quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

AS VOZES

AS VOZES

No meio da noite ele acordava ouvindo sempre a mesma voz. Lembrava-se de que a mãe sempre dissera que nunca deveria responder, pois podia ser um chamado da morte, que o queria buscar. Aquietava-se debaixo da coberta e punha-se a rezar, até que o sono chegasse.

No início, a voz vinha espaçada. Ficava um bom tempo sem escutá-la e, por vezes, até mesmo se esquecia de que ela existia de fato. Mas, com o passar dos anos, enquanto ficava mais velho, o chamado tornou-se constante. E isto sempre o assustava. Nunca havia respondido, mas, com tamanha insistência, a vontade de traçar um diálogo com aquela voz vinha aumentando dentro de si.

  A curiosidade tomava conta do seu âmago. Além disso, um vazio horrendo havia tomado a sua alma. Morava sozinho numa cidade grande e, embora sempre estivesse rodeado por pessoas, pois trabalhava numa loja de conveniência na região central, faltava-lhe algo, que nunca conseguira decifrar.

Não respondia aos chamados, mas, com o coração aos pulos, abria a porta no meio da noite e olhava se havia, de fato, alguém do lado de fora do apartamento. Não tinha ninguém, mas as vozes aumentavam. Agora não era mais apenas uma, eram várias; vozes de homens, mulheres, crianças, velhos; vozes feias e bonitas que se misturavam e faziam tremer todo o seu corpo e criava medos em sua mente.

Com o tempo, já não andava normalmente pelas ruas. Estava sempre olhando de um lado para outro, como se procurasse por alguém; andava apressado, quase correndo, como se estivesse atrasado para algum compromisso; já não cumprimentava os conhecidos e andava repetindo, baixinho, as palavras de sua mãe “nunca responda, nunca responda!”.

Era uma tarde de sábado. O sol estava quente e algumas pessoas já conversavam, alteradas, nos barezinhos da cidade. Ele voltava rápido para casa. O seu dia havia sido uma porcaria. Havia sido demitido e aquelas vozes não paravam de enchê-lo. Uma, mais afoita, parecia gritar. E era uma voz aguda, desesperada, quase um pedido de socorro. Ele lutava, mas já estava quase a sucumbir àquela tentação. E se fosse uma alma ávida por alguma ajuda, um ser perdido a vagar pelo mundo em busca de libertação? E se fosse realmente alguém que precisasse de sua ajuda?


Bateu a porta com violência. A água fria molhava os seus cabelos e quase lhe dava uma sensação de paz. Lembrou-se das palavras da mãe, das lutas que tivera durante toda a sua vida para seguir as suas ordens, para não cair naquela tentação. Vestiu o seu pijama, deitou-se na cama e chorou. Uma mulher parecia chamá-lo. Apesar da voz macia, ela estava desesperada, parecendo fugir de alguma coisa. Fechou os olhos, fez sua última oração e, entre tantas vozes, gritou. Depois, tranquilamente, adormeceu.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

MESSIAS

Era a mãe de messias quem dizia que quando ele encasquetava com alguma coisa, não tinha quem tirasse aquilo da cabeça do menino. E todos nós concordávamos. Achávamos que ele era mesmo meio louco. Sempre encasquetava com algo. E isso era desde criança, quando ainda corríamos pelas ruas esburacadas da cidade, brincando de polícia e ladrão, escondendo debaixo das camas-de-gato, perto dos chiqueiros de Zé Lopes.

Certa feita, numa tarde qualquer, quando jogávamos bola na rua de cima, cismou que um escorpião amarelo tinha picado o seu dedinho do pé esquerdo e que iria morrer antes que amanhecesse o dia seguinte. Os sintomas vieram rápido: dor excessiva, febre alta, tremores e suores. Foi o pai quem o levou para o hospital. Não deram soro nem remédio, pois não havia qualquer picada. Mas obrigou o pai a ficar consigo durante toda a noite, em observação. E Messias não morrera de picada de qualquer escorpião amarelo.

Não tínhamos dúvida: Messias era o nosso melhor jogador. Nas peladas detrás do parque, era ele o mais disputado entre os times e nos torneios na Inhaúma era o nosso maior goleador, até o dia em que resolvera pendurar as chuteiras. Foi num domingo de manhã, quando fomos buscá-lo para irmos ao jogo. Dissera que não jogava mais, pois tinha medo de morrer numa bolada dispersa ou numa trombada com algum zagueiro descontrolado. O melhor era pendurar as chuteiras. E, assim, perdemos o nosso craque.

A última do Messias foi há pouco. Enquanto tomávamos uma cerveja no bar do Egmar, disse que não viajaria mais. Não iria mais a Montes Claros, nem a cidade alguma. Pois as estradas andavam violentas e, a qualquer hora, poderia, por alguma fatalidade, ou imprudência alheia, morrer de acidente. Nenhum de nós disse qualquer palavra. A situação do nosso amigo estava se complicando e, se continuasse assim, daí a pouco não sairia mais de casa, fato, aliás, que havia se tornado pouco habitual, pois, conforme me disseram, ela havia encasquetado com a ideia de que alguém o poderia assaltar e, por maldade, matá-lo.

Fazia alguns dias que eu não tinha notícias do Messias, até que ontem me vieram contar. Era de madrugada quando ele acordara assustado: alguém estava assaltando a sua casa. Certamente que o ladrão estava na cozinha pegando a cafeteira, o liquidificador, o microondas. Daí a pouco, iria à sala, levaria a televisão e o aparelho de som. E se o achasse ali, certamente o mataria.


Desesperado, Messias levantara da cama e, vestido de cueca e pantufas, saíra correndo para a rua. Um carro que vinha em alta velocidade não conseguiu parar e messias morreu no local. O pai, que fazia o café e se preparava para ir ao trabalho, não entendeu o desespero do filho e nem creu direito quando o viu caído ao chão. No velório, a mãe, entre prantos, ainda repetia que messias se encasquetava com qualquer coisa. 

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

JANEIRO

As alpercatas lhe apertavam os pés, por isso, tirou-as e continuou a caminhar. Sol quente de janeiro. Certamente, choveria mais tarde: chuva grossa, com raios e trovoadas. Tinha que chegar em casa logo, mas toda aquela areia em nada o ajudaria. Se pelo menos tivesse um cavalo. Nem isso... Nem isso fora capaz de adquirir!

            Quando viera para o norte, trabalhar nas carvoeiras, tudo era verde. Ganhara muito dinheiro. Tinha mesmo ficado rico. Andava com o bolso cheio de notas, chapéu de massa na cabeça e pagava pinga pra todo mundo no boteco de Cristiano. Depois, pouco tempo depois, tudo aquilo se transformara num grande deserto. Uma sequidão só.

            Um espinho lhe enfiou no pé. Espinho desgraçado. A areia estava quente. Se andasse descalço, estrepava o pé; se andasse calçado, não se aguentava de dor. Um cavalo resolveria o seu problema. Já tivera um carro. O fusquinha andava atolado de gente. Durante o dia trabalhavam; à noite, iam pro boteco. No caminho, passavam no rio e tomavam  banho, homens e mulheres, todos juntos, feito bicho no meio do mato.

            Os rios, quase todos secaram. Dos amigos, os que não morreram, alguns se casaram e foram embora para a cidade. Ele nunca quisera ir. Queria queimar o carvão e ficar rico de novo. Compraria uma casa na cidade, um carro e uma bicicleta. Sempre quisera uma bicicleta, mais até que um cavalo. Mas tinha que ser na cidade. Naquele areião não dava pra andar de bicicleta.

            O sol continuava quente, mas algumas nuvens já se ajuntavam por perto. Dentro de pouco tempo choveria. E ainda estava longe de casa. Maldito cavalo. Até queria voltar pro Jequitinhonha. Não podia. Não desse jeito. Tinha que trabalhar mais, ganhar algum dinheiro; daí voltaria pra lá. O carvão ainda daria para algum tempo. Depois, tudo viraria deserto. E o jeito era voltar.


            A chuva estava chegando. Um rancho abandonado bem na beira da estrada. Tinha que entrar e esperar a chuva passar. Muita gente abandonou os ranchos. Também, com essa miséria de salário. Se tivesse um cavalo, já estaria em casa. Mas, de que adiantaria?! Não tinha mulher, nem filhos. Nem mesmo um cachorro tinha mais. Piranha era um bom companheiro. Cobra desgraçada. Apesar da chuva, fazia calor dentro do rancho. Sentou-se a um canto, destampou a garrafa e tomou um trago. Se tivessem mais árvores, a chuva seria mais bonita. 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O SONHO DE LUCAS


- Quando eu crescer, vou ser jogador de futebol! - E, por muito tempo, este foi o único pensamento de Lucas.
            Durante muitos anos, enquanto menino, corria descalço pelos peladores de Coração. Jogava no campinho de Menon, Detrás do Parque, no Buriti, no Diamante, no Caldeirão, no Aeroporto e até no Renovação. Não era um exímio futebolista, mas, voluntarioso, sempre estava no meio dos outros meninos, quebrando um galho de lateral, meia, volante, atacante, zagueiro e até de goleiro se precisasse.
            - Você não vai passar. – Essas foram as palavras do pai, numa madrugada, antes que Lucas saísse para pegar o ônibus que o levaria, junto com outros quarenta meninos, para uma “peneira” em BH, no CT do América.
            Campo bom, verdinho, parecendo um tapete. A bola corria rápida. Os meninos fintavam, chutavam, corriam de um lado para outro, feito loucos. Lucas não pegara na bola e, logo, foi desclassificado. O pai tinha razão.
            Não queria mais ser jogador de futebol, mas ainda jogava bola com os meninos. Agora, já rapazinho, tinha que trabalhar. Estudava de manhã, vendia picolés à tarde, e, antes que anoitecesse, batia as suas peladas. Já não corria como antes, nem marcava como antigamente. Afixara-se como zagueiro e vivia de dar balões para o ataque.
            Com o tempo, abandonara a escola. Já havia tomado duas bombas e o pai, então, resolvera colocá-lo para trabalhar de verdade. Foi ser servente de pedreiro, fazer massa, traçar concreto, carregar carrinhos cheios de tijolo, areia e brita. As peladas resumiram-se às tardes de domingo, quando rodava pelas roças, disputando torneios com os outros rapazes.
            Com dezoito anos, Lucas resolvera que era a hora de partir, procurar coisas melhores, ver se virava alguém na vida. Despediu-se do pai, beijou a mãe e foi embora para BH. Disse que ia morar na casa de um tio, que trabalhava de vidraceiro em Lourdes, próximo a Cidade do Galo.
            Depois de uma semana de viagem, Lucas ainda não havia chegado à casa do tio. Os pais, desesperados, foram à polícia, colocaram anúncios na rádio e na internet, viajaram para BH, refazendo o trajeto do rapaz, talvez o encontrassem em alguma parada à beira da estrada. Não o encontraram.
            Passado muito tempo, Lucas não aparecera na casa do tio, nem voltara para a casa dos pais. Talvez tenha descido em alguma cidadezinha antes de BH, ou tivesse ido para um lugar mais adiante. O certo é que nunca virara jogador de futebol. Ele não era bom o bastante.
           

            

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O MENINO DA FOTO

 O que dói é a saudade da mãe. Deitado debaixo da marquise, Luís se ajeita. Faz frio, mas não tanto quanto nas noites anteriores. A fome é suportável; nessas noites de fim de ano as pessoas dão o que comer para quem mora na rua. Não dera sorte de ganhar roupas, só tem a camisa branca encardida cheia de rasgões e o short de jogar bola. Foi com eles que saíra de casa há mais de um ano.

Não dava pra ficar. Até que a falta de comida, os xingamentos do padrasto, o mínimo carinho da mãe, tudo isso era suportável. Mas ver a velha apanhando não dava. Ou morreria ele ou o padrasto. Até que numa noite, quando havia baile na favela, ele chegara embriagado, pegara a mulher pelos cabelos e começara a bater. Luís não aguentava mais, dera uma única facada e desceu correndo pelos becos. Ainda ouvira os choros da mãe tentando segurar o bêbado ensanguentado.

Nunca mais tivera qualquer notícia da mãe ou do velho. É melhor assim. Faz um ano que está longe, a saudade dói, mas ele aguenta. Isso o fez mais forte, já é um homenzinho. Talvez um dia volte à favela, e, se a mãe o tiver perdoado (dizem que as mães sempre perdoam) haverá de se explicar e dizer que tudo aquilo fora para a sua proteção.

O sono não vem. Com tanto movimento, não dormirá tão cedo. O melhor é ir para a praia, ver os fogos da Virada. Além do mais, pode ser que consiga alguns trocados, ganhe algum celular, pode ser que os meninos estejam por lá cheirando cola ou jogando bola na areia.

As nuvens estão espalhadas, deixando entrever a lua toda formosa. Na favela é que ela era bonita de verdade. De lá via toda a cidade e os fogos pareciam explodir bem junto dos barracos. A praia está cheia, mas Luís não vê os meninos. Os fogos pipocam nos céus, e a imagem é sempre bonita. Lembra-se de que as pessoas pulam as ondinhas para dar sorte. Não sabe quantas, mas quer pular. Tira a camisa e põe junto de uma barraca. Todos olham para o céu e ninguém o vê entrando no mar.

O frio é suportável, a água o aquece. Pula algumas ondas, na esperança de que um dia possa voltar pra casa, abraçar a mãe, ser menino de novo. Um homem o acompanha com uma câmera na mão. Pensa em correr. O homem pergunta qualquer coisa, mas o barulho não o deixa compreender. Esforça-se um pouco e lendo os lábios do homem, responde o que mal entende: “Luís da Silva Cruz” “Nove Anos” “Moro na rua, senhor”...

O homem se aproxima e ele corre. A camisa ficou esquecida no cantinho da barraca. Já na marquise, Luís pensa que aquele homem poderia ser o seu padrasto, que viera lhe matar. Também acha que poderia ser o salvador, que a mãe sempre dizia que um dia ia voltar para salvar as criancinhas. Na dúvida, o melhor é fechar os olhos e dormir. Mas o frio lhe é quase insuportável.





segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

ANO NOVO


Da sacada do seu apartamento, ele via as pessoas descendo. A virada do ano ainda demoraria, mas as pessoas já desciam para os arredores da praça. Algumas iam para a missa, outras desciam para os botecos. Faltava-lhes paciência para esperar o Ano Novo. Eram moças, rapazes e velhos que desciam a rua, enquanto ele, escorado na sacada, apenas observava todo aquele movimentar de gente.

            Quando novo, descia aos bailinhos da lagoa, ia às festas no Riacho ou ficava a vadiar em volta da igreja, até que os fogos começassem. Agora, depois de velho, preferia ficar ali, observando a horda, imaginando o que seria de cada um daqueles que desciam, o que pensavam, para onde iam e como voltariam. Já não tinha mais idade para festas e o foguetório já não o aprazia como antes.

            Algumas mocinhas desceram a rua em desabalada carreira, cantando músicas modernas, gritando obscenidades; uma senhorinha descera para a missa, com sua roupa domingueira e o terço na mão, olhando as mocinhas que cantavam e gritavam, fazendo cara feia, cochichando palavrões. Uma mulher de meia idade arrastava um menininho sonolento, enquanto dois homenzinhos observavam-na, imaginando obscenidades e fumando seus cigarros de palha.

            O sono ia chegando aos poucos, à medida que ele bebericava o seu vinho. Não usava roupas brancas nem fazia qualquer mínimo plano para o futuro. Da sacada do seu apartamento, vestido com seu roupão de banho, apenas observava e desanimava-se: o mundo já não tem mais conserto!

            Na televisão, nenhum programa que prestasse, nenhum jogo, a não ser as reprises. O melhor era ficar ali, fazendo mau juízo das pessoas que desciam, na esperança de que, dentre tantos, houvesse ao menos um que se salvasse. Ao longe, algum, mais apressado, já soltara um foguete adiantado, sendo respondido por outro mais distante e outro e mais outro. Depois, apenas o silêncio da noite, interrompido pelas pessoas que desciam.

            A garrafa de vinho ia esvaziando rapidamente. Havia chovido mais cedo, mas, agora, as estrelas já davam o ar da graça pelos céus. E isto lhe trazia lembranças de quando ainda era jovem, de quando ainda descia junto de toda aquela gente e esperava pela chegada do Ano Novo, sempre cheio de esperanças de que um dia tudo pudesse ser diferente. Já não estava bem. Era a hora de dormir.  


01/01/2018