sábado, 30 de junho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 11



Elismar Santos

Junto da cerca, Juca gritou. Era uma casinha simples à beira da estrada. As paredes encardidas pela poeira que o vento trazia davam um ar triste àquela casa.  As janelas, pintadas de azul, já estavam fechadas e ele podia notar que através de um buraco na porta, uma pessoa espiava o lado de fora.

- Ou de dentro, boas noites! Eu sou de paz...

Nenhum movimento vinha de dentro. Apenas uma fraca luz de lamparina dançava para lá e para cá, deixando-se ver pelas frestas do telhado baixo e mal trançado.

- Estou cansado e tenho sede. Pelo amor do bom Deus, seja homem ou mulher, dê-me o de beber, ao menos, e irei em frente.

Timidamente, a porta se abriu. Uma mulher surgira em meio ao lusco-fusco. Ao aproximar-se, Juca pôde ver o quanto ela era bonita. Os cabelos negros amarrados num rabo de cavalo deixavam transparecer o pescoço fino e o rosto bem feito; os lábios eram carnudos e, enquanto ela falava, notou que seus dentes eram alinhados e os olhos vivos e imponentes.

- Meu marido não está em casa, mas, não demora chegar. Não seria de bom tom que o deixasse entrar. Mas, de onde vem e para onde pretende seguir?

Juca se admirara com a altivez com que aquela mulher lhe indagava. Ainda que soubesse que homem algum morasse ali, pois que não havia qualquer criação de grande porte ou trabalhos masculinos naquele lugar, deixou que a conversa se desenrolasse. Tinha gostado dela, embora ainda se lembrasse de Marciel.

- A estrada que sigo é longa e cheia de entremeios, minha senhora. Tenho a graça de Juca Pessoa Moreira e Silva. Não tenho para onde ir; apenas sigo; talvez em busca do que não sei.

- Pois bem. Coloque o seu cavalo debaixo daquele pequizeiro e espere junto da carroça. Trarei água e o de comer. Se quiser, pode dormir debaixo da carroça. Mas, amanhã, antes que meu marido volte, siga o seu caminho.

Ele estranhara as palavras da mulher, pois, se tinha marido e se dissera que não tardaria a voltar, por que dissera agora que haveria de retornar apenas de manhã?! Certamente que não haveria homem algum naquela casa, como pensara anteriormente. Mas, o melhor era ficar quieto no seu canto e aceitar as suas ordens.

A água barrenta viera num copo de alumínio bastante limpo e sem marcas de outras mãos. A comida estava gostosa, apesar de simples; comia-se o arroz com fava um pouco de quiabo.

Ela vestia um vestido longo com alcinhas bastante finas e, enquanto se abaixava para entregá-lo o prato, não pudera deixar de olhar os seus seios. Eram pequenos e durinhos, com os biquinhos rosados e eriçados. Tinha vontade de tocá-los, de beijar a boca carnuda daquela mulher, de deitar-se na sua cama.

Ao notar os olhos gulosos do forasteiro, ela se afastara um pouco, ajeitando a alça do vestido, enrubescendo um pouco a face. Não entrara. Assentou-se em um toco escorado na parede e pôs-se a olhar ao longe, como se esperasse alguém que viesse pela estrada.

- Você espera por alguém? Pois posso ir embora. Termino o de comer e sigo o meu caminho. Sei que não tem qualquer marido a esperar, pois, basta olhar em derredor e ver que tudo isso são lavras de mulher, mulher caprichosa, é verdade, e deveras bonita...

Novamente, ela enrubescera a face. Abaixou a cabeça e cruzou os braços, como se estivesse com um pouco de frio.

- Não. Não espero ninguém. Apenas fico aqui pensando sobre o que leva alguém a sair a esmo, andando pelo mundo, feito alma penada!

- A vida é cheia de contratempos. E isso faz com que a gente tome algumas decisões. Da minha casa, todos tiveram que partir. Dos meus irmãos, notícia alguma eu tenho de nenhum. Deixei minha mãe em meio à seca da Bahia e, tenho certeza de que nem mesmo ela lá mais existe.

- Então veio fugido, lá da Bahia?

- Sim. Pior do que fugir de coronel ou coisa ruim é fugir da seca. Lá de onde venho, o gado tem morrido de sede e as plantações nem mais dão para comer. Ficam os velhos, para morrem, e as crianças, que não têm forças para fugir.

- Aqui já não é diferente. Se seguir mais um quilômetro, nas terras do “Seu” Gregório, haverá de encontrar um córrego, que antes já foi um rio. Hoje, seca quase todo o ano e corre fino durante as chuvas. Acho que Deus já nem se lembra mais de nós. Dizem que chove muito lá para os lados do sul, enquanto que daqui pra cima tudo é essa sequidão dos diabos.

Juca concordava com tudo o que ela dizia. Mas, mais que isso, admirava sempre mais a sua beleza. Ela havia trazido uma lamparina, que fazia com que a sua sombra dançasse pela parede. As suas curvas eram bem feitas e a sua voz saía macia, como se fosse o mais belo cantar dos pássaros.

A noite já tinha caído por completo, quando ela resolveu se deitar. Juca se sentia cansado da exaustiva viagem e também já começava a cochilar.

- Hoje vai fazer frio. Acho melhor você vir para dentro. Tem uma rede na sala, pode dormir lá esta noite...

Um sorriso havia brotado dos lábios daquela linda morena. Desde que chegara àquele lugar, era a primeira vez que ele via o seu sorriso. Os seus dentes eram realmente bem feitos, assim como ela era toda perfeita.

Juca agradeceu, pegou as suas tralhas e colocou a um canto da sala. O interior da casa era bastante simples. Numa mesinha encostada na parede, uma imagem de Nossa Senhora abençoava a casa; um pote de barro ficava sobre uma pequena tábua encravada entre a mesa e o telhado, com o copo de alumínio sobre o prato que servia de tampa ao recipiente. A rede ficava no outro canto da sala, ao lado da porta do quartinho onde ela dormia e, enquanto se preparava para dormir, Juca viu que o quarto era limpo e bem cuidado. A sua parede era coberta por um pano preto e a cama, de casal, feita com madeira de Sucupira, estava bem forrada com um Chenille esverdeado bem alinhado. Não havia guarda-roupas e estas ficavam guardadas dentro de uma enorme mala a um canto da parede. O quarto possuía uma pequena janela, por onde entravam pequenos raios de luz, deixando-o meio aclareado e, certamente, por onde ela via a lua nos dias de maior solidão.

Ele se deitara e ficou pensando na vida. Lembrava-se de sua mãe e sentia saudades. Tinha remorso por tê-la deixado sozinha naquele lugar. Será que alguém a tinha socorrido na hora da morte? Alguém a enterrara, ou tinha servido de comida aos bichos, assim como vários outros sertanejos que morriam à míngua, solitários naquele lugar?

Fechou os olhos por um tempo e pôs-se a rezar, mas as lembranças de Marciel lhe vieram à mente. Queria saber o que ele estava fazendo, se estava bem, se também sentia saudades suas. E ao lembrar-se do amigo, sentia uma coisa ruim, como se lhe faltasse um pedaço, como se faltasse a sua alma. Reforçava a oração, enquanto as lembranças do amigo lhe vinham à mente.

Por entre o fogo fátuo da lamparina divisara a mulher. Ela trazia um velho cobertor cheirando a mofo e um travesseiro.

- Isso não está com cheiro muito bom. Faz tempo que ninguém usa. Desde que meus pais se foram, deixei guardados na despensa. Mas, dá para se esconder do frio da madrugada.

Juca agradeceu. Pôs o travesseiro sob a cabeça e embrulhou-se com a coberta, enquanto admirava a mulher, que parecia paralisada à sua frente, apenas a sombra palpitando na parede.

- Desculpe a minha falta. Você me deu o de beber, o de comer e onde dormir, e nem mesmo o seu nome perguntei...

- Margarida.

- Margarida. Nome de flor. Nada mais justo. Margarida...

Ela deu um sorriso tímido e com os olhos já cansados se despediu. Teria que madrugar, fazer o almoço e ir trabalhar.

Enquanto esperava pelo sono, que teimava em não vir, embora estivesse cansado, Juca observava o sono de Margarida. Não havia cortina, apenas a porta separando os dois e, como se deitara com a cabeça para o lado da porta, conseguia visualizá-la perfeitamente.

Ela dormia como um anjo, vestida numa camisola branca. A coberta com a qual se cobrira, escorregara pela cama, deixando à mostra todo o seu corpo. Deitada de bruços, Juca enamorava a sua bundinha durinha, as pernas grossas e bem torneadas com os cabelinhos eriçados. A lamparina do quarto estava apagada, mas ele deixara a sua ainda acesa, além da luz da lua que entrava pela fresta da janela e deixava ainda mais gostoso o corpo de Margarida.

Durante um tempo, observara o corpo de Margarida e desejara tê-la nos seus braços, penetrar o seu corpo, beijar a sua boca. E, por enquanto, esquecera-se do amigo, da mãe e de tudo o que tinha passado até ali.


sexta-feira, 29 de junho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULOS 9 E 10


CAPÍTULO 9

Sentado na tosca cerca do curral, Juca observava Marciel tirando o leite da única vaca que não sucumbira à seca. Era uma vaquinha bastante magra e com os olhos sempre cansados, à qual chamavam de Melada, por causa da sua cor de um branco encardido, que não a deixava marrom nem caramelo e nem mesmo a fazia uma vaquinha bonita.

Melada era uma vaca feia que quase não dava leite, mas que, assim como o sertanejo, era forte. Quando ainda bezerro, numa noite chuvosa, cheia de relâmpagos e trovoadas, fora abalada por um raio, que descera bem no pequizeiro sob o qual se escondia. De acordo com Marciel, como era visível, ela não morrera, mas tinha ficado por bem uns quinze dias à míngua.

Das vacas que havia na fazenda, três findaram-se nesse dia de tempestade e a outra fora sacrificada por causa de uma doença besta que ninguém sabia qual era, mas que todo mundo dizia ser pestilenta.

Melada havia ficado quinze dias em um canto do curral, sendo tratada a sal, capim e água. Depois, quando já estava de pé, não tinha mais por que vendê-la; já era como parte da família. As condições não permitiam a compra outras reses, sendo que aquela passara a ser a única companhia de Marciel.

O vaqueiro estava sem camisa àquela hora da manhã, quando o sol ainda não havia saído, e tirava o leite tranquilamente, sem força, apenas puxando a teta de Melada, suavemente, quase que numa contradança. Os braços eram fortes, musculosos, capazes de derrubar um boi num único repuxo; e o peito cabeludo parecia dançar enquanto ele tirava o leite.

Juca reparava a fronte do homem: com os cabelos lisos e bastante negros caindo por sobre a testa, quase tapando os olhos esverdeados. A barba, há dias por fazer, cobria-lhe o sorriso tímido e moroso. Marciel quase nunca sorria e falava apenas o necessário. E sua voz era forte e macia, com um grave aveludado, que penetrava os ouvidos e acalentava a alma.

A verdade é que Juca sentia-se constrangido junto de Marciel. Tinha vergonha de estar perto dele, apesar de sentir vontade de estar sempre ao seu lado. Era como se a amizade que nutria por ele fosse tão profunda, ao ponto de superar mesmo a gratidão que sentia por lhe ter salvado da morte.

Durante as noites, deitado na rede, cedida até que melhorasse por inteiro, sonhava coisas estranhas com o amigo. Depois, desperto de tudo aquilo, envergonhava-se dos seus sonhos e punha-se a rezar, penitenciando os seus pecados.

Fora Marciel quem o salvara quando se perdera em sua caminhada. Lembrava-se do colo da mãe, que lhe passava as mãos pelos cabelos até que adormecesse. Depois, já se vira deitado na rede, naquele rancho de paus, amparado por aquele desconhecido.

O homem lhe dissera apenas que o encontrara desacordado no mato; jogara-o sobre o cavalo e o trouxera para casa. Que não se preocupasse, pois ali estava em segurança, bastando que, assim que se recuperasse, ajudasse no corte da lenha para o carvão. De resto, estava em casa de amigo.

E assim, Juca ia se deixando ficar naquele lugar. Ainda não estava recuperado. Sentia-se fraco, quase ainda não comia e as dores tomavam todo o corpo. Tentara, sem sucesso, fazer algum serviço de casa. Não estava pronto para o trabalho. Melhor era ficar em repouso, até que a saúde lhe fosse restaurada. Ainda assim, levantava cedo, sentava-se sobre a cerca do curral e punha-se a observar o amigo, que trabalhava durante todo o dia.


CAPÍTULO 10

Já restabelecido, Juca resolvera ir embora. Levantara-se ainda escuro, pegara as tralhas e fora preparar o cavalo. Não sabia bem aonde ir, mas, era impossível ficar. Não seria justo ser um estorvo àquele homem. Continuaria o seu caminho, até que se chegasse a algum lugar.

O cavalo andava a passos lentos, como se não quisesse partir. Juca também não queria ir embora, havia se apegado àquele lugar, à vaquinha Melada e ao rancho. Gostava de estar junto de Marciel, de vê-lo tirar o leite da vaca, com o suor lhe descendo pelo rosto moreno, caindo até o peito sempre sem camisa.

Eram apenas os dois. Marciel, enquanto Juca estivera doente, cuidara de tudo: Tirava o leite, fazia o café, preparava o almoço e ia para a bateria, encher os fornos de lenha, tirar o carvão, jogar a munha para fora. À noite, ainda arrumava as vasilhas e fazia o jantar.

Com o tempo, Juca tomara conta da casa. Ainda não se via apto ao trabalho pesado. Talvez já fosse capaz de ordenhar a vaquinha, mas preferia que Marciel o fizesse. Preparava o café, o almoço, o jantar; lavava as vasilhas e as roupas e deixava tudo asseado para que o amigo descansasse em paz.

Ainda assim, não era aquela a vida com a qual sonhara. Ao sair de casa, deixando a mãe junto à porta da cozinha, queria ganhar o mundo. Quem sabe virasse um jagunço, um pistoleiro, um ladrão de gado. Não queria passar toda a vida enfunado num rancho de pau à pique, lavando vasilhas e preparando a comida.

O cavalo ia lento pela estrada, quando o sol já aparecia sobre os montes. Um sabiá cantarolava numa mangabeira, enquanto um veado atravessava o trilho desesperado, num salto só, sumindo, em seguida, por entre as Camas de gato.

Juca deixava que o cavalo o levasse. Segurava as rédeas apenas, com o pensamento preso ao pequeno rancho, onde Marciel ainda devia estar dormindo. E quantas foram as vezes em que Juca pusera-se a velar o sono do amigo! Era sempre madrugada, quando acordava e punha-se a observar o ronronar suave, os pulmões, lentamente, enchendo-se de ar, para, depois, esvaziarem-se, num manhoso assovio.

Ele tentava se desviar, mas os olhos não obedeciam. Aquietava-se admirando o corpo másculo de Marciel, que dormia desembrulhado, vestindo sempre o mesmo short, sem camisa, com o cabelo emaranhado pela noite de sono.

Envergonhado, rezava. Penitenciava-se. Jurava ir embora quando o dia raiasse; mas, acabava ficando junto do amigo. Agora era diferente. Andava sem olhar para trás, sem pensar em voltar, certo de que já não lhe cabia mais ali.

Talvez chegasse logo a alguma cidade, talvez houvesse algum vilarejo ou mesmo uma fazenda onde pudesse se assentar, criar algumas galinhas, porcos e plantar uma pequena roça. Não queria muito para a sua vida, afinal, quando não se tem coisa alguma, uma migalha é o mesmo que um milhão.

E, nessa toada, andara durante todo o dia, sempre na mesma direção, sem que qualquer pessoa se avistasse. Não havia sinal de água ou de bicho. Não fazia ideia de onde estava; apenas seguia, a espera de que se chegasse a algum pouso onde lhe recebessem.

A fome fazia-o estontear e às vezes ele parava debaixo de alguma mangabeira para se saciar. O sol escaldante fazia-o desidratar rapidamente. Não achava água e os frutos que encontrava eram mínimos. As mangabeiras serviam mais de sombra que de fonte de alimento, pois tinham apenas umas poucas mangabas verdes, que faziam aumentar a sua agonia.

Juca sentia-se fraco. Talvez devesse ter ficado no rancho de Marciel; esperar por uma melhora aparente. Precipitara-se ao sair desembestado, mas não podia mais voltar. Seria mais um dia de viagem, ademais, o que dizer ao amigo? Melhor continuar a caminhada.

E enquanto o cavalo trotava preguiçoso, já cansado daquela labuta, Juca lembrava-se de fatos passados. Recordava os tempos de criança, quando corria pelo sertão da Bahia com o pai, caçando passarinhos para o almoço, quando tomavam banho no riacho, que só enchia em épocas de chuva e secava quase o ano todo, quando a seca castigava o povo.

E batia uma terrível saudade do velho, que morrera preso a uma velha cama, sem saber do que se passava fora da casa, sem ver os outros filhos, que fugiram da seca e nunca mais retornaram.

Juca mal conhecera os irmãos. Era o caçula da família, e, como de costume, todos os que ficavam de maior iam sumindo para a cidade, sempre prometendo voltar para buscar o restante da família. O último havia sido o Juvenal, quando Juca ainda era pequeno.

Saíra numa manhã triste, apesar do sol forte que lhe queimava a fronte. O irmão era um rapaz magro, de pele escura e olhar distante. Era lerdo para coisas da roça e não tinha tino para a vida. Talvez já nem mais existisse, assim como não havia mais o pai e, cria isso no seu íntimo, já nem a mãe não mais havia.

Sentia-se cansado. E a dor que sentia diante das lembranças, fazia-o quase desanimar. Pegava-se pensando em Marciel, mas logo desviava o pensamento para outro ponto. Preferia sofrer com as recordações de casa a padecer com a saudade do amigo.

O sol já se punha, quando avistara uma casinha. Estava sobre um pequeno monte ao avistá-la e, calculando muito mal, devia andar mais meia légua até que pudesse repousar. Açoitara o cavalo e deixara todas as lembranças para trás.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 8



Elismar Santos


Já fazia cerca de um mês, senão mais, que Juca perambulava pelo sertão. Não fazia a mínima ideia de onde estava, se seguia para a margem de algum rio ou se se embrenhava mato adentro pelos sertões. Lembrava-se do ribeirão que viera seguindo até certa parte do caminho; depois, enquanto mais se afastava dele, perdia, rapidamente, as suas orientações. As árvores, a vegetação, a terra, tudo era exatamente igual até ali: tudo era extremamente seco e sofrido.

O sol, sempre forte e perverso, parecia desnorteá-lo e a cada dia lhe parecia nascer de um lado diferente. O homem já não era capaz de retornar à sua casa, assim como também não tinha mais a capacidade de chegar a lugar algum por seus próprios conhecimentos. Andava a esmo, observando os pássaros e o vento; às vezes, sentia como se estivesse andando em círculos, num terrível labirinto. Daí, num de seus tantos pensamentos já desencontrados, chegara à terrível conclusão de que o sertão é um grande monstro pronto a engolir os seus filhos. 

Juca já não tinha forças suficientes para seguir. Já não andava mais que duas ou três léguas num único dia; deixava que o cavalo o levasse de acordo com a conveniência do animal. Assim, arrastavam-se, ambos, pela estrada durante uma parte do dia; depois, desfazia os arreios, soltava o bicho e deitava-se debaixo de algum pequizeiro, na esperança de que alguma coragem lhe viesse ao corpo. De noite, sentia febre, e o couro já não lhe era capaz de esquentar, assim como não o fazia o fogo. Não tinha medo de morrer, e esse pensamento até apaziguava um pouco a sua alma.

Certa noite, enquanto queimava em febre à beira da fogueira, dentro de uma pequena gruta, sentiu uma mão macia tocar-lhe a testa. Abriu os olhos com alguma dificuldade, limpou o suor que lhe escorria pelo rosto e levantando um pouco as vistas, viu que a mãe o afagava carinhosamente. Tentou se levantar, mas, ela segurou-o com firmeza, fazendo com que permanecesse quieto em seu canto. Um calor ardente lhe queimava o corpo.

- A benção, mãe. – E sua voz lhe pareceu fraca, como a voz de quem já não tinha forças nem mesmo para respirar.

- Deus te abençoa, meu filho.

A voz da mãe ainda lhe era macia como das outras vezes que a ouvira. Mas agora lhe parecia ainda mais branda, com um cheiro de rosas e tomada pela tranquilidade que apenas as vozes maternas possuem. Não estava delirando; tinha a certeza de que aquela era mesmo a sua mãe. Não em carne e osso, mas, talvez o seu espírito, que viera lhe amparar num momento de fraqueza e desilusão.

- Não tenho mais forças, mãe. Não consigo mais. Tenho que me entregar.

- Você ainda não cumpriu a sua missão, meu filho. Aguenta, que eu estarei com você.

Juca compreendeu que sua mãe agora era uma parte de si. Fechou os olhos e chorou copiosamente, deitado no seu colo. Depois adormecera, tranquilo e protegido, como quando morava com a velha, à beira do riacho.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 7


JUCA PESSOA  - CAPÍTULO 7

Elismar Santos

O cavalo seguia em passos lentos, preguiçosos, como se não quisesse cortar todo aquele areal que tomava os trilhos do cerrado. O sol, àquela hora da manhã, já castigava as costas do sertanejo e toda pequena sombra que surgisse de algum desfolhado pé de pau já lhe era bem-vinda.

   Juca se deixava jogar de um lado para outro em cima do cavalo, enquanto olhava a paisagem ao seu redor: árvores pequenas e secas, lobeiros, ingazeiros, mangabeiras, pequizeiros, além da vegetação rasteira e espinhenta que o cavalo ia vencendo com dificuldade.

Alguns urubus sobrevoavam a sua cabeça, talvez a espera de uma primeira alimentação. O chapéu de couro, arredondado, mal lhe tampava a fronte e andava com os olhos apertados, para enxergar em meio a toda aquela claridade. Vez ou outra achava algum trilho feito por outro sertanejo que passara por ali há algum tempo. Pensava que haveria de existir alguma casa por aquelas bandas; mas, depois de andar algumas léguas, desistia da ideia.

Aquilo era um impiedoso deserto em meio àquele matagal seco. Apenas alguns bichos, muito poucos e pequenos, cortavam o seu caminho. Eram teiús, gambás, cobras, seriemas, uns poucos e céleres veados, além de uns passarinhos que sempre cantavam ao longe. Por vezes, ao entardecer, escanchava-se sobre o galho de algum pequizeiro e ficava quietinho, apenas observando o trilar dos pássaros que procuravam as melhores árvores para descansarem. Algumas maritacas faziam algazarra num coqueiral, trinca-ferros e bem-te-vis entoavam canções tristes em outra árvore, enquanto um solitário tucano carregava seu longo bico pelos ares.

Fazia já alguns dias que perambulava por aqueles lados, vindo do sul da Bahia. Água achara muito pouca desde que saíra da casa materna. Comida ainda conseguia nos animais que via pela estrada. Alimentava-se dos teiús, tatus, gambás, seriemas e das larvas que achava em algum pé de pau. Por algumas vezes tentara pegar um veado ou alguma cabra perdida no mato, mas, faltavam-lhe forças para tal intento. Limpava os bichinhos com seu canivete e assava-os no fogo que fazia em beira de alguma grota ou pequena caverna, não sem antes se certificar de que ali não morasse onça ou bicho peçonhento. É verdade que ainda não houvera visto qualquer sinal de onça por onde passara, mas, sentia a impressão de que por ali elas o estavam a observar.

O fogo servia para lhe esquentar as noites frias, assar a comida caçada e espantar os bichos e as muriçocas. O cavalo diminuía a sua solidão, conversava o tempo inteiro com o animal, ainda que aquele não o respondesse. Quando a solidão era tamanha que nem mesmo a companhia do equino a saciava, cantava as velhas canções que sua mãe entoava quando lavava as roupas no riacho, e aquilo apaziguava, ainda que muito pouco, o seu sofrimento.

Juca era um homem duro, e, quando a solidão o vinha abraçar, cantava seco, como se aquilo fosse apenas uma maneira de se manter vivo, de permanecer sóbrio, de continuar o seu caminho, sem fraquejar frente às suas dores. Não aceitava o seu padecimento, afinal, era homem e não podia gozar de qualquer frescura.

A água era o que mais lhe fazia falta. No sertão baiano a água era um bem precioso, mas a encontrava com certa abundância, durante algum tempo, no riacho em que a mãe lavava as roupas e na cisterna que o pai abrira nos fundos da casa.

Quando começara o seu périplo, como seguisse margeando o riacho, ouvia a água caminhando ao seu lado, como se fosse um amigo que o seguisse em seu destino; mas, com o avançar da caminhada e as curvas da velha estrada, foram se afastando, até que se vira solitário por aquele caminho seco e hostil. Tivera que aprender a compreender a natureza e descobrir onde e como podia encontrar a água desejada.

Durante algum tempo permanecera sedento; depois, descobrira que podia se apropriar da água que caía nas folhas, de noite, em forma de sereno. Assim, guardava um pouco do líquido em sua cabaça durante a noite, andando de árvore em árvore, colhendo o líquido retido e, durante o dia, bebericavam, ele e seu cavalo, em goles espaçados, para que não se desidratassem.

Durante vários dias não encontrara qualquer outra fonte de água. Nenhum rio, nascente ou olho d’água lhe cortasse o caminho; o que lhe fazia crer que nenhum homem ou mulher pudesse viver por aquelas bandas. Não sabia onde estava, nem para onde estaria indo. Às vezes o sol lhe nascia do lado direito, noutras vezes aparecia do lado esquerdo e, por várias, andara com o sol lhe batendo na cara. Ia ao deus-dará, a espera de que em algum instante se chegasse em algum lugar.


JUCA PESSOA - CAPÍTULO 6


JUCA PESSOA- CAPÍTULO 6

Elismar Santos


- Bom dia, senhor. Venho contratado pela prefeitura para escrever alguma coisa sobre a história da cidade, e procuro um lugar onde ficar, até que possa me arrumar por aqui. O senhor sabe de algum hotel ou pousada onde eu possa me hospedar?

São João da Lagoa, em pleno século vinte e um, ainda é uma cidadezinha pacata; com seus moradores sempre assentados nas portas, alguns pescando na lagoa, enquanto outros bebem a sua cachaça e conversam a vida alheia nos vários botecos do lugar.

Ainda era de manhã quando cheguei e, após toda uma noite de viagem, era preciso tomar banho e descansar um pouco.

Logo ao adentrar o perímetro urbano, veio-me a sensação de estar chegando a algum pequeno e antigo povoado. Assim que vai se acabando a rodovia, deixando para trás o último morro, dentre os vários que compõem aquele cenário, enxerga-se, à cerca de uns dois quilômetros, um pequeno número de casas, para, em seguida, fazer-se uma curva brusca, mudando de vez a sua direção. E é daí, então, que se adentra, de fato, na pequenina cidade.

Fugindo às ideias de segurança e comodidade, tão comuns às outras urbes, desfazendo-se dos pensamentos de Kubistchek, que construíra a nossa capital bem no meio do cerrado goiano, a prefeitura dos lagoenses – é esse o gentílico do lugar, está encravada bem na entrada da cidade. O que me causara grande estranheza.

Antes de se chegar à prefeitura, virando rapidamente as vistas para a esquerda, é possível vislumbrar uma bela lagoa, que apenas mais tarde eu iria conhecer. Também se pode notar um ostentoso ginásio e um complexo esportivo ainda a ser terminado, contando com um campo de futebol e duas quadras de areia.

Assim como me havia chamado a atenção, enquanto eu dirigia pelas estradas vizinhas, desde o trevo de Pirapora até aquele ponto, o eucalipto parece ser a principal árvore da cidade, podendo ser encontrado facilmente às margens do asfalto e servindo como sombreamento ao complexo esportivo.

Descendo até a cidade, é possível notar algumas casas simples, com um povo triste sempre assentado à porta. E, como fosse de manhã, algumas mulheres, ainda com lenços na cabeça e os olhos inchados, como que  acordadas de pouco, ainda tomavam o café com bolo, biscoito ou queijo.

Era final do mês de Junho e fazia frio. Desci do carro próximo a uma gameleira enorme. Alguns homens conversavam à porta de um boteco, enquanto outro, com um chapeuzinho na cabeça, levantava as portas de uma verduraria. Algumas crianças subiam para a escola, uniformizadas, com as bolsas nas costas. Uns meninos conversavam escandalosamente, enquanto outros pareciam ainda despertarem de uma noite mal dormida.

Um aluno gritava um nome estranho. Parecia chamar por alguém que não o escutava. Até que o homem parou e ambos continuaram. Pela bolsa que trazia às costas e o rosto coberto por uma barba cerrada, devia ser algum professor. Era um sujeito baixinho, gordo e com cara de poucos amigos, mas que conversava serenamente com aquele menino.

Durante um tempo, fiquei estagnado, olhando para a imensidão da gameleira que, com sua sombra também enorme, devia cobrir todos os velhos bancos que havia naquele lugar, e que precisavam de uma reforma, pois estavam quase todos quebrados ou soltos das suas bases. 

Notei que um homem esquentava-se ao sol assentado num velho banco de cimento, do outro lado da rua, longe dos que conversavam no boteco. Era já um senhor de cabelos brancos e um pouco barrigudo que, às vezes cumprimentava um aluno, algum sujeito que passasse de bicicleta ou uma senhora que fazia sua caminhada matinal, mas, quase sempre, punha-se cabisbaixo, como se estivesse a cochilar.

- Olha, moço; aqui você pode ficar nessa pousada perto do açougue, naquele hotel ali na frente ou, se quiser, ainda tem o hotel da lagoa...

- E qual o senhor me indica? – E a pergunta me veio mais para um início de conversa do que mesmo por alguma observação. Mas, como um bom mineiro, ele se limitou a dizer:

- Aí depende do senhor, Todos eles estão aí.

Ainda tentei algumas poucas investidas. Não obtendo sucesso, segui para o hotel mais próximo. Precisava de um banho e café para esquentar o frio daquela cidade. 


***


Durante quase um ano permaneci em São João da Lagoa, pesquisando os costumes, as ideias e as histórias daquele povo. Aos domingos, quando não estava perambulando por alguma comunidade ou escrevendo partes do livro para o qual me contrataram, passava toda a manhã assentado na pequena escadaria da lagoa, organizando minhas ideias sobre o que escrever, remoendo as dores de se estar longe de casa ou simplesmente observando as águas que, em pequenas ondas, como num balé, dançavam para lá e para cá, lembrando-me sempre do poema de Bandeira.

Algumas vezes, chegava-me um amigo e punha-se a contar algum caso antigo, talvez na esperança de ter o seu nome eternizado nalguma página da futura obra. Às vezes, pelas primeiras palavras do sujeito já notava que tudo aquilo não passava de invencionices. Paciente, deixava que ele contasse toda a sua narrativa, para, depois, despachá-lo com um “É uma boa história, mas, não é bem o que preciso”.

É verdade que surgiram boas histórias, como a chegada de Caetanão ao Pitinha, apelido carinhoso do lugar, e o causo de Maria das Facas, e, embora não houvesse provas concretas sobre os fatos contados, era possível que eu as pusesse no livro, ao menos no capítulo de causos e estórias.

Um relato, porém, havia chamado verdadeiramente a minha atenção. E é por isso, caro leitor, que me ponho dentro destas páginas, tomando parte do seu tempo e da sua leitura, na tentativa de reavivar a sua atenção para o que hei de lhe dizer.

Não procure por esta passagem no livro da cidade. Assim como não busque pela boca dos lagoenses, pois que essa é uma história velha, que nem mesmo os homens de meia idade conhecem por inteiro. O que há são “achismos”, que se completam com pequenas verdades e outras invenções, criando-se, desta maneira, a lenda de Juca Pessoa.

A história que até aqui você tem lido, caro e paciente leitor, foi me dita por uma velha senhora, agora já falecida, que estivera junto do caixão de Juca e presenciara todo o calvário de Catarina. Segundo ela me dissera numa das tantas conversas que tivemos, era ainda uma menina, talvez com uns nove ou dez anos em quando tudo aquilo acontecera. Dizendo-me, ainda, contar, à época da nossa primeira conversa, já com mais de cem anos vividos.

Também eu não acreditaria nas palavras da velha, se não tivesse ela apresentado-me todas as cartas lidas por Catarina. Disse-me que as lembranças vinham como flashes em sua cabeça. Que se lembrava bem de ambos, Juca e a menina, mas que os acontecimentos chegavam meio apagados, sobressaltados, meio desconexos, como se fosse, tudo aquilo, um filme já meio estragado, o que, segundo ela, explicava-se pela sua avançada idade.

De início, relutei-me em acreditar no que a velha dizia. Ainda que existissem, de fato, aquelas cartas, contando tudo o que se passara com o velho Juca, desde que saíra do sul da Bahia até a sua chegada no Pitinha, era difícil acreditar que tudo aquilo tivesse acontecido de verdade.

Mantive as cartas por algum tempo guardadas dentro de uma gaveta, sempre na dúvida se as publicava no livro da cidade ou se as esquecia no ostracismo de alguma valise, quando voltasse para casa.

Já tinha eu comprovado a veracidade da história, pesquisando nas certidões de óbito do cartório de Coração de Jesus, tendo encontrado os documentos de ambos, com as causa-mortis e datas dos falecimentos de Juca e Catarina, quando decidi que esta deveria ser uma história contada à parte, não com as inverdades ou “achismos” dos que a contavam pelas ruas, mas, com as bases encontradas nas palavras daquela velha e nas cartas que estavam aos meus cuidados.

É louvável, então, caro leitor, que se compreenda toda a narrativa feita até este ponto como sendo a mais pura verdade dos fatos, haja vista que foi desta forma que tudo houvera acontecido.

Não negarei o fato de, por preciosismo literário ou necessidade da teia narrativa, ter floreado esta ou aquela passagem, como, da mesma maneira, é verdade que, até aqui, os pensamentos e as falas de cada personagem tenham sido por mim inventadas, haja vista que nem eu ou a velha que me contara os fatos estávamos próximos dos personagens nas horas das dores e sofrimentos de ambos.

O que se há de ler, daqui para frente, destes posso dizer que são verdades, uma vez que todas as passagens e sentimentos foram eternizados por Juca, em forma de cartas, numa linguagem simples, cheia de erros e, muitas vezes, quase ilegíveis. Em tempo, as cartas não eram dirigidas a quem quer que fosse, como se o homem quisesse apenas registrar tudo aquilo que sentia; os seus sofrimentos, os seus anseios, enfim, a sua mísera vida.

Algumas vezes, pensei em publicar as ideias de Juca mesmo em forma de cartas, mas percebi que tudo isso não teria qualquer cabimento, pois não há nelas destinatários ou datas, sendo incapaz, portanto, de situá-las no tempo e no espaço.

Assim, passemos à saga de Juca Pessoa, um sertanejo encravado em meio ao sol e às dores de uma vida madrasta, sempre em busca de si mesmo, numa eterna volta em torno de si.


domingo, 24 de junho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 5


JUCA PESSOA - CAPÍTULO 5

Elismar Santos

A casa parecia enorme, embora fosse minúscula. A falta que Catarina sentia de Juca fazia seu coração doer. Já não chorava; apenas se lembrava dele, em cada canto da casa, como se fosse uma alma penada a acompanhá-la em cada canto.

Já havia se passado uma semana da morte do velho, ainda assim o seu perfume estava impregnado em todas as coisas da casa. Na verdade, Juca era aquela casa, com todas as suas particularidades: cada copo em seu lugar; os quadros na parede, dispostos em ordem hierárquica, com a Sagrada Família fazendo a frente; os sapatos ainda dispostos enfileirados, alinhados, como que numa fila de soldados; as vasilhas encarreiradas sempre da maior para a menor...

Juca gostava das coisas todas organizadas, as roupas bem passadas, as mesmas ações sempre nos mesmos horários. Às vezes, Catarina pensava consigo que tudo aquilo seria uma loucura do velho, mas, respeitava-as, como se respeita às ordens de um pai, embora nem sempre se concorde com elas.

Agora já não havia mais o velho para lhe dar as ordens, para chamar para dentro de casa nas noites de lua, quando ficava até mais tarde no portão, para exigir que trouxesse a sua toalha para o banho da semana. E ela sentia falta de tudo isso. Sentia-se perdida, sem saber como seguir.

Nos primeiros dias, Luzia, uma vizinha, quisera ficar em casa com ela, para que não se sentisse solitária. Catarina agradecera os préstimos, mas queria estar assim, sozinha com a sua dor. Haveria de senti-la por inteiro, aprendendo a ser forte, sem depender de ombros alheios. Não teria muletas pela vida. Já não tinha o seu protetor, também não haveria de pôr alguém para ocupar o seu lugar.

Todos estranharam o comportamento de Catarina. Alguns fizeram comentários maldosos sobre a sua ausência de lágrimas, enquanto outros chegaram à afirmativa de que ela desejava mesmo a morte do velho.

Durante todos os dias, desde que Juca morrera, ela continuara fazendo todas as coisas do mesmo jeito, como se ele ainda a estivesse ordenando. A verdade é que ainda ouvia a sua voz cavernosa mandando que fizesse isso ou aquilo, ainda o via assentado no velho banco perto da porta esperando pelo prato de comida, exigindo que a carne não estivesse dura e ao arroz não faltasse sal.

Na última noite, a dor doeu mais forte. Tentou conversar com Juca, mas ele não respondia. Por várias vezes chamou pelo seu nome, sem que obtivesse qualquer resposta. Depois, calou-se e, quase que silenciosamente, começou a rezar por sua alma. Que Deus o tivesse em um bom lugar e que ele nem precisasse passar pelo Purgatório.

Com a oração, sentiu que o seu coração ficara mais leve. Ainda sentia o mesmo aperto de antes, mas, agora, havia a aquiescência da alma, que parecia aceitar o acontecido.

E, de súbito, um pensamento lhe veio à mente: não poderia ficar ali. Não tinha motivos para que permanecesse naquela casa. Pitinha já não haveria de ser a sua morada. Ao amanhecer, deixaria tudo aquilo para trás, haveria de viver uma outra vida, em outro lugar, longe de toda aquela dor.

Alvoroçada, começou a arrumar as malas e lembrou-se de que Juca sempre guardava uma valise dentro do guarda-roupa, com algum dinheiro e velhas cartas, às quais nunca a deixara ler. Pegou o dinheiro e guardou dentro da sua mala. Teria o suficiente para algum tempo em Montes Claros, até que se arrumasse e pudesse se manter.

Ao ver as cartas ao alcance de suas mãos, sentiu todo o corpo tremer. Um sentimento de culpa tomava o seu peito, como se estivesse traindo a confiança de Juca. Tentou recuar, deixá-las guardadas, como o velho sempre fizera. Fechara as portas e sentara-se na cama, com as mãos postas ao peito.

A curiosidade era maior que o temor. Catarina abriu as portas do guarda-roupa, abriu a valise, pegou as cartas e despejou-as sobre a cama. E, como uma criança que encontra um pote cheio de doces, começou a lê-las, uma por uma, durante toda a noite.

Era madrugada quando a menina havia terminado toda a leitura das cartas, seus olhos estavam tomados pelas lágrimas e seu peito batia desgovernado. Um sentimento estranho tomou conta de todo o seu corpo, como se lhe faltasse o chão para pisar e como se o ar não lhe fosse mais suficiente para viver.

Catarina deixou a mala sobre a cama. Abriu a porta e pôs-se a correr. Os galos ainda não haviam cantado e nenhum trabalhador já ia para o trabalho. Seu vestido voava com o vento, enquanto ela corria com as lágrimas banhando o seu rosto.

A água da lagoa ainda estava fria quando ela entrou e, sem olhar para trás, foi andando, andando, até que só lhe restassem os cabelos por cima do espelho.

sábado, 23 de junho de 2018

A SAGA DE JUCA PESSOA ( Primeiros quatro capítulos)


Leia, neste blog, diariamente, cada capítulo do livro Juca Pessoa, do escritor Elismar Santos.

Nesta primeira postagem, disponibilizaremos os quatro primeiros capítulos e nos dias subsequentes será disponibilizado um capítulo diário.

O livro Juca Pessoa pode ser adquirido no www.amazon.com .



JUCA PESSOA


Elismar Santos



CAPÍTULO 1



Entremeando o rosário e as ladainhas, apenas o silêncio. Eram poucos os que acompanhavam o féretro; gente simples, amigos do falecido. Todos ali se sentiam tristes, como acontece em todo velório, mas, apenas Catarina chorava.  E fazia-o copiosamente, sendo amparada por duas velhinhas de cara cansada. Ela tinha os pés descalços e vestia-se com um gasto vestido branco que deixava transparecer suas formas de menina-moça, com os seios durinhos e as coxas grossas.

O padre ia junto do caixão, o suor lhe escorrendo pela testa, quase cozinhando debaixo da batina. Catarina ia à sua frente, e isso lhe causava ainda mais calor. Às vezes, olhava para cima, como que a procura de alguma nuvem que lhe abrandasse o mormaço daquele dia; mas não choveria, não haveria de chover por um longo tempo. A falta de chuva, a fome, as guerras familiares, tudo isso seriam o carma daquele povo. Feliz era o defunto, que descansava de tudo aquilo.

Nos botecos, homens bebiam suas tristezas e, quando avistavam o caixão, punham o copo sobre o balcão, tiravam o chapéu da cabeça e benziam-se em respeito ao morto. Depois, voltavam às suas tristezas e abrandavam-se nas bebidas e piadas chulas. Ainda assim, enquanto o féretro partia, falavam de Catarina, prevendo o seu futuro; conjecturavam a sua virgindade e apostavam sobre quem haveria de quebrar o seu cabaço, se é que ela ainda fosse virgem.

Juca não escutava nem sentia aquelas falsidades e debilidades humanas. Vestido da sua roupa domingueira, as mãos postas ao peito, a barba feita e em completa falta de sentimentos, dormia tranquilamente no caixão, sem saber se um dia voltaria, sem se preocupar com o futuro de Catarina; sem nem mesmo agradecer aos préstimos de Meneandro ou tomar um último trago de pinga com o padre. Apenas descansava e deixava que o levassem rumo à sua morada eterna, naquele sol escaldante de dezembro.  


Capítulo 2

Era madrugada e os galos ainda nem cantavam nos quintais. Catarina não tinha sono. Ela havia passado toda a noite de olhos e ouvidos arregalados, seguindo o caminho da lua cheia através de uma das frestas do telhado e ouvindo os gemidos e as tosses estrondosas de Juca. Algumas vezes ele a havia chamado para pedir água; depois, parecia adormecer, para, em seguida, voltar a tossir desabaladamente, quase desfalecendo, procurando um pouco de ar para respirar.

Talvez ele estivesse morrendo. E esta ideia causava um sentimento dúbio na menina: de certa forma, o velho descansaria de todo aquele sofrimento; afinal, já fazia um tempo, desde que desmaiara a primeira vez, que as dores lhe aumentavam, a fraqueza tomava o seu corpo e, agora, essa tosse que parecia não ter fim. Mas, por outro lado, se ele morresse, quem lhe haveria de fazer companhia. Eram só os dois naquela casa, e nem mesmo Teresa, a sua madrinha, existia mais para lhe dar o apoio de que tanto precisava.

  As lembranças da velha Faziam aumentar a dor que Catarina sentia. Desde as suas recordações mais remotas, era aquela a sua mãe. Nunca soubera ao certo quando e como chegara à sua casa. Teresa sempre se esquivara das explicações, embora as indagações fossem insistentes. A velha sempre dissera que as dúvidas eram atentações que o diabo punha na cabeça das pessoas, para que não fizessem o que era certo. Além do mais, bastava-lhe tudo o que tinha. Ela era a sua mãe e o seu pai, apenas isso.

Catarina nunca aceitara os despistos da velha, mas respeitava-a e sabia que um dia, mais cedo ou mais tarde, a verdade lhe seria dita. A madrinha falecera pouco tempo depois que Juca viera lhe buscar. Não a viu ser enterrada. O velho disse que o melhor era fazer uma oração. Que fosse à igreja e pedisse pela alma da senhora. E que, se não a visse em trajes mortuários, com a terra sendo jogada sobre o seu caixão, restariam-lhe as boas lembranças. Que haveriam de ter mais valia do que a dor de se ver um parente morto.

Naquela época, Juca já lhe parecia velho. Por algumas vezes ela o havia visto conversando com a madrinha na cerca. Às vezes lhe trazia alguma roupa ou mesmo bonecas para brincar, mas tudo isso lhe era dado pelas mãos da senhora. Nunca tinha conversado com ele. E numa manhã ensolarada, quando ela ainda tomava o café, sua madrinha veio com os olhos avermelhados, banhados em lágrima, com uma pequena bolsa dependurada pelo ombro.

 A velha deu-lhe um abraço apertado, beijou demoradamente e, com a voz embargada, disse-lhe que era a hora de partir, que não chorasse e nem olhasse para trás, mas que nunca esquecesse de que a amava.

Catarina não entendia o porquê de tudo aquilo. Ainda era uma menina, com nove ou dez anos de idade. Ainda não era moça, não tinha peitos e brincava de boneca com os sabugos de milho que Teresa usaria para acender o fogão. Quis ficar e agarrou-se à velha, mas foi afastada pelas mãos calejadas da mulher. Juca a pegou nos braços, colocou na garupa do cavalo e, despedindo-se da mulher, seguiu seu caminho sem olhar para trás. 




Capítulo 3

Os pássaros amontoaram-se no sete-copas de frente a casa. Eles não cantavam, apenas observavam, quase que solenes, o que se passava naquele lugar. A janela já estava aberta, na tentativa de que o ar fresco daquela manhã penetrasse no ambiente. Nenhuma daquelas aves ousava entrar, apenas olhavam compenetradas, entristecidas. Eram papa-capins, sabiás, curiós, pintassilgos, trinca-ferros e canários-da-terra. É bem verdade que eles sempre estiveram por ali, mas, antes, chegavam em algazarra, entravam casa adentro e tomavam o restinho de café que o velho deixava na velha xícara de porcelana, já encardida pelo líquido e pelo tempo.

A casa era simples e não tinha muros. Uma grande cerca de arame farpado era a única barreira que a separava da esburacada rua de terra. O pé de sete-copas ficava do lado de dentro da cerca, tendo embaixo um pequeno banco de madeira, onde os namorados transavam de madrugada, depois que a meninada brincava de pique - esconde e os mais velhos conversavam amenidades.

As duas janelas passavam todo o dia abertas, a não ser nos meses de agosto, quando Catarina tinha que correr a todo instante para fechá-las contra algum redemoinho, enquanto a molecada ficava assoviando no meio da rua, só para ver o saci fazendo travessuras. Ambas eram azuis, de um azulado envelhecido, há muito pintadas por Juca, pouco antes de trazer a menina para a sua casa.

As paredes, caiadas de branco e tomadas pela poeira, fazia tempos já estavam amarelecidas, precisando de uma nova pintura, sempre prometida pelo velho. E, aqui e acolá, ainda se podiam ver as marcas das bolas de leite de mangaba que os meninos jogavam, enquanto Juca estava em alguma roça, trabalhando para algum fazendeiro.

Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera. Fazia tempos que morava naquela pequenina casa; primeiro sozinho, depois com Catarina, que alguns suspeitavam ser sua amásia, recriminando-os pelo ato, já que, quando da sua chegada, ainda era ela uma menina. Outros afirmavam ser Catarina uma filha do velho, recuperada tempos depois de ser deixada em cuidados de alguma senhora, porque teria Juca matado a companheira num átimo de ódio enciumado. Ainda havia aqueles que diziam que a mocinha era apenas uma criança órfã, que Juca encontrara pelas bandas de Bocaiúva num dia de muita chuva, debaixo de um enorme pequizeiro, enquanto descia da Bahia, de onde teria vindo fugido de um velho coronel, cuja filha tinha sido desvirginada pelo vaqueiro, estando este, há muito, jurado de morte.

Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera e nem mesmo qual a sua relação com Catarina, embora ela sempre dissesse que o considerava como se deve considerar a um pai. Também não sabiam as pessoas do Pitinha que naquela manhã Juca estava morrendo, nos braços da mocinha, enquanto os pássaros observavam-nos de cima do Sete-copas, respeitando aquele momento triste e derradeiro. 




Capítulo 4

As dores eram constantes. E agora essa tosse que não parava. Juca sentia-se fraco, desanimado; já não tinha mais razão para viver. Às vezes, punha-se a desfiar o Rosário, silenciosamente, enquanto Catarina arrumava a casa. E nessas orações, pedia que morresse e, mais que isso, que a menina não ficasse desamparada, que alguma boa alma a tivesse ao seu lado.

Do muito que fizera em vida, de muita coisa se arrependia. Não se arrependia de tê-la buscado para junto de si. Ela não tinha culpa de tudo aquilo. Além disso, Catarina era como uma filha, a filha que poderia ter sido, mas que não fora; não haveria de ser.

Em quando morresse, já não haveria Teresa para ampará-la. Até ali foram apenas os dois, Juca e Catarina, ambos se cuidando dentro daquela casa. Ele, um velho, com todos os seus arrependimentos, seus segredos e suas desilusões. Ela, ainda uma criança, ganhando corpo de mulher; um poço de esperanças a ser derramado, a ser esvaziado pelas loucuras desse mundo bitolado.

Quem ali poderia cuidar de Catarina? O padre?! Não. Aquele seria o menos indicado à função. Sujeito bom, mas, um homem como todos os outros. Juca sabia que o seu fim viria rápido e ela restaria sozinha, desamparada, sem ninguém que a guiasse.

 Sempre soube que não era o homem certo para conselhos ou sermões, afinal, não era o seu pai e nem mesmo se via em autoridade para aconselhar quem quer que fosse. Mas a protegia, como se protegesse a uma filha.

Durante aquela noite, enquanto tossia e se revirava na cama, entre as tantas dores que lhe doíam pelo corpo, pensava no futuro de Catarina. Não podia mais ficar ali, sob os olhares devoradores daqueles homens que passavam todo o dia nos botecos, comendo com os olhos todas as menininhas daquele lugar. Temia pelo seu futuro, pelos seus sonhos, pelas suas ilusões.

Era impossível não imaginar a menina no rancho de Idalina, misturando-se às outras mulheres, entregando a sua virgindade e os seus sonhos por míseros tostões, deitando-se a contragosto com todos os tipos de homens, sujos, bêbados, ignorantes. Não a criara para isso. Não a criara para puta.

Pelas frestas do telhado o dia começava a nascer. As tosses eram constantes, seu corpo doía, seu peito doía e faltava-lhe o fôlego para respirar, faltavam-lhe as forças para viver. Por alguns minutos fechava os olhos, talvez a espera de que a morte lhe viesse buscar. E, enquanto esperava, revia, como a um filme, tudo o que tinha vivido desde que saíra da casa da sua mãe, deixando-a solitária junto à porta, vendo as lágrimas que desciam dos olhos da velha, até aquele momento em que tudo se consumava.

Catarina havia aberto a janela. Alguns pássaros pareciam esperá-lo no Sete-Copas. E todos continuaram lá, espiando, contritos, respeitosos, como se despedissem de um companheiro. Nunca fizera nada por aquelas aves. Ao invés disso, comera-os em quando descia para Minas, na vez em que se perdera no meio do cerrado, antes que Marciel o encontrasse.

Comera-os para não morrer, num instinto de sobrevivência. De resto, convivera pacificamente com todos os bichos, deixando que bebessem da água que guardava no tambor para os tempos de seca brava, e dando-lhes os farelos dos pães que comia durante as manhãs. Mais que isso nunca fizera. Nunca havia sido homem de amenidades. Vivera a sua vida toscamente, como vivem todos os sertanejos.

As dores iam aumentando. As lembranças entristeciam a sua alma: não tivera uma vida feliz. Alguns momentos lhe haviam sido prazerosos, mas, de todo, fora sempre um desgraçado em busca de algo que nunca encontrara. Tinha consciência da sua infelicidade; ainda assim, agradecia por tudo aquilo.

 Notava que o dia nascia bonito, apesar da sua dor, e sabia que nada daquilo haveria de mudar após a sua morte. Os pássaros continuariam a vir ao sete-copas, onde cantariam as mesmas melodias de sempre; beberiam ainda a água do tambor e comeriam os farelos que outros homens haveriam de deixar cair pelo chão.

Juca sentia suas forças se acabarem. A tosse era mais forte e o ar ainda mais lhe rareava. Chamou por Catarina; pediu que trouxesse uma vela, uma caixa de fósforos e um pouco de água. Mandou que a menina acendesse a vela e a colocasse aos pés da cama. Ainda que não fosse de todo crente, sentia a necessidade de luz, de algo que o guiasse pelo outro lado. Sentia a garganta seca e tinha sede. Como não tivesse forças para se levantar, pediu que lhe desse um pouco daquela água.

Catarina segurou a cabeça do velho e lentamente fê-lo bebericar. Os olhos dela estavam avermelhados, cansados, tomados por uma tristeza incontida. Quis dizê-la algumas palavras de conforto, mas, já não tinha forças para falar. Juca olhou candidamente para a sua filha e fechou os olhos. Seu coração foi diminuindo as batidas, até que tudo se transformasse num tétrico silêncio.