CAPÍTULO 9
Sentado
na tosca cerca do curral, Juca observava Marciel tirando o leite da única vaca
que não sucumbira à seca. Era uma vaquinha bastante magra e com os olhos sempre
cansados, à qual chamavam de Melada, por causa da sua cor de um branco
encardido, que não a deixava marrom nem caramelo e nem mesmo a fazia uma
vaquinha bonita.
Melada
era uma vaca feia que quase não dava leite, mas que, assim como o sertanejo,
era forte. Quando ainda bezerro, numa noite chuvosa, cheia de relâmpagos e
trovoadas, fora abalada por um raio, que descera bem no pequizeiro sob o qual
se escondia. De acordo com Marciel, como era visível, ela não morrera, mas
tinha ficado por bem uns quinze dias à míngua.
Das
vacas que havia na fazenda, três findaram-se nesse dia de tempestade e a outra
fora sacrificada por causa de uma doença besta que ninguém sabia qual era, mas
que todo mundo dizia ser pestilenta.
Melada
havia ficado quinze dias em um canto do curral, sendo tratada a sal, capim e
água. Depois, quando já estava de pé, não tinha mais por que vendê-la; já era
como parte da família. As condições não permitiam a compra outras reses, sendo
que aquela passara a ser a única companhia de Marciel.
O
vaqueiro estava sem camisa àquela hora da manhã, quando o sol ainda não havia
saído, e tirava o leite tranquilamente, sem força, apenas puxando a teta de
Melada, suavemente, quase que numa contradança. Os braços eram fortes,
musculosos, capazes de derrubar um boi num único repuxo; e o peito cabeludo
parecia dançar enquanto ele tirava o leite.
Juca
reparava a fronte do homem: com os cabelos lisos e bastante negros caindo por
sobre a testa, quase tapando os olhos esverdeados. A barba, há dias por fazer,
cobria-lhe o sorriso tímido e moroso. Marciel quase nunca sorria e falava
apenas o necessário. E sua voz era forte e macia, com um grave aveludado, que
penetrava os ouvidos e acalentava a alma.
A
verdade é que Juca sentia-se constrangido junto de Marciel. Tinha vergonha de
estar perto dele, apesar de sentir vontade de estar sempre ao seu lado. Era
como se a amizade que nutria por ele fosse tão profunda, ao ponto de superar
mesmo a gratidão que sentia por lhe ter salvado da morte.
Durante
as noites, deitado na rede, cedida até que melhorasse por inteiro, sonhava
coisas estranhas com o amigo. Depois, desperto de tudo aquilo, envergonhava-se
dos seus sonhos e punha-se a rezar, penitenciando os seus pecados.
Fora
Marciel quem o salvara quando se perdera em sua caminhada. Lembrava-se do colo
da mãe, que lhe passava as mãos pelos cabelos até que adormecesse. Depois, já
se vira deitado na rede, naquele rancho de paus, amparado por aquele
desconhecido.
O
homem lhe dissera apenas que o encontrara desacordado no mato; jogara-o sobre o
cavalo e o trouxera para casa. Que não se preocupasse, pois ali estava em
segurança, bastando que, assim que se recuperasse, ajudasse no corte da lenha
para o carvão. De resto, estava em casa de amigo.
E
assim, Juca ia se deixando ficar naquele lugar. Ainda não estava recuperado.
Sentia-se fraco, quase ainda não comia e as dores tomavam todo o corpo.
Tentara, sem sucesso, fazer algum serviço de casa. Não estava pronto para o
trabalho. Melhor era ficar em repouso, até que a saúde lhe fosse restaurada.
Ainda assim, levantava cedo, sentava-se sobre a cerca do curral e punha-se a
observar o amigo, que trabalhava durante todo o dia.
CAPÍTULO 10
Já
restabelecido, Juca resolvera ir embora. Levantara-se ainda escuro, pegara as
tralhas e fora preparar o cavalo. Não sabia bem aonde ir, mas, era impossível
ficar. Não seria justo ser um estorvo àquele homem. Continuaria o seu caminho,
até que se chegasse a algum lugar.
O
cavalo andava a passos lentos, como se não quisesse partir. Juca também não
queria ir embora, havia se apegado àquele lugar, à vaquinha Melada e ao rancho.
Gostava de estar junto de Marciel, de vê-lo tirar o leite da vaca, com o suor
lhe descendo pelo rosto moreno, caindo até o peito sempre sem camisa.
Eram
apenas os dois. Marciel, enquanto Juca estivera doente, cuidara de tudo: Tirava
o leite, fazia o café, preparava o almoço e ia para a bateria, encher os fornos
de lenha, tirar o carvão, jogar a munha para fora. À noite, ainda arrumava as
vasilhas e fazia o jantar.
Com
o tempo, Juca tomara conta da casa. Ainda não se via apto ao trabalho pesado.
Talvez já fosse capaz de ordenhar a vaquinha, mas preferia que Marciel o
fizesse. Preparava o café, o almoço, o jantar; lavava as vasilhas e as roupas e
deixava tudo asseado para que o amigo descansasse em paz.
Ainda
assim, não era aquela a vida com a qual sonhara. Ao sair de casa, deixando a
mãe junto à porta da cozinha, queria ganhar o mundo. Quem sabe virasse um
jagunço, um pistoleiro, um ladrão de gado. Não queria passar toda a vida
enfunado num rancho de pau à pique, lavando vasilhas e preparando a comida.
O
cavalo ia lento pela estrada, quando o sol já aparecia sobre os montes. Um
sabiá cantarolava numa mangabeira, enquanto um veado atravessava o trilho
desesperado, num salto só, sumindo, em seguida, por entre as Camas de gato.
Juca
deixava que o cavalo o levasse. Segurava as rédeas apenas, com o pensamento
preso ao pequeno rancho, onde Marciel ainda devia estar dormindo. E quantas
foram as vezes em que Juca pusera-se a velar o sono do amigo! Era sempre madrugada,
quando acordava e punha-se a observar o ronronar suave, os pulmões, lentamente,
enchendo-se de ar, para, depois, esvaziarem-se, num manhoso assovio.
Ele
tentava se desviar, mas os olhos não obedeciam. Aquietava-se admirando o corpo
másculo de Marciel, que dormia desembrulhado, vestindo sempre o mesmo short,
sem camisa, com o cabelo emaranhado pela noite de sono.
Envergonhado,
rezava. Penitenciava-se. Jurava ir embora quando o dia raiasse; mas, acabava
ficando junto do amigo. Agora era diferente. Andava sem olhar para trás, sem
pensar em voltar, certo de que já não lhe cabia mais ali.
Talvez
chegasse logo a alguma cidade, talvez houvesse algum vilarejo ou mesmo uma
fazenda onde pudesse se assentar, criar algumas galinhas, porcos e plantar uma
pequena roça. Não queria muito para a sua vida, afinal, quando não se tem coisa
alguma, uma migalha é o mesmo que um milhão.
E,
nessa toada, andara durante todo o dia, sempre na mesma direção, sem que
qualquer pessoa se avistasse. Não havia sinal de água ou de bicho. Não fazia
ideia de onde estava; apenas seguia, a espera de que se chegasse a algum pouso
onde lhe recebessem.
A
fome fazia-o estontear e às vezes ele parava debaixo de alguma mangabeira para
se saciar. O sol escaldante fazia-o desidratar rapidamente. Não achava água e
os frutos que encontrava eram mínimos. As mangabeiras serviam mais de sombra
que de fonte de alimento, pois tinham apenas umas poucas mangabas verdes, que
faziam aumentar a sua agonia.
Juca
sentia-se fraco. Talvez devesse ter ficado no rancho de Marciel; esperar por
uma melhora aparente. Precipitara-se ao sair desembestado, mas não podia mais
voltar. Seria mais um dia de viagem, ademais, o que dizer ao amigo? Melhor
continuar a caminhada.
E
enquanto o cavalo trotava preguiçoso, já cansado daquela labuta, Juca
lembrava-se de fatos passados. Recordava os tempos de criança, quando corria
pelo sertão da Bahia com o pai, caçando passarinhos para o almoço, quando
tomavam banho no riacho, que só enchia em épocas de chuva e secava quase o ano
todo, quando a seca castigava o povo.
E
batia uma terrível saudade do velho, que morrera preso a uma velha cama, sem
saber do que se passava fora da casa, sem ver os outros filhos, que fugiram da
seca e nunca mais retornaram.
Juca
mal conhecera os irmãos. Era o caçula da família, e, como de costume, todos os
que ficavam de maior iam sumindo para
a cidade, sempre prometendo voltar para buscar o restante da família. O último
havia sido o Juvenal, quando Juca ainda era pequeno.
Saíra
numa manhã triste, apesar do sol forte que lhe queimava a fronte. O irmão era
um rapaz magro, de pele escura e olhar distante. Era lerdo para coisas da roça
e não tinha tino para a vida. Talvez já nem mais existisse, assim como não
havia mais o pai e, cria isso no seu íntimo, já nem a mãe não mais havia.
Sentia-se
cansado. E a dor que sentia diante das lembranças, fazia-o quase desanimar.
Pegava-se pensando em Marciel, mas logo desviava o pensamento para outro ponto.
Preferia sofrer com as recordações de casa a padecer com a saudade do amigo.
O
sol já se punha, quando avistara uma casinha. Estava sobre um pequeno monte ao
avistá-la e, calculando muito mal, devia andar mais meia légua até que pudesse
repousar. Açoitara o cavalo e deixara todas as lembranças para trás.
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