segunda-feira, 9 de março de 2020

A IRONIA

           
 “Vocês, se quiserem, terão que me sangrar até a morte!”. Em tom de brincadeira Teco havia dito estas palavras a quatro amigos, vinte anos antes, numa acirrada disputa de bolinhas de gude. Ele era imbatível naquele jogo, era sensacional. Mal sabia ele que, ironicamente, seria aquela a única maneira que os homens teriam para matá-lo. Ele era teimoso e teimava em não morrer.

            Em 1986, aos quinze, ele era um menino forte, de uma altura gostosa, tinha os cabelos louros e bastante alongados; os olhos eram grandes e muito verdes; sempre vestia camisas brancas de seda e calças boca-de-sino, ele gostava de usar os melhores cortes do lugar.

Teco era um rapaz em plena adolescência: a voz estava mudando, o corpo sendo tomado por pelos incômodos e a mente em constante ebulição. Ainda brincava de bolinha de gude; jogava futebol descalço no meio da rua; fazia barragens de terra para aparar a água das chuvas e, depois, vê-la estourar de uma só vez. Namorava um namoro estranho com Marlene, que era morena e tinha olhos castanhos; gostava de assistir os desenhos da Xuxa, preferia Jaspion, He-man e Caverna do Dragão.

            Morava numa rua pequena que mais parecia um beco. Nunca gostou de bicicletas, nem quis possuí-las, gostava mesmo é de brincar de bola com os outros moleques nas areias do Buriti, bem ao lado da barragem; eram brincadeiras demoradas que só terminavam quando chegava a noite. Ele tinha vários sonhos, mas dois eram os que mais marcavam a sua vida: sonhava em ser um grande astronauta, para chegar até a lua; e, todas as noites, sonhava com um homem forte que, aos gritos, sangrava-o até que morresse.

            Dos muitos amigos de Teco, dois eram os mais considerados: Preto e Amarildo. Os três eram feito carne e unha, andando sempre grudados, colados um ao outro. Na escola eram os três quem mais aprontava com os colegas e pregavam peças nos professores; consequentemente, também eram eles os mais castigados pela diretora.

            A vida adolescente de Teco era bem mais-ou-menos: brincava e não queria saber de trabalhar; estava criando pelos, no rosto e em outras partes do corpo; gostava de assistir desenhos, mas sentia umas coisas estranhas quando via filmes eróticos na televisão; comprava revistas de mulher pelada para se masturbar e, apesar de não ser apaixonado por Marlene, sempre queria pegar nos seios dela e se esfregar quando estavam no escurinho, até sentindo falta quando estavam longe.

            Em 1991, Teco não jogava mais bolinhas de gude com os seus amigos; não sonhava mais em ser astronauta e pisar no solo lunar; queria ser instalador elétrico para trabalhar na CEMIG. Ele sofria como ajudante de marceneiro, ganhando uma migalha que mal dava para comprar suas roupas e pagar as contas nos botecos.

O rapaz ainda andava grudado em Preto e Amarildo; moravam um pouco mais distantes, mas valia a caminhada. Os pais de Teco haviam se separado: a mãe tinha ficado na casa velha junto com Amanda, sua irmãzinha de quatro anos; ele, meio a contragosto, havia se mudado, junto com o pai, para o outro lado da cidade.

            À noite, Teco e os amigos sentavam-se numa esquina qualquer e ficavam até de madrugada falando conversa fiada, enquanto olhavam as meninas bonitas que passavam de um lado para outro só pra provocar.  Nos finais de semana, eles desciam para o Labaredas, onde curtiam a noite tomando cerveja e uísque e arrastavam suas asas para alguma rapariga qualquer.

 Teco mantivera toda a sua beleza adolescente e, por isso, ainda era o mais disputado pelas meninas, para despeito dos outros rapazes, que ficavam com inveja e, quase sempre, vinham caçando briga.

            Ele tinha descoberto que não gostava de Marlene no dia em que ela, sentindo-se abandonada, resolvera trocar uns beijinhos com Caetano, um dos amigos a quem Teco menos considerava e de quem quase sempre esquecia o nome. Ela queria mesmo e fazê-lo sentir ciúme; não deu certo e ele passou a odiá-la, reconhecendo no rival um amigo verdadeiro, pois o mesmo o fizera ver a face mais  despudorada da sua ex.



            Toda a cidade estava em polvorosa e, de um canto a outro, eram mais de dez mil pessoas falando sobre o mesmo assunto; pareciam, caso fossem vistos do alto de um helicóptero ou de algum arranha-céu, esforçadas formiguinhas trabalhando arduamente para garantir no outono todo o estoque necessário para aguentarem até o final do inverno. Não se pode dizer que toda a cidade fosse um formigueiro, o movimento resumia-se a uma pequena faixa de terra, um estreito caminho aberto no meio do mato para ligar a cidade velha à sua parte mais nova; era como se se atravessasse uma área neutra para passar do paraíso ao inferno.

            O prefeito ordenou que o caminho fosse interditado pela guarda municipal, enquanto os militares auxiliavam à policia civil nas averiguações mais urgentes e necessárias. Passaram-se as fitas amarelo e preto numa extensão diagonal de uns três metros distantes de um canto a outro a fim de conter os vários homens, mulheres e crianças que se aglomeravam no meio do mato. Serviço desnecessário e sem maiores resultados, pois, passados dez minutos da arrumação policial, os espectadores cansados de tanto esticarem o pescoço e levantarem-se nas pontas dos pés para poder observar os acontecimentos, quebraram a fita de isolamento e, sem nenhuma cerimônia, feito soldados em guerrilha, marcharam firmemente para ver mais de perto o que ocorria.

            A picada por onde os transeuntes passavam devia ter meio metro de largura em suas partes mais estreitas, podendo alcançar uns oitenta centímetros nas partes mais alargadas. Não havia ponte nem pinguela para se atravessar a parte alagada, uns dois metros que tinham de ser atravessados com os pés encharcados na água que vinha da barragem que ficava a uns duzentos metros acima e que, por sua vez, recebia os restojos de uma outra barragem que se sustentava a uns quatrocentos metros adiante. A água que chegava àquela travessia era alimentada pelos esgotos das casas que eram jogados nas barragens, o que tornava o lugar em um propício criadouro das mais tristes doenças e reduto dos mais asquerosos animais. As árvores jogavam as suas sombras e emprestavam a sua alegria àquele recanto obscuro, em contrapartida, estas mesmas árvores, nas noites escuras, tornavam-se em ancoradouro de ladrões, estupradores e vagabundos.

            Para mais se protegerem, os moradores evitavam sair de casa depois que anoitecia, trancando-se em suas casas em busca de conforto e segurança, o que quase nunca havia, pois eram muitas as vezes em que casas eram arrombadas e pessoas assaltadas.

Ainda que as moradias do lado direito da picada, para quem estivesse de frente para a barragem, fossem mais vistosas e de melhor alvenaria, em ambos os lados o que se via era apenas pobreza e muita necessidade, era como se aquelas pessoas fossem excluídas da orla social e, sem forças para se reerguerem, se auto-exilavam naquele fim de mundo, não em busca de uma vida melhor, mas de uma morte mais amena.

            À noite, quando as pessoas de boa índole já haviam se recolhido, era comum que os moleques e vagabundos, tomados pela tentação das drogas e do álcool, descessem as ruas em desvario até a picada, gritando, chutando latas, jogando pedras nas  portas das casas, mexendo com os cachorros vira-latas. Outras vezes ainda, e isso também era muito comum, as pessoas eram surpreendidas no meio da noite pelos tiros de armas de fogo nas disputas pelos espaços de cada grupo ou pelos gritos das mocinhas sem escrúpulos que, tomadas pela força da maconha e pelas várias doses de pinga, davam-se, aos berros, como éguas ou cachorras no cio, para todos os chefes dos grupos. De fato, existia em cada grupo uma hierarquia a ser seguida e respeitada; eram apenas crianças, mas todas elas já sabiam qual deveria ser a função de cada um dentro daquelas organizações.

Os gritos eram uma constante e os ouvidos de cada morador já tinham se acostumado em ouvi-los. Naquela noite, porém, os gritos pareciam desesperados, como se fossem gritos de um ser angustiado que passava por um grande sofrimento, quiçá, pelo prenúncio de sua morte. Eram pedidos de socorro e gritos dolorosos que duraram o tempo suficiente para que quase todos os moradores acordassem.

Alguns homens mais corajosos ainda fizeram menção de sair para ajudá-lo, mas foram prontamente proibidos por suas esposas, e não realizaram tão insana aventura.

Passadas algumas horas, tudo era silêncio novamente e todos já haviam se esquecido daquele acontecimento, voltando a dormir o sono dos justos ou a aproveitarem-se para desfrutar do calor erótico da madrugada nos braços da pessoa amada ou de quem podiam usufruir naquele momento, uma heresia passional.

            De manhã, uma dona de casa, depois de preparar o café, deixou o marido a tomar conta dos três filhos e desceu até a picada para jogar o lixo fora. Os resíduos domésticos eram jogados a céu aberto à beira do pequeno córrego que se formara com os restojos das barragens: eram papéis higiênicos, restos de comida, absorventes, remédios e cactos de vidros.

            A mulher que todo dia jogava o seu lixo naquele ponto, estranhou as marcas de sangue que marcavam o chão acinzentado e os chinelos espalhados desordenadamente pelo pelos arredores; era como se três pessoas tivessem travado uma luta ferrenha, de modo que o perdedor deixara ali os seus chinelos e um  calçado algum dos seus oponentes.

A mulher sentia calafrios pelo corpo, já pressentindo que alguma tragédia tivesse acontecido e desesperou-se ao ver, jogado em um canto, um pedaço de pau todo ensanguentado, saindo correndo imediatamente, aos gritos, soluçando e pedindo por socorro.

            Alguns dos que observavam o lugar diziam com certeza que havia uma pessoa enterrada numa cova rasa, enquanto outros diziam que não passava de algum animal morto que alguém havia enterrado em um lugar próximo à picada só por brincadeira para causar alvoroço.

Numa intensa balbúrdia, algumas pessoas choravam desesperadas enquanto outras riam às gargalhadas, afirmando que tudo aquilo não passava de uma tremenda brincadeira. O ambiente ficava estranho e as opiniões mudavam de acordo com cada nova suposição, com ninguém sabendo mais o que realmente pensar.

            O sol já estava alto quando os policiais munidos de enxadas e enxadões, seguindo os rastros de sangue, retiraram do solo cavoucado o corpo de um homem nu, irreconhecível devido as muitas marcas de luta e covardia. Aquilo fora, de fato, um escândalo e assunto para vários dias em toda a cidade.



            Em 1996, com vinte e cinco anos, Teco Morava sozinho numa casa de dois cômodos num bairro afastado da cidade. O pai tinha morrido fazia dois anos e a mãe, que havia se casado novamente, tinha se mudado para outra cidade.

Ele Continuava tão bonito como nos tempos de adolescente e trazia na face esquerda um pequeno corte de navalha, resultado de uma de suas muitas brigas na rua.

 Desde que Preto tinha começado o namoro com Marlene, desataram a amizade. Teco passou a andar sozinho e comumente podia ser encontrado nos botecos ou nos puteiros.

O homem, revoltado, andou brigando umas duas vezes com Preto e Amarildo por causa de Marlene, sua ex-namorada e tinha sido visto pela última vez discutindo com os dois ex-amigos, após ter ficado uma noite com ela. Depois disso, nunca mais se teve qualquer notícia de Teco.

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