quinta-feira, 29 de maio de 2014

A VELHA

Sentada de frente à penteadeira, ela penteava os seus cabelos e lembrava-se de quando era jovem. Os cabelos, agora brancos, já foram negros, quase como as asas da graúna, assim como o seu coração já fora duro, como a mais dura rocha que se pode encontrar. E, enquanto se penteava, uma lágrima, solitária e preguiçosa, descia pelo seu resto, passeando pelas rugas de uma pele que antes fora a mais macia e cobiçada dentre todas as mocinhas de quinze anos.

E a sua lembrança veio à mente. Dos seus olhos tristes, em quando se separaram; do seu sorriso sem jeito; dos seus olhos cheios de lágrimas. Ela sorria, enquanto ele, cabisbaixo, descia a rua, com suas roupas dentro de uma velha sacola de supermercado.  Ela não o amava. Não com todo aquele ardor, não naquele momento. Depois, quando já não podia tê-lo, bateu a saudade, veio a dor. Veio a sensação de que aquele era o seu amor.

Ele já não existe. Vivera a vida, ainda que tristemente, buscando sonhos, iludindo-se pela vida a fora. Ela, sentada de frente à penteadeira, escovava os longos e lisos cabelos brancos, enquanto as lembranças povoavam a sua mente. Lembrava-se do seu corpo sobre o dela, das suas bocas se tocando, dos seus olhos brilhando, como se tudo aquilo fosse apenas um sonho eterno. Mas tudo se acabara.

A enfermeira viera buscá-la. Não disse qualquer palavra; deixou que a levassem para o banho de sol, naquela manhã fria de Julho. Numa árvore próxima, um passarinho parecia observá-la. E ela pode ver, os olhos dele eram tristes, como de alguém que tivesse amado e se desiludido; como de alguém que se jogara de cabeça e se machucara. De novo uma lágrima desceu dos seus olhos. Ela passou a mão sobre o seu rosto enrugado e pensou que nada daquilo valera a pena. Nada.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

JOAQUINZÃO

Não há quem não conheça o Joaquinzão, com seu andar encurvado, seu chapéu, e o eterno embornal do lado. Arrastando a perna, vai andando por toda a cidade, olhando as meninas, cumprimentando os homens, espantando os cachorros, com seu velho estilingue. Todo mundo gosta do Quinzão, menos os cachorros e os meninos serelepes, pois estes não gostam de ninguém e fazem troça com tudo.

O dia começa e Joaquinzão já está de pé. Prepara o café, liga o radinho velho e, sentado sobre o fogão de lenha, fica a observar o tempo, ainda frio, lá fora. Ele sabe que vai esquentar. Não conhece as letras e não tem folhinhas em casa. Mas sabe que é mês de maio, já quase chegando a vaquejada: faz frio de manhã; o sol esquenta à tarde; e o frio volta de noite.

Joaquinzão volta pra cama. O radinho ligado na cozinha; Jota Pinheiro tocando uma moda de viola. As lembranças povoam a mente do solitário homenzinho. Lembra-se da mãe, quando ainda era criança, pelos lados do Sanharó; dos irmãos que já se foram, todos cedo de mais; das vaquejadas em Coração, quando ia com Cirilão, descia na casa da irmã e rodava pela cidade.

Joaquim queria ir à vaquejada; mas, melhor ficar em casa. Ele sabe, já não é mais o rapaz de outros tempos. O radinho toca uma música antiga, tranquila, que o embala a mais um sono. Calixto dorme na casa ao lado, roncando alto, sonhando pouco. Apenas dorme, como se apenas isso lhe bastasse. Quinzão não pensa assim, queria viver a vida, sair pelo mundo, desvendar os horizontes. Mas o seu tempo passou; já não é mais um rapaz.

Suas pálpebras pesam. Tenta se manter acordado, aumenta o volume do radinho. Não adianta, o sono é mais forte e toma o seu corpo. Alguém lhe toca o ombro. Levanta-se sobressaltado. É Calixto com os seus remédios matinais; são tantos, que nem sabe mais para quê tomá-los. Toma-os apenas, como se fosse um eterno ritual.

Calixto volta à sua casa. Antes, desliga o radinho que descansa a um canto do velho e sujo fogão à lenha. Tio Joaquim adormece novamente; agora, sonhando com o Sanharó cheio e vovó cantando uma linda canção de ninar, enquanto, numa mangueira enorme, alguns pássaros cantam em sinfonia, como se acompanhassem a velha mãe.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O NASCIMENTO DO PATO (3)

De manhã, ao acordar, Patrick não sentia qualquer coisa estranha. Amanhecera como num dia qualquer, já atrasado para ir à escola, como acontece com qualquer outra criança. Por isso, levantou-se rapidamente da cama e foi ao banheiro, lavou-se e desceu para o café. No telhado do quarto nenhum buraco, nenhum sinal de luz ou bola de fogo.

A mãe veio sorridente, deu-lhe um beijo e perguntou pela noite. Pensou em dizer-lhe do acontecido, mas, isso a iria assustar, era melhor que se calasse. Mas algo lhe parecia estranho naquela manhã; a mãe havia feito um café especial, e isto não era comum em casa. Sempre tomavam café com leite e um pedaço de bolo. Agora, a mesa estava farta, com frutas, nozes e um monte de outras coisas.

- Tem alguma coisa diferente hoje, Mãe? – Perguntou o menino, espantado.
- Não, meu filho. Apenas quis fazer um café diferente.

O pai também parecia não entender nada, mas, tomava o seu café silencioso, como sempre fizera durante tantos anos de casamento. Era um homem simples, cabisbaixo, desprovido de qualquer aparente inspiração, ou aspiração. Era apenas um homem, e isto parecia já lhe bastar.

 Patrick pegou a xícara, pôs um pouco de café com leite. A mistura estava quente, melhor soprar para não queimar a língua. E, num único sopro, a xícara partiu-se ao meio, e o café com leite espalhara-se por toda a cozinha. O pai arregalou os olhos, mas não disse nada. A mãe, assustada, perguntou:

- O que aconteceu, meu filho?!
- Não sei, mãe. Fui assoprar o café e a xícara se quebrou.
- Deve ter sido a quentura que trincou a xícara. Já não se fazem mais louças como antigamente...


E continuaram com o café da manhã. Patrick achou melhor não assoprar mais o café. Tomava-o quente, com medo de que não fosse a louça quem estivesse com problema. Talvez fosse ele quem estivesse passado por alguma transformação.  O menino sempre gostara de televisão, desenhos animados, super-heróis e cria piamente que eles existiam: Batman, Superman, Flash. E a sua cabeça virava um turbilhão de imaginações, até que a mãe o chamara para irem à escola.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O NASCIMENTO DO PATO (2)

Patrick não sentia dores ou qualquer seqüela clara do incidente com a bola de fogo, apenas uma sensação estranha tomava conta do seu corpo, como se algo diferente tivesse acontecido e seus hormônios estivessem em ebulição. Mas nada que o estranhasse, nenhuma ferida, nada de arranhões ou mesmo qualquer mancha diferente tomara o seu corpo. Por isso, depois de algum tempo em observação, os médicos liberaram-no para voltar à casa materna.

Durante as primeiras horas a mãe se preocupara bastante, mas, como de costume, depois de algum tempo, tudo voltou ao normal, e o menino voltara a brincar na área do Portal. Dessa vez, não fora sozinho, o Elias foi chamado para brincar com Patrick. Aquele era o filho da vizinha, com a mesma idade deste.

Brincaram por toda a tarde, até que as mães chamassem para o banho e o jantar. Elias e Patrick despediram-se, com a promessa de, no outro dia, retomarem a brincadeira. Aquele, cheio de esperanças; este, com alguma reticência, talvez com a impressão de algo estivesse por acontecer.  E talvez fosse esta a primeira seqüela, o primeiro efeito do incidente: Patrick desenvolvera uma enorme capacidade de previsão, algo que as mulheres chamam de sexto sentido, mas que o menino nem sabia da existência.

A noite foi longa, com o garoto sentindo calafrios e uma terrível e incessante febre. Por algumas vezes tentara chamar pela mãe, mas era inútil, a voz não lhe saía e não tinha forças para se levantar, ir até o quarto dos pais, buscar por ajuda. Aquietara-se, então, a espera do que poderia acontecer e ficou olhando para o teto, como se a qualquer momento alguma coisa descesse pelo telhado e viesse ao seu encontro.

Patrick já estava adormecendo, quando uma luz intensa veio ao seu encontro. Um grande buraco se fez bem no meio do telhado, sem que qualquer barulho fosse feito. Era algo como que um buraco negro abrindo-se em meio ao nada. Uma força diferente começou a puxá-lo para dentro da luz, feito dois braços que o enlaçasse e levasse para junto de si. Não teve forças para gritar. Apenas tentava se manter lúcido, acordado, vivo, talvez por curiosidade, querendo saber o que iria lhe acontecer.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O NASCIMENTO DO PATO



Simplesmente, para algumas coisas, não há explicação. E, por mais que tentemos encontrar o óbvio, isto nunca haverá de acontecer. E assim foi com ele, o Pato. Ninguém nunca o entenderia, seria sempre o incompreendido. Alguns até o respeitavam, mas, para a maioria, era somente mais uma chacota. Por isso, fazia aquilo; por isso, queria mostrar que não era pior, nem melhor que todos os outros.

Era uma manhã ensolarada de alguma segunda-feira, porque toda estória que se preze deve começar numa segunda-feira. Assim, também o céu tem que estar tomado por um majestoso sol amarelo. Pois que as águas da lagoa brilhavam bonitas com aquela estrela jogando todos os seus raios sobre elas, enquanto apenas uma criança brincava nas áreas brancas da praia, bem ao lado do portal.

Aquela criança, um menino feio, de pouca idade e calças curtas, corria de um lado a outro, sob o olhar atento da mãe, que cozinhava o frango seco, a ser servido no almoço dos turistas que por ali rareavam a cada dia mais. Patrick- e  este era o nome do menino -  não se preocupava com turistas ou com o frango que derretia na velha panela de pressão. Apenas brincava na areia quente, e isto já lhe era suficiente.

De repente, uma luz branca cortou o céu naquela manhã. Era como uma bola de fogo que descia desgovernada dos confins do universo. Ninguém sabia o que seria aquilo. Alguns estudiosos disseram ser um disco voador; outros que era algum cometa ou meteorito que caía do céu. E havia ainda aqueles que diziam ser aquilo o primeiro sinal do apocalipse. Patrick não sabia o que era aquilo, mas sentiu as suas consequências.

A bola de fogo desceu rapidamente, com um barulho quase ensurdecedor, e, ao bater no chão, soltou raios estranhos que causaram uma sensação dolorosa no corpo do pobre menino, que, violentamente, fora jogado contra um dos coqueiros que rodeavam o Portal. Patrick adormeceu, enquanto a bola de fogo foi se esvaindo, rapidamente, até se transformar numa mínima bolinha de gude.
A mãe veio rápida e pegara o menino nos braços; levou-o até o posto de saúde, já temendo pelo pior. Aquilo tudo fora estranho, o menino não tivera qualquer ferimento ou sequelas, como se nada houvesse acontecido. Como se nenhuma bola tivesse caído, nem qualquer força o tivesse dominado. Mas aquilo seria apenas o início de uma grande mutação.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

AS DUAS IRMÃS

A Crônica é mesmo uma graça. Às vezes queremos escrever, mas a ideia não vem; enquanto, outroras, não queremos e ela bate à nossa porta. Algumas vezes ficamos por horas sentados de frente o computador, matutando palavras, desvendando segredos, e ela não vem. Mas, às vezes, no meio de uma madrugada fria, ela chega, entra na cabeça e não sai. A Crônica é mesmo uma menina traiçoeira.

Quando nos apaixonamos tudo piora. São duas irmãs que sempre chegam. Primeiro a poesia, com suas palavras melosas, melódicas, cheias de êxtase. Depois, vem a Crônica, contando lorotas, anedotas, mentiras cheias de saudades e romances. E nunca faltam. Chegam em silêncio, entraram devagarzinho e acomodam-se bem dentro do peito.

Mas, quando estamos limpos, desnudos de amores ou paixões, nunca que aparecem. Podes chamar, o quanto quiseres, e elas não viram. Por isso, às vezes deixo de ser poeta ou cronista, e passo aos trabalhos mais práticos, como trabalhos escolares e locuções. Às vezes fico desempregado das letras e fio-me em algumas garrafas de vinho, que é para esquentar o frio da alma.


Mas eis que um dia, numa noite fria qualquer, a poesia reaparece em meu quarto. Entra pela janela entreaberta e aconchega-se dentro de minha alma. Sinto arrepios, calafrios, e entrego-me novamente em seu poder. A Crônica chega depois, feito a irmãzinha tímida, cheia de não-me-toques e mal-me-queres; mas vai me envolvendo devagarzinho e, quando vejo, já me encontro aninhado no seu regaço. São duas irmãs traiçoeiras, que sempre chegam, e se achegam.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

NOITE DE ESTRELAS



Enquanto o Galo empatava com o Atlético Nacional, do Uruguai, na noite desta quinta-feira, um dia após a guerreira classificação celeste, em terras paraguaias, e, aproveitando o feriado de 1º de Maio, resolvemos dar um pulinho até o bar da Aline, já quase próximo à lagoa. Noite fria, com céu estrelado e algum pressentimento de eliminação anunciada. E o Galo, enquanto ainda estávamos lá, seria, de fato, eliminado da Copa Libertadores, com um empate no finalzinho da partida.

Mas não seria este o nosso assunto da noite; embora eu estivesse a todo o tempo com o celular sobre a mesa, lendo o jogo pelo Twitter, vendo os comentários dos Cheloni, do Armando e do Frederico. A cerveja estava geladíssima, embora apenas eu a bebericasse, em goles mínimos, pensados, degustados prazerosamente; e a porção estava bem feita, com carne e mandioca bem temperados.

Talvez poucos tenham reparado nas estrelas brilhando no céu desta quinta-feira. Também os outros não teriam reparado se eu não tivesse dado conta do brilho majestoso dos corpos celestes àquela hora da noite. Ao longe, um sentimento de pesar parecia tomar conta da cidade, mas, incrivelmente, nós ainda não havíamos sido atingidos; talvez por não falarmos de futebol, nem de Atlético ou Cruzeiro.

As outras pessoas no barzinho também pareciam alheias aos problemas alvinegros. Talvez somente a garçonete estivesse por dentro do assunto, pois que não parava de consultar o telefone, talvez em alguma rede social. Mas, o certo é que não ligávamos para os fatos futebolísticos, não ao ponto que deveríamos. Apenas, ao som de Caetano Veloso, degustávamos aquele momento de descontração e felicidade.

Pelos lados da lagoa alguns sapos começavam a coaxar alguma música triste, enquanto alguns sonhos começavam a sobrevoar as nossas mentes naquela noite. E, lá no céu, bem próximas à lua, as estrelas pareciam iluminar o caminho daqueles pobres atleticanos, que iam embora mais tristes, menos libertos na América, enquanto eu tomava a minha digna cervejinha ao som de Caetano, e dos sapos na lagoa.

sábado, 10 de maio de 2014

LEMBRANÇA



Sentado à beira da lagoa, numa manhã destas, enquanto o frio vinha me roçar a alma, pus-me a olhar a água que parecia dançar de um lado para outro. Nenhuma criança brincava nas areias soltas do Portal, assim como nenhum pescador pescava os peixes que devem morar por estas bandas. Apenas os quiosques, com suas solidões anestésicas, me faziam companhia.

Ao longe, alguns pássaros voavam para o sul, enquanto, do outro lado, uma senhora parecia lavar as roupas em algum velho tanque de madeira. De resto, éramos apenas eu e a solidão. Até que me vieram as lembranças de outros tempos. Do velho banco de cimento, que permanece, ainda, à porta da casa dos meus pais; a goiabeira e os cavaletes, onde a vizinha e eu brincávamos; as camas-de-gato, onde escondíamos, eu e meus amigos, nas brincadeiras de polícia e ladrão.

Foi então que me veio a ideia da velhice.  Não a velhice do tempo, mas, o que é pior, a velhice da alma. E esta se dá quando as lembranças tornam-se mais freqüentes do que os sonhos ou a esperança de algum futuro. E estas lembranças me vêm com freqüência, e trazem consigo uma nostalgia, quiçá, uma melancolia terrível.

Outra vez, enquanto caminhava pela praça da igreja, quase à porta da padaria, bateu-me uma saudade terrível da minha infância, das brincadeiras à porta de casa, quando o coração ainda era apenas um órgão onde cabiam apenas a mãe e o pai, quando os amigos ainda eram eternos e os sonhos resumiam-se em comprar uma bicicleta e voar como o superman.

Não que eu repudie as lembranças. Mas, que não venham com tanta freqüência, nem com tamanha força; afinal, já não sou mais aquele menino de outros tempos; já não tenho o fôlego nem a vivacidade de outrora. O que me restaram agora foram somente as paixões, as ilusões e as desilusões de uma vida crua e insensata, além de um poeta louco que, vez ou outra, teima em me tomar o comando da nave. Aí é um Deus que nos acuda!

MEUS AMIGOS IMAGINÁRIOS



Às vezes sento debaixo da árvore e fico à espera da felicidade. Fico aguardando que ela venha devagarzinho, me dê um beijo de boa tarde e me embale no seu colo. Ela não vem. Apenas algum amigo imaginário chega. É verdade, eu tenho um amigo imaginário. Aliás, tenho vários amigos imaginários.

Quando era jovem, até que eu pensava possuir vários amigos; mas, a maioria me deixou, sem contar aqueles que nunca o foram de verdade. Por uns tempos, refugiei-me nos livros, nos regaços das mulheres da vida, nos encantos da bebida e das paixões voluptuosas; mas, depois, já em tempos de lucidez, resolvi que a solidão seria a minha melhor amiga. E eis que ela me deu os meus imaginários companheiros.

Eles chegam silenciosos, sentam-se do meu lado e não dizem qualquer palavra. Sempre esperam que eu inicie a conversa, caso contrário, ficaríamos eternamente calados. Mas, convenhamos, as verdadeiras amizades não precisam de palavras ou gestos, basta-nos a companhia, o estar-se perto, ainda que em pensamento.

Às vezes, travamos longas e acalentadoras conversas. Geralmente, exponho minhas dores, meus vazios, enquanto eles apenas respondem, com palavras de carinho, sábios conselhos ou dúvidas esclarecedoras. Um dia, por exemplo, algum veio com a máxima de que “O amor é um buraco no coração”. Só depois me disse que tirara aquelas palavras no livro do Alcione Araújo; mas, em que isso importa, se seja esta a mais pura das verdades?!

Outra vez, um destes amigos, enquanto estávamos sentados debaixo das goiabeiras, ao som das maritacas, dos periquitos e maracanãs, que parecem ter feito morada nestas árvores, dissera-me “Apesar de tudo, ainda acredito na bondade humana”. Talvez ele também tenha retirado esta máxima da obra de Araújo. É verdade que já não tenho tanta crença na humanidade e sua bondade, mas, por via de dúvidas, melhor será que eu guarde o livro bem guardadinho.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

A VOLTA DO ARNALDO



O livro sobre a mesa parece querer se abrir, enquanto, lá fora, o vento entorta a copa das árvores e os pássaros equilibram-se na vida. Assim também somos nós, pobres e desiludidos mortais, sempre a equilibrar-nos sobre a vida, enquanto todas as páginas dos livros se abrem à nossa frente. É verdade que às vezes os lemos; mas, quase sempre, fechamo-nos em nossas pequenas cavernas, com nossos mitos e nossas crenças.

Foi este pensamento que me atacou quando me vieram dizer sobre o aparecimento do Arnaldo. Eu sempre soube que ele estivesse vivo, embora os homens teimem que tudo o que viram fora a sua alma penada. Foi pelos lados da casa velha, quando eles iam à espera, cada um com sua arma em punho e o coração aos pulos. Era o amigo, que voltara, eu sei que era.

Disseram que ele estava assentado sobre uma grande pedra, aquela que fica bem de frente à casinha; fumando um enorme cigarro de palha. Ainda tentaram pegá-lo; mas o homem é rápido como uma flecha e deixara apenas raios atrás de si, como se soltasse fogos pelo rabo.  Os homens tiveram medo daquela visagem e voltaram a me ver. Não acredito em fantasmas; por isso, tenho certeza da sua volta, e, de arma em punho, vou ao seu encalço.

A vida é um eterno equilibrar-se sobre os fatos. O meu amigo Arnaldo era dado como morto por todos daqui; até mesmo a sua minha esposa já estava aceitando o seu fim. Agora, com a chegada desta nova notícia, vejo que um fogo fátuo brota no seu peito e o espanto se desenha em sua face. Também não pude deixar de pôr reparo na felicidade estampada na cara da Carminha. Ela ainda está por aqui e deita-se comigo sempre que a minha esposa do Arnaldo não esteja por perto.

É verdade, sinto saudades ainda do meu amigo. Queria revê-lo, apertar a sua mão e dar-lhe o mais terno dos abraços, como fazíamos em outros tempos. Mas este livro que teima em querer-se abrir, as árvores balançando no quintal e os pássaros cantarolando em suas copas... Melhor que o revólver esteja pronto e que as almas estejam do meu lado. Pois que nada será como dantes.