domingo, 29 de março de 2020

A CATIRA

Isto foi há muito tempo, quando nem mesmo a televisão havia se proliferado como praga pelas casas dos sertanejos, pois que muitas nem luz ainda possuía, e a única diversão plausível era, nas tardes de domingo, tomar pinga e jogar conversa fora na venda de Cristiano.

Juliano e Luciovaldo eram frequentadores assíduos da venda e, por isso, acabaram por construir uma amizade verdadeira, tornando-se deveras  mútuos confidenciadores. Assim, Juliano ficou sabendo, por palavras do próprio amigo, que as coisas não iam bem na casa do Sanharó.

A esposa de Luciovaldo tinha uma beleza inconteste, mas o amigo não estava satisfeito. Já não sentia mais atração por ela e queria mesmo era uma mulher que o ajudasse na roça, para que pudesse fazer logo o seu pé de meia e não precisasse mais trabalhar debaixo de tanto sol, afinal, já estava passando pela curva da Boa Esperança.

Juliano viu ali uma possibilidade. Apesar de casado, sempre tivera olhos para a esposa do amigo. Não que desgostasse de Joaquina; mas, convenhamos, a outra era bem mais bonita que a sua. Além disso, já não precisava mais de tanto dinheiro, querendo mesmo era gozar as poucas alegrias desta vida.

Ambos já estavam pela quarta ou quinta dose de cachaça, quando a proposta apareceu: a troca das esposas, com Luciovaldo recebendo, a título de  compensação, dois sacos de farinha e uma medida de feijão. Sem que houvesse brechas para que qualquer um dos amigos desfizesse o negócio.

Para o bem de ambos, a catira foi fechada, faltando apenas o aperto de mãos, assim como se procedia naquele tempo, quando o fio do bigode e a palavra de um homem valiam mais que uma folha de papel assinada. 

Mais eis que justamente no momento definitivo,  Tunicão, avisado por um menino, a mando de Cristiano, chegara para defender a honra de sua filha, dando tiros pra todo lado, correndo com Luciovaldo e o genro, que nunca mais apareceram para fechar o negócio.

sábado, 14 de março de 2020

FERNANDO

Lembro-me bem do Fernando. Se não era alto, também não era baixo; se não era gordo, também não era magro; se não era rico, também não era pobre. Era, como diz um velho amigo, um sujeito inexpressivo.

Acredito que tenhamos estudado juntos em algum momento, mas disso não me lembro ao certo; também não sei se já fomos amigos em algum espaço da nossa coexistência, afinal, as amizades são exatamente assim, ocorrem demasiadamente por algum tempo e, depois, já não passam de meras lembranças que vão se afastando, afastando, até que se tornem vultos longínquos; a não ser que sejam daquelas verdadeiras, que, de fato, nunca se acabam; o que certamente não teria sido o nosso caso.

Pode ser que Fernando e eu tenhamos trabalhado juntos em alguma rádio, em alguma firma, em alguma escola, mas, confesso, não faço a mínima ideia se isso de fato aconteceu. Se trabalhamos, pode ter sido em setores distintos, em cargos opostos, quiçá em turnos desencontrados.

Pensando bem, não me lembro de verdade do Fernando. Aliás, nem sei se esse era mesmo o seu nome. Pode ser que eu esteja falando do Ricardo, do Everaldo ou do Toninho. Também não me recordo se era loiro ou moreno, se tinha os olhos azuis, verdes ou castanhos, se era destro ou canhoto. Talvez ele tenha se casado, virado padre, ou talvez seja um triste rapaz solteiro; quem sabe, um destemido Don Juan. 

Existe a possibilidade de que ele seja apenas uma invenção, assim como pode ainda nem ter nascido, ou, que Deus o livre, já não esteja mais entre nós. Ainda assim, descanse em paz, meu caro amigo Fernando.

segunda-feira, 9 de março de 2020

A IRONIA

           
 “Vocês, se quiserem, terão que me sangrar até a morte!”. Em tom de brincadeira Teco havia dito estas palavras a quatro amigos, vinte anos antes, numa acirrada disputa de bolinhas de gude. Ele era imbatível naquele jogo, era sensacional. Mal sabia ele que, ironicamente, seria aquela a única maneira que os homens teriam para matá-lo. Ele era teimoso e teimava em não morrer.

            Em 1986, aos quinze, ele era um menino forte, de uma altura gostosa, tinha os cabelos louros e bastante alongados; os olhos eram grandes e muito verdes; sempre vestia camisas brancas de seda e calças boca-de-sino, ele gostava de usar os melhores cortes do lugar.

Teco era um rapaz em plena adolescência: a voz estava mudando, o corpo sendo tomado por pelos incômodos e a mente em constante ebulição. Ainda brincava de bolinha de gude; jogava futebol descalço no meio da rua; fazia barragens de terra para aparar a água das chuvas e, depois, vê-la estourar de uma só vez. Namorava um namoro estranho com Marlene, que era morena e tinha olhos castanhos; gostava de assistir os desenhos da Xuxa, preferia Jaspion, He-man e Caverna do Dragão.

            Morava numa rua pequena que mais parecia um beco. Nunca gostou de bicicletas, nem quis possuí-las, gostava mesmo é de brincar de bola com os outros moleques nas areias do Buriti, bem ao lado da barragem; eram brincadeiras demoradas que só terminavam quando chegava a noite. Ele tinha vários sonhos, mas dois eram os que mais marcavam a sua vida: sonhava em ser um grande astronauta, para chegar até a lua; e, todas as noites, sonhava com um homem forte que, aos gritos, sangrava-o até que morresse.

            Dos muitos amigos de Teco, dois eram os mais considerados: Preto e Amarildo. Os três eram feito carne e unha, andando sempre grudados, colados um ao outro. Na escola eram os três quem mais aprontava com os colegas e pregavam peças nos professores; consequentemente, também eram eles os mais castigados pela diretora.

            A vida adolescente de Teco era bem mais-ou-menos: brincava e não queria saber de trabalhar; estava criando pelos, no rosto e em outras partes do corpo; gostava de assistir desenhos, mas sentia umas coisas estranhas quando via filmes eróticos na televisão; comprava revistas de mulher pelada para se masturbar e, apesar de não ser apaixonado por Marlene, sempre queria pegar nos seios dela e se esfregar quando estavam no escurinho, até sentindo falta quando estavam longe.

            Em 1991, Teco não jogava mais bolinhas de gude com os seus amigos; não sonhava mais em ser astronauta e pisar no solo lunar; queria ser instalador elétrico para trabalhar na CEMIG. Ele sofria como ajudante de marceneiro, ganhando uma migalha que mal dava para comprar suas roupas e pagar as contas nos botecos.

O rapaz ainda andava grudado em Preto e Amarildo; moravam um pouco mais distantes, mas valia a caminhada. Os pais de Teco haviam se separado: a mãe tinha ficado na casa velha junto com Amanda, sua irmãzinha de quatro anos; ele, meio a contragosto, havia se mudado, junto com o pai, para o outro lado da cidade.

            À noite, Teco e os amigos sentavam-se numa esquina qualquer e ficavam até de madrugada falando conversa fiada, enquanto olhavam as meninas bonitas que passavam de um lado para outro só pra provocar.  Nos finais de semana, eles desciam para o Labaredas, onde curtiam a noite tomando cerveja e uísque e arrastavam suas asas para alguma rapariga qualquer.

 Teco mantivera toda a sua beleza adolescente e, por isso, ainda era o mais disputado pelas meninas, para despeito dos outros rapazes, que ficavam com inveja e, quase sempre, vinham caçando briga.

            Ele tinha descoberto que não gostava de Marlene no dia em que ela, sentindo-se abandonada, resolvera trocar uns beijinhos com Caetano, um dos amigos a quem Teco menos considerava e de quem quase sempre esquecia o nome. Ela queria mesmo e fazê-lo sentir ciúme; não deu certo e ele passou a odiá-la, reconhecendo no rival um amigo verdadeiro, pois o mesmo o fizera ver a face mais  despudorada da sua ex.



            Toda a cidade estava em polvorosa e, de um canto a outro, eram mais de dez mil pessoas falando sobre o mesmo assunto; pareciam, caso fossem vistos do alto de um helicóptero ou de algum arranha-céu, esforçadas formiguinhas trabalhando arduamente para garantir no outono todo o estoque necessário para aguentarem até o final do inverno. Não se pode dizer que toda a cidade fosse um formigueiro, o movimento resumia-se a uma pequena faixa de terra, um estreito caminho aberto no meio do mato para ligar a cidade velha à sua parte mais nova; era como se se atravessasse uma área neutra para passar do paraíso ao inferno.

            O prefeito ordenou que o caminho fosse interditado pela guarda municipal, enquanto os militares auxiliavam à policia civil nas averiguações mais urgentes e necessárias. Passaram-se as fitas amarelo e preto numa extensão diagonal de uns três metros distantes de um canto a outro a fim de conter os vários homens, mulheres e crianças que se aglomeravam no meio do mato. Serviço desnecessário e sem maiores resultados, pois, passados dez minutos da arrumação policial, os espectadores cansados de tanto esticarem o pescoço e levantarem-se nas pontas dos pés para poder observar os acontecimentos, quebraram a fita de isolamento e, sem nenhuma cerimônia, feito soldados em guerrilha, marcharam firmemente para ver mais de perto o que ocorria.

            A picada por onde os transeuntes passavam devia ter meio metro de largura em suas partes mais estreitas, podendo alcançar uns oitenta centímetros nas partes mais alargadas. Não havia ponte nem pinguela para se atravessar a parte alagada, uns dois metros que tinham de ser atravessados com os pés encharcados na água que vinha da barragem que ficava a uns duzentos metros acima e que, por sua vez, recebia os restojos de uma outra barragem que se sustentava a uns quatrocentos metros adiante. A água que chegava àquela travessia era alimentada pelos esgotos das casas que eram jogados nas barragens, o que tornava o lugar em um propício criadouro das mais tristes doenças e reduto dos mais asquerosos animais. As árvores jogavam as suas sombras e emprestavam a sua alegria àquele recanto obscuro, em contrapartida, estas mesmas árvores, nas noites escuras, tornavam-se em ancoradouro de ladrões, estupradores e vagabundos.

            Para mais se protegerem, os moradores evitavam sair de casa depois que anoitecia, trancando-se em suas casas em busca de conforto e segurança, o que quase nunca havia, pois eram muitas as vezes em que casas eram arrombadas e pessoas assaltadas.

Ainda que as moradias do lado direito da picada, para quem estivesse de frente para a barragem, fossem mais vistosas e de melhor alvenaria, em ambos os lados o que se via era apenas pobreza e muita necessidade, era como se aquelas pessoas fossem excluídas da orla social e, sem forças para se reerguerem, se auto-exilavam naquele fim de mundo, não em busca de uma vida melhor, mas de uma morte mais amena.

            À noite, quando as pessoas de boa índole já haviam se recolhido, era comum que os moleques e vagabundos, tomados pela tentação das drogas e do álcool, descessem as ruas em desvario até a picada, gritando, chutando latas, jogando pedras nas  portas das casas, mexendo com os cachorros vira-latas. Outras vezes ainda, e isso também era muito comum, as pessoas eram surpreendidas no meio da noite pelos tiros de armas de fogo nas disputas pelos espaços de cada grupo ou pelos gritos das mocinhas sem escrúpulos que, tomadas pela força da maconha e pelas várias doses de pinga, davam-se, aos berros, como éguas ou cachorras no cio, para todos os chefes dos grupos. De fato, existia em cada grupo uma hierarquia a ser seguida e respeitada; eram apenas crianças, mas todas elas já sabiam qual deveria ser a função de cada um dentro daquelas organizações.

Os gritos eram uma constante e os ouvidos de cada morador já tinham se acostumado em ouvi-los. Naquela noite, porém, os gritos pareciam desesperados, como se fossem gritos de um ser angustiado que passava por um grande sofrimento, quiçá, pelo prenúncio de sua morte. Eram pedidos de socorro e gritos dolorosos que duraram o tempo suficiente para que quase todos os moradores acordassem.

Alguns homens mais corajosos ainda fizeram menção de sair para ajudá-lo, mas foram prontamente proibidos por suas esposas, e não realizaram tão insana aventura.

Passadas algumas horas, tudo era silêncio novamente e todos já haviam se esquecido daquele acontecimento, voltando a dormir o sono dos justos ou a aproveitarem-se para desfrutar do calor erótico da madrugada nos braços da pessoa amada ou de quem podiam usufruir naquele momento, uma heresia passional.

            De manhã, uma dona de casa, depois de preparar o café, deixou o marido a tomar conta dos três filhos e desceu até a picada para jogar o lixo fora. Os resíduos domésticos eram jogados a céu aberto à beira do pequeno córrego que se formara com os restojos das barragens: eram papéis higiênicos, restos de comida, absorventes, remédios e cactos de vidros.

            A mulher que todo dia jogava o seu lixo naquele ponto, estranhou as marcas de sangue que marcavam o chão acinzentado e os chinelos espalhados desordenadamente pelo pelos arredores; era como se três pessoas tivessem travado uma luta ferrenha, de modo que o perdedor deixara ali os seus chinelos e um  calçado algum dos seus oponentes.

A mulher sentia calafrios pelo corpo, já pressentindo que alguma tragédia tivesse acontecido e desesperou-se ao ver, jogado em um canto, um pedaço de pau todo ensanguentado, saindo correndo imediatamente, aos gritos, soluçando e pedindo por socorro.

            Alguns dos que observavam o lugar diziam com certeza que havia uma pessoa enterrada numa cova rasa, enquanto outros diziam que não passava de algum animal morto que alguém havia enterrado em um lugar próximo à picada só por brincadeira para causar alvoroço.

Numa intensa balbúrdia, algumas pessoas choravam desesperadas enquanto outras riam às gargalhadas, afirmando que tudo aquilo não passava de uma tremenda brincadeira. O ambiente ficava estranho e as opiniões mudavam de acordo com cada nova suposição, com ninguém sabendo mais o que realmente pensar.

            O sol já estava alto quando os policiais munidos de enxadas e enxadões, seguindo os rastros de sangue, retiraram do solo cavoucado o corpo de um homem nu, irreconhecível devido as muitas marcas de luta e covardia. Aquilo fora, de fato, um escândalo e assunto para vários dias em toda a cidade.



            Em 1996, com vinte e cinco anos, Teco Morava sozinho numa casa de dois cômodos num bairro afastado da cidade. O pai tinha morrido fazia dois anos e a mãe, que havia se casado novamente, tinha se mudado para outra cidade.

Ele Continuava tão bonito como nos tempos de adolescente e trazia na face esquerda um pequeno corte de navalha, resultado de uma de suas muitas brigas na rua.

 Desde que Preto tinha começado o namoro com Marlene, desataram a amizade. Teco passou a andar sozinho e comumente podia ser encontrado nos botecos ou nos puteiros.

O homem, revoltado, andou brigando umas duas vezes com Preto e Amarildo por causa de Marlene, sua ex-namorada e tinha sido visto pela última vez discutindo com os dois ex-amigos, após ter ficado uma noite com ela. Depois disso, nunca mais se teve qualquer notícia de Teco.

domingo, 8 de março de 2020

A VOLTA DO ORKUT


O Orkut voltou, mas já não é mais o mesmo. A verdade é que, embora nos neguemos a aceitar, nós também já não somos os mesmos. E, às vezes, esta constatação dói. Muitos de nós, os tios de meia idade, teimamos em ser os mesmos sujeitos da juventude, mas nos faltam o vigor, a vivacidade, as aspirações e inspirações daquele tempo; restando-nos apenas a nostalgia, e a consequente dor da lembrança.

O Orkut ainda tem o mesmo rosto, mas desta vez não foi construído pelo seu idealizador, o senhor Orkut Büyükkökten, e já na sua página inicial avisa que “O Orkut.br não tem vínculo com o Google e não é o mesmo site que o Orkut.com”. Na verdade, a nova “velha” rede social trata-se de um aplicativo criado por um fã, a fim de reavivar o Orkut, procurando manter as suas características originais. Não sendo possível, portanto, resgatar as nossas antigas contas.

Assim como diversos indivíduos, instalei por um tempo o novo “velho” aplicativo, desinstalando-o rapidamente, após uma breve olhada. Tudo é muito parecido, mas, não adianta, nada é como antes. E, com o mesmo pensamento, comprei um minigame, uma bola dente de leite, um estilingue e um tênis “Comandos em Ação”, daquele pisante que vinha com uma fita do Rambo para amarrar na cabeça. Todos já estão obsoletos, jogados a um canto do quarto.

Depois de observar tantas velharias sem serventia, compreendi que apenas as lembranças já nos valem, tornando-se uma grande bobagem a tentativa de reviver qualquer sentimento através de aplicativos, brinquedos ou quaisquer loucuras retrôs. Por isso, desnudo da minha velha camisa “Volta ao Mundo”, calcei as alpercatas e me recolhi ao escritório, ficando por algum tempo escutando, na vitrola, os discos de Tom e Vinícius. E, enquanto isso, imaginava o que se haveria de escrever nos Scraps de hoje em dia!

sábado, 7 de março de 2020

A ALMA DAS RUAS


As ruas têm alma. Quem disse isso foi João do Rio. E vejo-me na obrigação de concordar com o magistral cronista. As ruas têm alma, ouvido, cara e coração.  Você, nobre leitor, já parou por um instante para ouvir o que diz a sua rua?

Creio que mesmo o mais cético amigo haverá de concordar comigo, e também dirá que CADA RUA TEM A CARA DO SEU DONO. Se bem que não sei ao certo se nós somos os donos ou se ela, a rua, é que nos tem.

Às vezes, pego-me escutando as ruas alheias, vislumbrando as suas belezas, as suas nuances, os seus sonhos e desilusões.  E são tantas as ruas perdidas, sem chão, sem qualquer sorriso que anime.

Melhor mesmo é ficarmos quietinhos em nossa própria rua. Cuidando para que não a matem, que não a entristeçam, que não a deixem com outra cara, que não a nossa. Afinal, cada rua tem a cara e a alma dos seus donos.

VAZIO

- Bom dia, moço.

- Bom dia, menino.

- Posso fazer uma pergunta, moço?

- Se for rápido pode, menino.

- O que eu vou ser quando crescer, moço?

- Por que a pergunta, menino?

- Sei não. É que as vezes me dá um vazio e eu tenho que perguntar, moço.


O moço não respondeu e saiu sem olhar para trás, como se não tivesse mais paciência. Mas a verdade é que também ele não sabia o que seria quando fosse menino.

terça-feira, 3 de março de 2020

REENCONTRO


Os cabelos brancos caídos sobre a testa como se quisessem esconder a velhice eram finos e não escondiam a beleza que um dia tiveram. Um dia foram negros e muito brilhantes; se bem que ainda tinham algum brilho, mas agora um brilho morto como a algum tempo ela também estaria.

Ela já não esperava quase nada: apenas a morte e o filho. Primeiro queria ver o filho. Não sabia onde ele estava; havia saído um dia dizendo que ia trabalhar numa fazenda lá pelos lados do Maranhão e, isso já fazia mais de dez anos, nunca mais apareceu. Devia estar muito bonito, pois  era um rapaz alto, contava vinte e um anos, tinha os cabelos negros e lisos iguais aos dela; os olhos eram grandes e transmitiam uma vivacidade tão gostosa que ela era capaz de ficar horas a olhá-los sem se cansar. Era um menino bom, que não se metia em encrenca, quase não saía de casa e estava sempre do seu lado. Agora estava ali, sozinha, esperando por um filho que não sabia onde estava (Alguma coisa dentro de si dizia que ele ainda estava vivo) e por uma morte que demorava a chegar.

            O marido morrera quando o filho ainda era pequeno; por isso, Sofreu para criar o menino; trabalhava em casa de família, comia o pão que o diabo amassou, mas era feliz.

Agora contava tantos anos vividos que já não se lembrava mais de quantos tinha; lembrava-se de pouca coisa e já estava caducando. Uma mocinha tomava conta dela; dizia ser parente, mas queria mesmo era a aposentadoria da velha; levava homens para dentro de casa e se não dormisse até a hora de ela ir para as festas trancava-a no quarto e deixava lá, sozinha.

            A casa não era grande; era uma casa simples, pequena  e velha, mas era fruto do seu suor. Economizara durante toda a vida até que pudesse comprá-la; mas a mocinha dizia que era dela, bastando que a velha morresse. O seu quarto ficava nos fundos da casa, não gostava de barulho e, por isso , preferia ficar ali, escondidinha, rezando seu terço e conversando com suas almas, parentes seus que todas as noites vinham lhe fazer companhia. Alguns eram chatos; tinha o tio João que chegava todas as noites com as mesmas piadas de quando ela era criança; Chiquinha, sua irmã mais velha, que cantava para que ela dormisse; Dona Lúcia, uma velha vizinha da família, que vinha chamando-a de Sá Clara e contava sempre as mesmas coisas, dizia que sentia frio onde estava, mas que era um lugar bom, não tinha guerras, não tinha briga, era um lugar cheio de luz. Clara tinha inveja de Dona Lúcia, queria ir pra lá também, mas resignava-se e entendia que ainda não era a sua hora; pegava o terço e punha-se a rezar; todos os conhecidos vinham e juntos faziam belas noites de oração.

            Já devia ser umas nove da manhã. Sentada em sua cadeira de rodas, pois uma queda no banheiro quebrara a sua bacia, impossibilitando-a de andar, esperava que Juliana, a mocinha que cuidava dela, trouxesse o seu café. A menina a havia deixado ali bem cedinho e não tinha voltado.

Pegou um pente que estava depositado num cantinho da mesinha de oração e, de frente ao espelho, começou a se pentear. As lembranças começaram a brotar na sua mente: lembrava-se dos antigos namorados; do dia do seu casamento, um dia chuvoso, quase um dilúvio, o que a fez arrepender-se de ter comido tanto na panela, desdenhando as falas da mãe de que “moça que come em panela, quando casa cai um dilúvio sobre ela.”; lembrava-se do nascimento do filho; do dia em que ele caíra de cama por causa de uma gripe nervosa; quase que ela também morria de preocupação, mas eram apenas manhas de criança, nada que uns chás de plantas não resolvessem.

Penteava os cabelos como faziam as moças do seu tempo enquanto se preparavam para encontrar o namorado; não era um simples ato de pentear-se, pois havia ali toda uma cerimônia. Não se passavam todas aquelas colorações no rosto, o que deixa as moças de hoje com a pele de fantasia carnavalesca; o que contava mesmo eram as mãos  da artista, e as mãos de Clara eram verdadeiras mãos de fada, faziam mágica e deixavam-na tão bonita quanto uma princesa.

            Os cabelos brancos não a tornavam uma mulher feia, mas faziam-na uma pessoa triste. Ao olhar-se no espelho, Dona Clara via não mais aquela menina cheia de viço, mas uma velha cansada e enfadada, um resto de vida a espera da morte. A cada dia tornava-se mais silenciosa, mais obscura; a cada dia morria um pouquinho, esperava apenas que pudesse descansar. Não conversava com Juliana; não recebia os amigos em vida, afinal, todos já estavam descansando e apenas ela insistia em ficar, ou melhor, obrigavam-na a permanecer.

Dona Clara queria ver o filho; sonhava com ele todas as noites; imaginava-o chegando num cavalo branco, um animal grande e formoso; o filho vestido numa roupa de gala, trazendo nas mãos um lindo buquê de flores e um grande sorriso no rosto.

O pente deslizava leve pelos fios de cabelo branco, como se acalentasse a sua alma e a convidasse para um longo instante de meditação.

            A velha tinha dormido por alguns instantes, um sono estranho em que não conseguiu descansar; era um sono leve, cheio de sobressaltos, como se ela pressentisse que alguma coisa lhe estivesse por acontecer. Acordou assustada; tentou gritar, mas não tinha voz, era como se tantos anos de silêncio a tivessem emudecido. Ouviu uns bates na porta; pensou que Juliana não estivesse em casa, fazia tanto tempo que a havia deixado ali que talvez tivesse até saído para a rua; tentou se levantar, mas lembrou-se que não tinha mais os movimentos das pernas; acomodou-se novamente e deixou que continuassem a bater. Sentia-se cada vez mais triste, era uma inválida; talvez fosse o filho que viera visitá-la , e ela sem poder ir recebê-lo com um abraço caloroso.

Alguém abriu a porta, devia ser Juliana. Duas pessoas entram pela casa adentro, com certeza eram o filho e a sua esposa, ele já devia estar casado, talvez já tivesse até um filhinho de colo, um bebezinho para ela bajular...

            - Dona Clara, está na hora de irmos ao médico. Estes dois rapazes irão ajudar a senhora. Vamos embora? – Não pôde deixar de notar um sorriso sarcástico nos lábios daquela mocinha; nunca a tinha levado ao médico, não seria agora que iria fazê-lo; com certeza não era somente ao médico que estavam indo.

A velha tentou firmar-se na sua cadeira para que não a levassem de casa, mas estava bastante debilitada e não conseguiria, por mais que tentasse, vencer àqueles dois brutamontes. Deixou-se levar, resignada, com a certeza de que não voltaria.

            Uma chuva fina caía àquela manhã. A mocinha veio com um guarda-chuva para que Dona Clara não pegasse um resfriado. Um dos homens a carregava no colo, o outro levava a sua cadeira; puseram-na no carro com todo o cuidado para que não se machucassem, com certeza estavam ganhando bem por aquele serviço.

Da janela do carro, fechada para que ela não pegasse o vento ou recebesse os pinguinhos de chuva, via toda a cidade que ficava para trás, lembrava-se do seu tempo de moça, quando pulava carnaval naquelas ruas sem se preocupar com o tempo e as dores que este lhe traria.

Ela não conseguia mais sentir raiva da Juliana, nem mesmo daqueles dois rapazes; de certa forma sentia-se feliz, havia saído daquela casa, daquele quarto, havia saído um pouco de si mesma; agora podia observar as outras pessoas: Uma criança brincava num parquinho próximo à escola; na sua época de criança não existiam parquinhos, brincava de cabra-cega, de esconde-esconde; porta-bandeiras; brincava de nadar no rio, mas tudo isso depois de terminados os afazeres domésticos; desde pequena ajudava a mãe a cuidar de casa. Quanta saudade sentia da sua mãe; o pai era carrasco, mas a mãe era um ouro, nunca havia levantado a mão para lhe bater, dava-lhe apenas carinho. Aquela criança brincava feliz, sem saber de como seria triste o seu futuro.

            Pararam de frente uma casa imensa. Na porta, duas mulheres vieram ao seu encontro. Cumprimentaram-na de uma forma carinhosa, mas mecânica, como se aquilo fosse apenas uma parte do seu trabalho; carregaram Dona Clara para dentro da casa. Enquanto levavam-na, não pôde deixar de reparar, ali moravam apenas velhos, pessoas que não tinham mais serventia para o mundo lá fora e que , por esse motivo, eram largadas como restos de uma civilização jovem e cheia de vida. Uma grande tristeza tomou conta de Dona Clara, ela compreendia que aquele asilo era a sua nova morada.

            A velha passou o resto dia dentro do quarto. Encostada junto à janela, olhava para o pomar que ficava bem junto da casa e estava repleto de frutas: Mangas, laranjas, abacates; todas as frutas de que mais gostava quando era jovem. Ficava a observar aquela tela à sua frente, uma obra de arte da natureza, e começava a lembrar-se dos seus parentes que sempre a visitavam na velha casa, nenhum viera vê-la, talvez não soubessem onde ela estava. Agora se sentiria verdadeiramente solitária, nem mesmo as suas almas viriam lhe fazer uma visita.

            Dona Clara sentia-se cansada. Deixou a cabeça pender para um lado e adormeceu. No meio do sono sentiu que alguém sacudia o seu ombro; levantou a cabeça e reconheceu o filho, era mesmo o seu menino que viera lhe visitar. Ele estava forte e bonito, da mesma forma que ela havia sonhado.

O filho pegou-a pela mão e pediu que se levantasse, pois tinham que ir, já era tarde. Ela tentou dizer que não conseguiria, mas, com um gesto, o filho indicou que continuasse em silêncio e insistiu para que ela se levantasse. Embora espantada, dona Clara se levantou e, agarrada em suas mãos, foi andando até o pomar bem junto à sua janela.

 Lá fora, um lindo cavalo branco a esperava. Ajudada pelo filho, montou na sua garupa e ambos galoparam para bem longe dali. Bem distante daquele lugar, Dona Clara ainda ouvia os seus velhos parentes que pareciam um coral a cantar as velhas canções de ninar.




*Conto pertencente ao livro "O MENINO VOADOR E OUTROS CONTOS". Adquira já o seu no www.clubedeautores.com.br