domingo, 31 de março de 2019

COBRAS E LAGARTOS


E tudo isso se deu há muito tempo, quando ainda éramos cobras. Só tempos depois é que nos tornaríamos dinossauros, cultivando a sabedoria e a parcimônia daqueles que vivem as tantas idiossincrasias da vida, enfrentando as turbulências, superando as divergências e incongruências deste mundo maldito.

            Em tempos de cobras, tudo o que fazíamos era tomado pelos ímpetos repentinos da jovialidade inconstante. Desta forma, pensávamos pouco e agíamos mais. E quando nos detínhamos em pensamentos um pouco mais prolongados, era traçando planos ou tramando meios que nos propiciassem algum retorno mais imediato.

            Dentre todos, Lúcio era o mais letrado nas artimanhas que fazíamos: frequentava todas as rodas, fazia parte de todas as ordens, e trazia-nos, diariamente, as mais diversas novidades. Dizia-se literato, sem nunca ter publicado nenhuma letra; assim como se gabava de sapiente, sem nunca sequer ter tirado qualquer diploma. Fizera seu nome nas rodas da cidade, e isto lhe bastava na vida. Tirava proveito do seu nome e tentava nos impressionar com suas façanhas narradas.

            Cláudio era o mais incerto dos amigos: um dia chegava sorridente, cheio de meneios e malemolências, mostrando as suas letras, cantando a suas músicas, jogando versos aos quatro cantos; no outro, moribundo, aquietava-se a um canto do salão e de lá ouviam-se simplesmente as lamúrias de um velho injustiçado.

            Paulo, com quem eu nunca tivera grandes proximidades, trazia consigo as dúvidas da juventude. Fazia locuções numa pequenina rádio da cidade, usava o nome artístico de Saulo e, vez ou outra, aparecia com alguns calhamaços dissertativos, os quais eu nunca chegara a ler e, por isso, não sei se de boa ou má qualidade.

            Reuníamo-nos de frente uma casinha velha, num bar antigo da cidade; cantávamos, recitávamos poesias e traçávamos planos os mais diversos. Sonhávamos com a fama, o dinheiro, o reconhecimento e, quase sempre, éramos despejados pelo dono do bar, quando, já quase o sol raiando, o dono, um velho barrigudo e sem barba, gritava que saíssemos à rua.

            Um dia nos cansamos e tomamos o bar de assalto. Chamamos todos os literatos, os políticos e cantores da cidade. O velho, trancado dentro do sujo banheiro, gritava por socorro, enquanto vivíamos a glória tão esperada das jovens almas, com todos os seus sonhos, anseios, com toda a vivacidade das poesias ainda não derramadas sobre a folha de papel.

            Já era quase dia quando a polícia chegou. Fomos presos e saímos ovacionados pelas cobras que haviam se criado em nosso entorno. Éramos mártires e gozávamos o nosso prestígio de encarcerados. Paulo não aparecera naquela noite, alegara compromissos prévios em outras paragens; mas, quando saíamos, por entre os aplausos dos presentes, pude notá-lo a um canto, escondido por entre as sombra, com um sorriso no canto da boca.

            Mas isso foi há muito tempo, quando ainda éramos cobras.