“Vocês, se quiserem, terão que me sangrar até a morte!”. Em tom de brincadeira Teco havia dito estas palavras a quatro amigos, vinte anos antes, numa acirrada disputa de bolinhas de gude. Ele era imbatível naquele jogo, era sensacional. Mal sabia ele que, ironicamente, seria aquela a única maneira que os homens teriam para matá-lo. Ele era teimoso e teimava em não morrer.
Em
1986, aos quinze, ele era um menino forte, de uma altura gostosa, tinha os
cabelos louros e bastante alongados; os olhos eram grandes e muito verdes;
sempre vestia camisas brancas de seda e calças boca-de-sino, ele gostava de
usar os melhores cortes do lugar.
Teco era um
rapaz em plena adolescência: a voz estava mudando, o corpo sendo tomado por
pelos incômodos e a mente em constante ebulição. Ainda brincava de bolinha de
gude; jogava futebol descalço no meio da rua; fazia barragens de terra para
aparar a água das chuvas e, depois, vê-la estourar de uma só vez. Namorava um
namoro estranho com Marlene, que era morena e tinha olhos castanhos; gostava de
assistir os desenhos da Xuxa, preferia Jaspion, He-man e Caverna do Dragão.
Morava
numa rua pequena que mais parecia um beco. Nunca gostou de bicicletas, nem quis
possuí-las, gostava mesmo é de brincar de bola com os outros moleques nas
areias do Buriti, bem ao lado da barragem; eram brincadeiras demoradas que só
terminavam quando chegava a noite. Ele tinha vários sonhos, mas dois eram os
que mais marcavam a sua vida: sonhava em ser um grande astronauta, para chegar
até a lua; e, todas as noites, sonhava com um homem forte que, aos gritos, sangrava-o
até que morresse.
Dos
muitos amigos de Teco, dois eram os mais considerados: Preto e Amarildo. Os três
eram feito carne e unha, andando sempre grudados, colados um ao outro. Na
escola eram os três quem mais aprontava com os colegas e pregavam peças nos
professores; consequentemente, também eram eles os mais castigados pela diretora.
A
vida adolescente de Teco era bem mais-ou-menos: brincava e não queria saber de
trabalhar; estava criando pelos, no rosto e em outras partes do corpo; gostava
de assistir desenhos, mas sentia umas coisas estranhas quando via filmes
eróticos na televisão; comprava revistas de mulher pelada para se masturbar e,
apesar de não ser apaixonado por Marlene, sempre queria pegar nos seios dela e
se esfregar quando estavam no escurinho, até sentindo falta quando estavam
longe.
Em
1991, Teco não jogava mais bolinhas de gude com os seus amigos; não sonhava
mais em ser astronauta e pisar no solo lunar; queria ser instalador elétrico
para trabalhar na CEMIG. Ele sofria como ajudante de marceneiro, ganhando uma
migalha que mal dava para comprar suas roupas e pagar as contas nos botecos.
O rapaz ainda
andava grudado em Preto e Amarildo; moravam um pouco mais distantes, mas valia
a caminhada. Os pais de Teco haviam se separado: a mãe tinha ficado na casa
velha junto com Amanda, sua irmãzinha de quatro anos; ele, meio a contragosto,
havia se mudado, junto com o pai, para o outro lado da cidade.
À
noite, Teco e os amigos sentavam-se numa esquina qualquer e ficavam até de
madrugada falando conversa fiada, enquanto olhavam as meninas bonitas que
passavam de um lado para outro só pra provocar. Nos finais de semana, eles desciam para o Labaredas,
onde curtiam a noite tomando cerveja e uísque e arrastavam suas asas para
alguma rapariga qualquer.
Teco mantivera toda a sua beleza adolescente
e, por isso, ainda era o mais disputado pelas meninas, para despeito dos outros
rapazes, que ficavam com inveja e, quase sempre, vinham caçando briga.
Ele
tinha descoberto que não gostava de Marlene no dia em que ela, sentindo-se
abandonada, resolvera trocar uns beijinhos com Caetano, um dos amigos a quem
Teco menos considerava e de quem quase sempre esquecia o nome. Ela queria mesmo
e fazê-lo sentir ciúme; não deu certo e ele passou a odiá-la, reconhecendo no
rival um amigo verdadeiro, pois o mesmo o fizera ver a face mais despudorada da sua ex.
Toda
a cidade estava em polvorosa e, de um canto a outro, eram mais de dez mil
pessoas falando sobre o mesmo assunto; pareciam, caso fossem vistos do alto de
um helicóptero ou de algum arranha-céu, esforçadas formiguinhas trabalhando
arduamente para garantir no outono todo o estoque necessário para aguentarem
até o final do inverno. Não se pode dizer que toda a cidade fosse um
formigueiro, o movimento resumia-se a uma pequena faixa de terra, um estreito
caminho aberto no meio do mato para ligar a cidade velha à sua parte mais nova;
era como se se atravessasse uma área neutra para passar do paraíso ao inferno.
O
prefeito ordenou que o caminho fosse interditado pela guarda municipal,
enquanto os militares auxiliavam à policia civil nas averiguações mais urgentes
e necessárias. Passaram-se as fitas amarelo e preto numa extensão diagonal de
uns três metros distantes de um canto a outro a fim de conter os vários homens,
mulheres e crianças que se aglomeravam no meio do mato. Serviço desnecessário e
sem maiores resultados, pois, passados dez minutos da arrumação policial, os
espectadores cansados de tanto esticarem o pescoço e levantarem-se nas pontas
dos pés para poder observar os acontecimentos, quebraram a fita de isolamento
e, sem nenhuma cerimônia, feito soldados em guerrilha, marcharam firmemente
para ver mais de perto o que ocorria.
A
picada por onde os transeuntes passavam devia ter meio metro de largura em suas
partes mais estreitas, podendo alcançar uns oitenta centímetros nas partes mais
alargadas. Não havia ponte nem pinguela para se atravessar a parte alagada, uns
dois metros que tinham de ser atravessados com os pés encharcados na água que
vinha da barragem que ficava a uns duzentos metros acima e que, por sua vez,
recebia os restojos de uma outra barragem que se sustentava a uns quatrocentos
metros adiante. A água que chegava àquela travessia era alimentada pelos
esgotos das casas que eram jogados nas barragens, o que tornava o lugar em um
propício criadouro das mais tristes doenças e reduto dos mais asquerosos animais.
As árvores jogavam as suas sombras e emprestavam a sua alegria àquele recanto
obscuro, em contrapartida, estas mesmas árvores, nas noites escuras,
tornavam-se em ancoradouro de ladrões, estupradores e vagabundos.
Para
mais se protegerem, os moradores evitavam sair de casa depois que anoitecia,
trancando-se em suas casas em busca de conforto e segurança, o que quase nunca
havia, pois eram muitas as vezes em que casas eram arrombadas e pessoas
assaltadas.
Ainda que as
moradias do lado direito da picada, para quem estivesse de frente para a
barragem, fossem mais vistosas e de melhor alvenaria, em ambos os lados o que
se via era apenas pobreza e muita necessidade, era como se aquelas pessoas
fossem excluídas da orla social e, sem forças para se reerguerem, se auto-exilavam
naquele fim de mundo, não em busca de uma vida melhor, mas de uma morte mais
amena.
À
noite, quando as pessoas de boa índole já haviam se recolhido, era comum que os
moleques e vagabundos, tomados pela tentação das drogas e do álcool, descessem
as ruas em desvario até a picada, gritando, chutando latas, jogando pedras
nas portas das casas, mexendo com os
cachorros vira-latas. Outras vezes ainda, e isso também era muito comum, as
pessoas eram surpreendidas no meio da noite pelos tiros de armas de fogo nas
disputas pelos espaços de cada grupo ou pelos gritos das mocinhas sem
escrúpulos que, tomadas pela força da maconha e pelas várias doses de pinga,
davam-se, aos berros, como éguas ou cachorras no cio, para todos os chefes dos
grupos. De fato, existia em cada grupo uma hierarquia a ser seguida e
respeitada; eram apenas crianças, mas todas elas já sabiam qual deveria ser a
função de cada um dentro daquelas organizações.
Os gritos eram
uma constante e os ouvidos de cada morador já tinham se acostumado em ouvi-los. Naquela
noite, porém, os gritos pareciam desesperados, como se fossem gritos de um ser
angustiado que passava por um grande sofrimento, quiçá, pelo prenúncio de sua
morte. Eram pedidos de socorro e gritos dolorosos que duraram o tempo
suficiente para que quase todos os moradores acordassem.
Alguns homens mais
corajosos ainda fizeram menção de sair para ajudá-lo, mas foram prontamente
proibidos por suas esposas, e não realizaram tão insana aventura.
Passadas
algumas horas, tudo era silêncio novamente e todos já haviam se esquecido
daquele acontecimento, voltando a dormir o sono dos justos ou a aproveitarem-se
para desfrutar do calor erótico da madrugada nos braços da pessoa amada ou de
quem podiam usufruir naquele momento, uma heresia passional.
De
manhã, uma dona de casa, depois de preparar o café, deixou o marido a tomar
conta dos três filhos e desceu até a picada para jogar o lixo fora. Os resíduos
domésticos eram jogados a céu aberto à beira do pequeno córrego que se formara
com os restojos das barragens: eram papéis higiênicos, restos de comida,
absorventes, remédios e cactos de vidros.
A
mulher que todo dia jogava o seu lixo naquele ponto, estranhou as marcas de
sangue que marcavam o chão acinzentado e os chinelos espalhados desordenadamente
pelo pelos arredores; era como se três pessoas tivessem travado uma luta
ferrenha, de modo que o perdedor deixara ali os seus chinelos e um calçado algum dos seus oponentes.
A mulher
sentia calafrios pelo corpo, já pressentindo que alguma tragédia tivesse
acontecido e desesperou-se ao ver, jogado em um canto, um pedaço de pau todo
ensanguentado, saindo correndo imediatamente, aos gritos, soluçando e pedindo
por socorro.
Alguns
dos que observavam o lugar diziam com certeza que havia uma pessoa enterrada
numa cova rasa, enquanto outros diziam que não passava de algum animal morto que
alguém havia enterrado em um lugar próximo à picada só por brincadeira para
causar alvoroço.
Numa intensa
balbúrdia, algumas pessoas choravam desesperadas enquanto outras riam às
gargalhadas, afirmando que tudo aquilo não passava de uma tremenda brincadeira.
O ambiente ficava estranho e as opiniões mudavam de acordo com cada nova
suposição, com ninguém sabendo mais o que realmente pensar.
O
sol já estava alto quando os policiais munidos de enxadas e enxadões, seguindo
os rastros de sangue, retiraram do solo cavoucado o corpo de um homem nu,
irreconhecível devido as muitas marcas de luta e covardia. Aquilo fora, de
fato, um escândalo e assunto para vários dias em toda a cidade.
Em
1996, com vinte e cinco anos, Teco Morava sozinho numa casa de dois cômodos num
bairro afastado da cidade. O pai tinha morrido fazia dois anos e a mãe, que
havia se casado novamente, tinha se mudado para outra cidade.
Ele Continuava
tão bonito como nos tempos de adolescente e trazia na face esquerda um pequeno
corte de navalha, resultado de uma de suas muitas brigas na rua.
Desde que Preto tinha começado o namoro com
Marlene, desataram a amizade. Teco passou a andar sozinho e comumente podia ser
encontrado nos botecos ou nos puteiros.
O homem,
revoltado, andou brigando umas duas vezes com Preto e Amarildo por causa de
Marlene, sua ex-namorada e tinha sido visto pela última vez discutindo com os
dois ex-amigos, após ter ficado uma noite com ela. Depois disso, nunca mais se
teve qualquer notícia de Teco.
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