que... Naquela noite de chuva, enquanto Madalena, desesperada, corria pelos matos em busca do seu amor, sofrendo arranhões, rasgões e escoriações por todas as partes do seu corpo, alguma coisa de muito estranha acontecia na estrada deserta em que José adormecera e, agora, já se punha a mercê do fino fio que liga o sonho e a realidade. Digo, e repito que era tempo de quaresma; de acordo com a religiosidade cristã, época em que sofreu o filho de Deus em momento véspero da alegria pascal; logo, reafirmo, ainda, que era também o tempo em que muita coisa, estranha, e até fantástica, medonha, ou esquisita, poderia, de fato e procedência, acontecer.


     Uma mão pesada e muito macia tocava o seu rosto; um cheiro de rosas tomava conta do ar; pássaros cantavam em coro os cânticos que embalavam os seus sonhos de criança; uma chuva mansa e lenitiva caía sobre a sua cabeça, como se fossem pétalas de rosas jogadas pelos anjos, do ponto mais alto dos céus; e podia-se sentir que eram anjos maravilhosos, despidos de todas as suas vestes, eram homens e mulheres e tinham os corpos esbeltos e bem tosados pela natureza; eram anjos límpidos de qualquer pecado e ninguém se envergonhava de sua nudez; sentiam-nos todos nus, mas não tinha qualquer desejo, estava feliz e sentia-se em paz consigo e com todos que o rodeavam.
     Notava-se que o tempo inexistia e todas as coisas eram, em um só tempo, o tudo e o nada. As árvores tinham as copas com um verde vívido e os campos eram tão bonitos quantos aqueles de que sua mãe contava quando ainda era bem pequeno; as cores pareciam fortes, mas eram carregadas de muita paz e felicidade. Conseguia sentir os bons fluidos que subiam do chão e das gramas verdes à beira do rio; e o rio era de um verde quase em tom de azul e corria manso, e tinha um sorriso fácil nas suas margens, como se se tratasse do velho Sanharó.

     A mão acariciava o seu rosto e ele sentia que pingos de chuva desciam por sua face, que estava quente como se em estado de febre; tentou ouvir alguma coisa, mas o silêncio era profundo e acalentava a sua alma; tentou abrir os olhos, no entanto, suas pálpebras não seguiam as suas ordens; quedou–se no seu íntimo e tentou descansar um pouco mais. Já estava quase adormecendo, mas ouviu uma voz que o chamava. Não que tenha se prestado ao menor esforço, mas sentia que os seus olhos se abriam e, ao desaparecer-lhe o véu de nuvem branca que o cegava, pôde ver, em sua frente, um homem forte e elegante que – sentiu de si para si - era com se fosse uma sua figura num espelho de cristal.

     José nunca tinha sido homem de muitos medos nas idéias e nem o sentia naquele instante, mas tinha o coração acelerado e todo o corpo lhe tremia em desmantelo. Tentou se levantar e foi logo ajudado por aquele estranho, e ele tinha as mãos macias, sem calos nem judiações da vida no roçado. Pôde sentir um cheiro bom que exalava daquele corpo, e era um cheiro suave de rosas e água doce dos rios; uma coisa estranha rodeava aquele homem e era como se luzes brotassem de dentro dele e clareassem todas aquelas árvores e os bichos que ali viviam e ele logo pôde perceber que todo aquele mundo parecia girar em torno daquele ser.

      Sentaram-se os dois sobre uma pedra coberta por flores e rosas avermelhadas, e anjos e borboletas douradas traziam muitas pétalas e entoavam cânticos de harmonia enquanto jogavam-nas sobre ambos; eles se olhavam bem no fundo dos olhos e um sentimento profundo brotava no coração de José, era como se e já se conhecessem, ou , quem sabe, fossem irmãos desencontrados pela vida; sentia vontade de chorar e o corpo tremia como se fizesse frio, sentia vontade de abraçar o amigo – já o tinha como se de muito conhecido - , queria tê-lo como se fosse um grande amigo seu. Queria fazer várias perguntas ao desconhecido, no entanto, sua voz faltava e, se a voz não lhe faltasse, faltar-lhe-ia coragem para tanto. Ficou calado e ouviu atentamente, quando o outro lhe falava sobre coisas de que só com ele, José, havia acontecido. A voz do estranho saía firme da sua boca, mas era suave como se fosse a própria voz da natureza; fosse um dia de grande tempestade em alto mar e aquela voz seria o cântico de uma sereia que viria para apaziguar todas aquelas águas; fosse uma noite de turvação e aquela seria a voz de uma mãe que acalentaria o seu bebê. E ele disse:
      - José, meu caro amigo, não se assuste comigo. Talvez ainda não me reconheça, mas sabe que somos feito dois irmãos, carne e unha, pedaços de um no outro. Sinto uma grande felicidade em poder colocar a minha voz nos seus ouvidos. Já nos falamos muito, mas você nunca foi de me escutar._ Ele tentava recordar aquela voz, mas irritava-se, pois cria que sua memória teimava em lhe trair. Queria sentir muita raiva de si e daquele outro, mas era impossível que se irritasse; tentou perguntar pelo seu nome, quem era de onde vinha e o que queria naquele lugar... Mas calou-se novamente e ouviu tudo aquilo que o outro tinha a lhe dizer:

     - Sei que são muitas as suas dúvidas, mas penso que em tudo posso lhe explicar... Como já lhe disse, somos velhos amigos, muito embora você ainda não me reconheça. Mas lembre-se que, ainda hoje, se banhou nas minhas águas, era ainda de manhã e pude ver que uma grande tristeza tomava conta do seu coração, estava triste e muito pouco prazeroso... Sinto feliz quando também você está e me entristeço quando você padece de tristeza ou mazela. – José não conseguia acreditar que conversasse com a própria essência do rio; sabia que Bento, em seu tempo de criança conversava com ele, mas não cria que também pudesse ter tamanha alegria; ajeitou-se melhor na pedra em que descansava o seu corpo e já não sentia mais o gosto de álcool na boca, teve saudades de Madalena e quis chorar, sentiu um bolo formar-se em sua garganta, mas segurou-se, se recompôs e tornou a voltar toda a sua atenção para a voz do locutor, que dizia:

     - Consigo sentir em mim tudo aquilo que causa a sua dor, mas digo-lhe que não se avexe, pois é findada a questão. Tudo começa um dia e noutro tem que se ter um fim, e com a sua história não há de ser diferente. Lembre-se de que escolhi você para me seguir e sei que não pude mais me arrepender, você é um homem de brio e sei que a força nunca foi de lhe faltar. Sei de todo o seu sofrimento e posso lhe afiançar que nada do que fez foi um serviço perdido... Tem a minha bênção e só isso já lhe é um porto seguro. Não fui capaz de deixar que andasse sozinho, no entanto, fiz com que soubesse que tinha um caminho já previsto a seguir; lembra-se do que Bento lhe disse? Pois bem, eis que é chegada a hora, deve ser cumprido o prometido e os destinos haverão de se cruzarem. - As palavras dele entravam no coração de José, fazendo com que várias lembranças passassem em sua mente, como se fossem filmes de recordações felizes, eram recordações da sua meninice em que estavam presentes Bento, os meninos e, principalmente, Madalena, o seu grande amor. Ele sentia uma grande saudade do menino e suas profecias, sabia que ele tinha cumprido o seu destino e sentia-se feliz por ele; mas com Madalena era diferente, sentia-se estranho e sempre havia uma grande vontade de estar ao lado dela, não gostava apenas, sabia ele - porque Bento o havia dito - que tinham sido feitos um para o outro. Sentia-se feliz em saber que tudo estava para ter um fim , mas temia, tinha medo de que ela não viesse, que não quisesse vir.

     José permanecia estático em seu canto e, de acordo com os relatos do Sanharó – ele falava de fatos há tempo acontecidos- as lembranças ressurgiam em sua mente e ora eram lembranças boas, outras eram lembranças más e que ele pensava estarem há muito tempo esquecidas. Prestava bastante atenção no que o outro dizia, crendo cada vez mais no que ele dizia ser; não tinha olhos para qualquer coisa que pudesse acontecer ao seu redor, não tinha preocupações e apenas remoía-lhe, ainda, no peito a esperança de que Madalena lhe viesse encontrar.

     Ele ouvia os relatos de como os sonhos lhe vinham à mente em noites de lua cheia e, agora, sabia que todos os pesadelos que não o deixavam dormir eram apenas o rio que o avisava para que nunca pudesse esquecê-lo. Conversaram, ou melhor, o rio conversou por um longo tempo, no entanto, o tempo ainda parecia ser o mesmo; estavam em lugar que parecia um espaço distante e, de uma forma estranha, bem dentro de tudo aquilo que ele já conhecia.

     O rio calou-se um instante, olhou para dentro de si e, consultando uma borboleta que colhia algumas flores ao seu lado, apontou o dedo para José, sorriu e sentou-se numa pedra recolhida do lugar em que se encontrava. Ele, José, não entendia nada do que se estava passando, mas sentia uma grande alegria brotar do seu peito; uma luz verde surgiu por entre umas folhagens que estavam à sua frente, como se fosse uma lanterna que guiava algum andante; tentou ver por entre a luz, mas era impossível; limpou a turvação que lhe tomava a vista e sentiu uma tonteira tomar a sua cabeça, quase caía, mas, logo foi amparado por uma mão que o segurava, e era uma mão macia e pequena que julgava, há muito, conhecer, estava quente e dela subia um delicioso cheiro de jasmim. Pensou querer desfalecer de alegria, mas recompôs-se e abriu os olhos. Madalena estava com os olhos rasos d’água e dos seus lábios nascia um maravilhoso e puro sorriso, o coração de José batia acelerado e suas mãos e pernas punham-se a tremer; tentou dizer qualquer palavra, mas calou-se e sentiu-se comprazido em abraçá-la, sentiu o calor do corpo da mulher amada penetrando a sua alma e sorriu maravilhado.
     Ambos se olharam por longo tempo sem que conseguissem proferir qualquer palavra que fosse. Uma chuva de rosas verdes, amarelas e azuis começou a cair sobre eles e os pássaros, anjos e borboletas voltaram a entoar, em alto e bom som, os belos cânticos da mãe natureza. Nem José ou Madalena disseram coisa alguma, pois estavam certos de que, muitas vezes, o silêncio é o melhor remédio para todos os problemas. Digo, leitor, que não mais naquele casal existiam resquícios de dor ou desilusão, pois, somente um verdadeiro amor é capaz de sanar todo e qualquer sofrimento.

     O rio continuava em seu assento, um trono para o seu reinado, e era iluminado por vaga-lumes e adorado pelas borboletas e anjos; e dos seus olhos saltavam luzes que eram flashes de  prazer e alegria. A luz que os envolvia foi se tornando cada vez mais fraca, até que pudesse, bem no meio do rio, desaparecer na água por completo. Eram altas horas de uma noite fria e chuvosa e um menino que, por tessitura do destino, sonhava um sonho de amor, passava por ali e ouviu para transmiti-los, nestas folhas, o exato momento em que ambos proferiram juntos as suas últimas palavras:
- Eu nasci só pra amar ocê!


     “Queria dizer que todos viveram felizes para sempre, como sempre se espera de um romance feliz, no entanto, o personagem principal da nossa história teve um fim trágico e melancólico, morreu nas mãos do seu maior inimigo: o homem, com os desmatamentos, o uso indevido de suas águas e o assoreamento de todo o seu leito. O rio Sanharó não existe mais, contudo continuam vivas as suas lendas e as suas mais belas histórias; histórias vivas do sertão.”


FIM!!!





LUÍS PIRES DE MINAS 06-05-2006