quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

COISAS DE HÁ MUITO TEMPO

Em meio à tarde abafada, as nuvens vão se encaixando no céu, trombando umas nas outras, fazendo barulho e criando desenhos. Elas escondem o sol quase por inteiro e deixam apenas uma brecha por onde ele possa nos iluminar.

Se você, caro leitor, bem olhar para o céu neste instante, talvez consiga ainda ver as figuras que passeiam sobre nossas cabeças e, quem sabe,  pode ser que sinta os mesmos sentimentos que nos encantavam em  outros tempos.

É possível que, com um mínimo de esforço, veja o pequeno elefante que se equilibra nas patas traseiras, a tartaruga que caminha lentamente para o norte ou o cavalo que se contorse detrás de uma montanha de algodão.

Caso faça um pouco mais de esforço e feche os olhos por um momento, poderá viajar por entre as nuvens e, quem sabe, chegar mesmo a tocar a lua, como fazem as crianças, os loucos e os poetas; assim como também fazem os apaixonados quando sonham com suas amadas.

Mas tudo isso precisa de um pouco de esforço. Para ser ver o céu e as nuvens; para voar e sentir, é preciso olhar para cima, é preciso fechar os olhos; é preciso se apaixonar. E tudo isso são coisas de há muito tempo.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

UMA PEQUENA TRÉGUA

Parece que a chuva resolveu dar uma trégua, talvez não por muito tempo. E junto dela, para o prazer dos insaciáveis, a vida começa a voltar à velha rotina. Por isso, alguns já até pararam de lançar impropérios contra São Pedro, ainda que os olhos de sol continuem desenhados em alguns quintais.


Do sofá da sala, com a televisão mostrando os estragos causados em BH, enquanto beberico meu café de rapadura, dividindo os pães de queijo com Nino, o mais novo membro da família, já ouço as máquinas de lavar trabalhando arduamente nas casas vizinhas, enquanto uma voz entoa alegremente uma música antiga.


Um carro tenta se desengasgar não muito longe, tossindo um barulho rouco, enquanto alguns  homens conversam quase gritando, discutindo se ele ainda está frio ou se tem alguma gangrena no motor, levantando e descendo o capô, tirando e colocando as mangueiras, mudando os fusíveis, limpando as velas.


As varredeiras varrem a rua enquanto contam causos, acontecidos ou inventados; uma mulher corta os galhos de uma planta que nunca para de crescer; alguns cachorros correm de um lado para outro, rasgando os sacos de lixo colocados nas calçadas pelas donas de casa, brincando no meio da rua, correndo atrás dos meninos que descem de bicicleta.


Parece que a chuva deu mesmo uma trégua, certamente não por muito tempo. E a vida começou a andar novamente. Mas, se, em meio a tamanho burburinho, cada um se aquietar um pouco, é possível ouvir a canção que vem da lagoa, num chuvoso sorriso, a espera de novas precipitações pluviométricas. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O ESPÍRITO ARTÍSTICO DE ZEZINHO


Zezinho era um menino mirrado e amarelo que chegou ao Vivaranda e virou artista. A verdade é que ninguém sabia o seu nome verdadeiro e, como ele se recusasse a pronunciá-lo,  resolvemos chamá-lo por essa alcunha. Como estávamos em uma companhia teatral, não seria de se estranhar que alguns preferissem se utilizar dos seus nomes artísticos.

O Grupo de Teatro de Palco e Rua Vivaranda durante alguns anos perambulou pelas ruas da cidade apresentando “A Paixão de Cristo” durante a Semana Santa e, nos distritos e cidades vizinhas, interpretando as duas peças que, de certa forma, acabaram por dar alguma fama ao grupo de jovens corjesuenses: “O Sofrimento de Sofia” e “Alô, Doutor”.

A verdade é que o Zezinho, assim como eu, nunca teve um papel de destaque nas apresentações, contentando-nos em exercermos papeis como “Reis Magos”, “Assistentes do doutor” ou meros figurantes, além de carregarmos os instrumentos da fanfarra e alguns equipamentos das apresentações. Mas isso não importava, Zezinho e eu éramos artistas do Vivaranda.

Depois de alguns anos, o grupo que se reunia nas dependências da União Operária deu por finalizadas as suas ações. Já não viajaríamos para Lagoa dos Patos, Montes Claros, Taiobeiras; já não entraríamos em cena carregando um caixão, sob os olhares curiosos dos espectadores; já não distribuiríamos, aos gritos, em meio a uma pequena turba nas praças e ruas das cidadezinhas, as famosas pílulas “Cura Tudo”.  Já não éramos mais os jovens artistas de antigamente.

Zezinho, porém, não se deu por vencido. O menino mirrado, amarelo e de poucas palavras já se tinha imbuído do espírito artístico e isto era um caminho sem volta. Por isso, comumente sua voz ainda pode ser ouvida nas rádios e nos carros de som, seu espírito musical pode ser visto e dançado nos shows que anima pelas festas da região e sua capacidade interpretativa ainda hoje pode ser apreciada nas aulas que leciona como verdadeiro protagonista. Tudo culpa do Vivaranda.

domingo, 26 de janeiro de 2020

O FIM DOS VELHOS JOGADORES

O Futebol, assim como a moda, é cíclico e, sem sombra de dúvidas, a todo instante cria novas verdades que, em seguida, transformar-se-ão em grandes mentiras, para depois se transformarem em verdades novamente. Assim, pode ser verdade que está chegando o fim dos velhos jogadores.

Em tempos não tão longínquos, os jogadores saíam para a Europa já formados, com mais de vinte e cinco anos, para construírem o seu "pé de meia", retornando já em vias da aposentadoria, sendo poucos os que passavam dos trinta anos jogando em alto nível e, mais raramente, aproximando-se dos quarenta em alto nível.

Naquele tempo, o futebol brasileiro primava pela técnica, enquanto os europeus privilegiavam os engessados esquemas táticos. Os atletas que iam para o Velho Continente eram famosos por desequilibrar os jogos, além de não se aterem às grandes responsabilidades.

Com o passar dos tempos, os grandes times da Itália, Inglaterra, Espanha, entre outros de menor expressão, passaram a buscar jogadores cada vez mais jovens, chegando ao ponto de contratar vários jogadores de qualidade ainda nas categorias de base dos pequenos, médios e grandes clubes brasileiros.

Com isso, passamos a ver por estas plagas, com maior frequência, a participação de jogadores acima dos vinte e cinco anos e, graças às novas tecnologias e à mudança de perfil dos nossos futebolistas, um grande número de jogadores com idade entre trinta e quarenta anos.

Juntamente com a saída cada vez mais precoce dos nossos jogadores, é notório que a qualidade técnica do futebol brasileiro tem passado por uma sensível queda, desfilando pelos gramados nacionais jogadores medíocres e atletas em fim de carreira.

Atualmente, o futebol tem começado a sofrer um novo processo, com os clubes compreendendo o pensamento europeu e, vislumbrando a oportunidade de ganhar mais dinheiro com a venda de jogadores, contratando cada vez mais jogadores novos e com características agradáveis ao futebol do Velho Continente. Desta maneira, os velhos jogadores são relegados aos times de menor expressão ou veem-se obrigados a aposentarem-se das quatro linhas, passando às funções extra-campo.

É fato que se trata de um processo, por enquanto, irreversível. Conseguintemente, é possível que tenhamos uma elevação na qualidade técnica do nosso futebol, além de transformações táticas, em grande parte pela presença de diversos técnicos estrangeiros em nossos campos. Não obstante, é fato que muitos jovens jogadores, as verdadeiras joias, serão vistos por aqui apenas por um ou dois anos, seguindo rapidamente para a Europa, sobrando-nos os outros futebolistas.

DESCONSTRUÇÃO

                 DESCONSTRUÇÃO

                                      Por Elismar Santos

     Ando por esta estrada desde pequeno
                                        (Manoel de Barros)


O incrível é que a cada vez que passo
Ela não é mais a mesma
Como o mesmo também não sou.
Se dez vezes eu passar
Em cada uma ei de observar
Pois sempre haverá uma estrada
Em que eu não me reconheça
Nem ela a si reconhecerá.
Por isso em cada passo
Vamos nos desconstruindo
A estrada e eu
Buscando o homem que foi menino.

O FRANGO SEM CABEÇA


Mike viveu um ano e meio sem cabeça e o seu dono era responsável por alimentá-lo e limpar os seus mucos na garganta. Li esta história numa rede social e, como tudo que está lá é verdade, acredito piamente que tenha acontecido.

Para bem entender o fato, é preciso esclarecer que Mike era um frango, que teve a cabeça cortada pelo seu dono e mesmo assim teimou em não morrer, virando figura de sucesso nos Estados Unidos. Ainda de acordo com a publicação, o frango famoso morreu engasgado com seu próprio muco, enquanto o dono procurava a seringa de sucção.

Para provar que isto pode ser verdade, recordo-me de uma vez em que passei uma semana no sítio de um amigo, à beira de um rio, comendo e bebendo bem, despreocupado com o trabalho e sem mesmo ligar para as notícias do Alvinegro.

Era uma manhã de domingo, quando deveríamos voltar para casa. O combinado era almoçarmos e partirmos, pois naquela tarde começaria o Brasileiro e tinha jogo do Galo. Por isso, logo cedo começamos a bebedeira na varanda, enquanto a mulheres cuidavam dos tiragostos e do almoço.

À pedido  da esposa do cicerone, travamos uma luta de pega-esconde com um gordo frango do amigo. Era um acinzentado, grande e de pernas enormes. Como a cerveja já me tinha tirado boa parte dos reflexos, dei-me à tarefa de apenas cercar o fugitivo, enquanto os outros tratavam de agarrá-lo.

Como ninguém quisesse matar o coitado do galináceo, lembrando-me da tática usada pelas velhas cozinheiras do Sanharó, ofereci-me para o sacrifício. Peguei-o pelo pescoço e, virando a cara para o lado, dei-lhe umas três voltas no ar, soltando-o em seguida, esperançoso de que não sofresse muito em sua morte.

Eis que para a surpresa de todos, o penoso, com o pescoço dependurado, pôs-se a correr por desabalada carreira, indo pular direto no rio. Ninguém fez menção de pegá-lo. O melhor era mesmo voltar para a varanda e contentarmos com a cerveja e os tiragostos, deixando o pobre frango nadar em paz.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

SEU NEURASTÊNICO


Morreu o único Neurastênico da nossa rua e acredito que um dos derradeiros do país; afinal, quem, nesta época de tantas importunações, haveria de chamar ao filho de Neurastênico?!

Pois bem, Neurastênico Hollanda de Assis, o Seu Neura, fazia jus ao nome. Ele mesmo se dizia "sistemático"; mas, na verdade, era o estresse em pessoa, sempre de cara fechada, pouca conversa e quase nenhuma simpatia.

Quando chegara a nossa rua, Seu Neura já era velho; já tinha os cabelos brancos sempre assentados para trás com bastante gel, carregando sempre a impressão de que estivesse ainda molhado, e já era encurvado, lembrando o  Quasímodo de Notre Dame.

Ninguém sabe ao certo de onde viera, se fora casado, se tivera alguma profissão. Seu Neura vivia uma vida simples, com sua rotina corriqueira, e, como se fosse um relógio, podíamos sempre divisá-lo fazendo a sua caminhada matinal, passando pela padaria da esquina, onde comprava dois pães de sal e um litro de leite; subindo a rua até o posto de saúde, onde fazia fisioterapia, voltando dentro de uma hora, e assentado à porta da rua antes do pôr do sol, conversando com Seu Meneandro, um antigo empregado da Cemig, que mora numa das rua de baixo, mas sempre vinha conversar com o velho.

Com os vizinhos Seu Neura quase não conversava, a não ser para reclamar dos meninos que sempre jogavam bola na rua e  deixavam cair no seu quintal ou para perguntar sobre o seu gato que sempre sumia de casa.

Durante o dia, era possível ouvir os gritos e xingamentos que o velho soltava em casa. Às vezes brigava com o pobre gato, outras vezes resmungava consigo mesmo, reclamando da vida, arrotando impropérios, prometendo vinganças.

Seu Neura dormia pelas dez da noite, depois que tocava, sistematicamente, a sua serenata noturna. Eram sempre as mesmas músicas, nos mesmos acordes e com a voz extremamente aveludada de quem houvera nascido para cantar.

Morreu Seu Neurastênico, o último da nossa rua, calmamente, durante a sua caminhada, sem nem mesmo reclamar do gato, que também não haveria de voltar para casa.

ANACLETO, A CHUVA E O GUARÁ


Para a felicidade dos catrumanos, a chuva tem dado o ar da sua graça novamente. É verdade que tem sido uma chuva mansa, ainda incapaz de fazer correr água pelos inúmeros córregos que se encontram em processo de extinção pelas bandas de cá. O Guará, por exemplo, faz menção de renascer, deixando escorrer pelos seus caminhos, mas, depois, como que cansado de fazer força, adormece novamente.

Ainda que seja em pouca quantidade, a chuva reaviva os sorrisos, que há tempos não apareciam por entre os lábios deste povo sofredor. Ontem mesmo estive em casa de Anacleto, vaqueiro velho, de muitas histórias e mãos calejadas. Sob os olhos arregalados de uma senhora que, emoldurada, enfeitava a parede da sala, tomamos café adoçado com rapadura, degustando um convidativo bolo de fubá feito pela sua esposa, que pouco se assemelhava à senhora na parede.

O velho Anacleto, assentado em um tamborete do outro lado da mesa, falava sobre os estragos que a chuva tinha causado em BH, perguntando pelo compadre Renato, que mora em Contagem. Ele tinha ouvido pelo rádio aquelas notícias e, se nunca tinha ido à Capital, agora é que não sentia vontade mesmo de ir; preferindo ficar escondido no Guará, torcendo para que ao menos o feijão se salvasse depois de toda essa seca.

Foi a esposa quem se lembrou do Córrego, esperançosa de que agora talvez ele corra e ainda afirmou que se a chuva que tem caído na Capital viesse para as bandas de cá, certamente que ele corria de novo, como fazia em outros tempos. Eram os tempos em que Anacleto ainda montava a cavalo, que ia até o Pitão levando gado, pegando chuva, vendo os passarinhos cantando molhados nos pequizeiros.

A velha capa que usava nos dias de chuva ainda está pendurada na parede, uma capa de lona amarela que tem ao seu lado o velho chapeu de couro, em forma de cuia, e os arreios que punha no Tirano, o único cavalo bom que ele possuira. Anacleto, com os olhos no horizonte e a fumaça do café subindo, ainda sente saudade de quando saía campeando, de quando quebrava os galhos no peito para buscar as vacas perdidas no matagal; mas disse que a saudade maior, a que mais dói, é do Guará descendo feito louco nos dias de chuva.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

SOBRE OS ORELHÕES


Estive às voltas com os orelhões por estes dias. O mais difícil, nestes tempos de incontáveis tecnologias, sobretudo nas pequenas cidades, é encontrá-los pelas ruas e, se encontramo-los, é tê-los em perfeito funcionamento. Os de ficha já não existem, assim como se findaram as fitas cassetes, os walkmans, dentre tantas outras modernidades de tempos passados. Quanto aos orelhões de cartão, os poucos que se podem encontrar nas pequenas urbes, ficam de enfeite (de péssimo gosto, por sinal) nalgum canto, sempre com seus problemas incapacitantes.

Em meio à celeridade do mundo virtual, andamos atolados em nossos telefones móveis, valendo-nos das redes sociais e suas facilidades. Como de praxe, o governo, em todas as suas esferas, teima em nos contrariar e, para uma simples consulta de dados, ordena que liguemos de um telefone público, de um aparelho que não funciona, fazendo com tenhamos que perambular por toda a cidade, gritando em cada orelhão, segurando para não esmurrar a intransigente ferramenta.

Como tudo tem o seu lado bom, o périplo pelos orelhões corjesuenses fez-me recordar os tempos das fichas, quando saíamos de casa com os bolsos carregados para ligar nas rádios e pedir músicas, para conversar com os parentes de outras plagas, rapidinho, que era para não gastar todas de uma vez, para passar trotes em números escolhidos aleatoriamente. Eram tempos em que não tínhamos ainda tantas tecnologias e mal sabíamos para que serviam os governos.

Algumas coisas ainda permanecem iguais nos orelhões, porque os adolescentes ainda são os mesmos, com suas ideias, seus pensamentos e suas canetas. Cada aparelho ainda traz consigo nomes de pessoas, números de telefones e recadinhos apaixonados, como o que dizia, dentro de uma pequena nuvem: “Luana, você é a lua que brilha na minha noite!”. Não há dúvidas, os orelhões ainda possuem alguma serventia, ainda que Luana certamente nunca haverá de ler o recado deixado pelo seu anônimo apaixonado, pois deve estar entretida nalgum bate papo virtual.

O IMPORTANTE LUÍS

Foi durante a última grande enchente do São Francisco, quando as notícias ainda chegavam trazidas pelos caminhoneiros que vinham de Ibiaí. Eram tempos de muita chuva, com péssimas estradas e incontáveis atoleiros.

 Nesse cenário, Luís de Andrelino foi quem se dera bem. Assim que as chuvas começaram, pegou o seu trator e pôs-se de prontidão à beira da estrada, bem ao lado de um lamaçal de enormes proporções. Como era grande o movimento, cobrava preços razoáveis para puxar cada carro, ganhando o seu dinheirinho e a estima dos motoristas.

Todos conheciam Luís e lhe queriam bem. Os caminhoneiros que vinham de Ibiaí traziam-lhe muitos peixes, que ele dividia com os moradores vizinhos. Estes, vendo que o homem ganhava boa grana e diversos mimos desatolando os carros, passaram a levar- lhe lanches diários e, depois, pediam favores e algum emprestado.

Luís sentia-se importante e procurava agradar a todos, para que não perdesse o apreço de cada um. Com o tempo, passou a não cobrar pelo serviço que prestava ao desatolar os veículos, contentando-se com os mimos que ganhava e que, gentilmente, distribuía com os seus amigáveis vizinhos. 

Como deveria ser, a chuva foi embora; os lamaçais acabaram-se e já não fazia mais sentido ficar com o trator parado à beira da estrada. Ainda assim, Luís continuava em seu posto, talvez à espera dos peixes e dos mimos dos viajantes. Ninguém mais parava, não traziam mais nada e nem mesmo buzinavam para ele.

Deitado ao lado do trator, o homem ficava todo o dia a olhar os carros passarem de um lado para outro, sem que nenhum vizinho lhe trouxesse mais qualquer coisa para beber ou comer. Já não era mais tão importante como outrora e já não tinha nem mesmo o dinheiro, que antes sobrava, para o sustento da casa.

Luís lembrou-se da grana que havia emprestado para os vizinhos e pensou que já era a hora de cobrar. Como ninguém lhe abrisse as portas, resolveu deixar aquilo de lado; afinal, de nada adiantaria todo aquele desgaste. Já não era importante, eles não tinham por que se preocupar.

É bem verdade que hoje as chuvas já não caem como antigamente e, por isso, já não se justifica a presença de Luís, com o seu trator à beira da estrada; mas, muitos daquela época ainda dizem encontrá-lo por várias plagas em busca de quem infle seu  ego novamente.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

SOBRE PARAQUEDISTAS

Li, algures, que os paraquedistas já estão aterrissando por estas plagas. É óbvio que se estava falando sobre os políticos oportunistas que a cada dois anos aparecem em busca de votos e mais poder. Também me parece claro que tão cedo estes não se acabarão, afinal, os catrumanos necessitam de atenção e sentem-se comovidos quando alguém lhes oferece qualquer gesto de carinho.

Em outros tempos, outros paraquedistas já vinham por estas bandas e traziam consigo todo um aparato para fisgarem os nossos humilíssimos leitores. Eu ainda era menino de calças curtas e já saía correndo pelas ruas esburacadas do Buriti, correndo atrás dos aviõezinhos que passavam jogando santinhos com as caretas dos candidatos. Aquilo mais parecia a chuva de que tanto sempre precisamos e que vez ou outra aparecia por aqui.

Junto dos outros meninos, eu corria pegando uma centena de papeizinhos, que depois virariam dinheiro nas nossas brincadeiras na casa de Sílvia, a nossa vizinha, mãe do Zé Domingos. E, enquanto corríamos, gritávamos, balançávamos os braços e imaginávamos, todos, o dia em que voaríamos num aviãozinho igual àqueles que apareciam em épocas de eleição.

Mas o melhor ainda estava por vir. Antes que as pequenas aeronaves descessem no campo do Cecorje ou na AABB, alguns paraquedistas (os de verdade) pulavam lá de cima e, como bonecos de plástico, vinham rodopiando ao bel-sabor do vento, miravam algum ponto imaginário e pousavam, para nova desabalada carreira de nós meninos. E quando chegavam, víamos que não eram bonecos, mas corajosos rapazes que usavam roupas grossas e puxavam para dentro de suas mochilas enormes lonas e um emaranhado de cordas.

Os paraquedistas, voadores e políticos, iam embora rapidamente, para voltarem, quem sabe, dois anos depois. Enquanto isso, nós, cheios de sonho e dinheiro, brincávamos de comprar paraquedas e aviões; pegávamos alguns sabugos de milho; amarrávamos sacolinhas de plástico e jogávamos com toda força para cima, só para vê-los cair rodopiando, feito os nobres homens do ar.

domingo, 12 de janeiro de 2020

UMA CRÔNICA REFRESCANTE


O sol tem andado mesmo muito quente neste mês de janeiro e isso não é anormal, afinal, desde que me entendo por gente, o início de ano costuma nos queimar a moleira. Nos outros anos, porém, sobretudo nos mais longínquos, esta era uma época de chuvas consideráveis, com enchentes, relâmpagos e trovoadas.

Os entendidos afirmam que tudo isto tem se dado pelas mudanças climáticas, causadas principalmente pelas toscas ações humanas. Embora eu tenha visto infindáveis plantações de eucalipto pelas minhas andanças por estas plagas, prefiro não discutir o assunto e, consequentemente, não falar sobre o processo de desertificação que vem ocorrendo na nossa região catrumana, afinal, esta tende a ser uma Crônica de refresco em meio a todo este calor.

 A fim de amenizar as sensações térmicas elevadas, seria de bom tom levar a família para um descanso à beira da lagoa, onde haveria de tomar uma cerveja gelada comendo um tiragosto de peixe, enquanto os meninos brincariam na areia debaixo do pé de mangas. Mas, pensando bem, talvez o mais plausível seja mesmo ficar em casa assistindo futebol, deitado no chão frio, sem o gosto do peixe nem os riscos do sol e da água.

Enquanto isso, as lembranças  surgem. São lembranças ainda quentes, que pouco a pouco vão se esfriando, até que um dia me sumam por inteiro da mente. Lembranças nostálgicas de quando, debaixo do sol escaldante, Seu Lila passava em frente de casa vendendo suas vasilhas de ferro batido ou de alumínio e seus grandes copos de lata e Seu Zé Planeta passava carregando sua cesta cheia de pães de queijo, gritando pra todo mundo ouvir “Olha o pão de queijo! Tá quentin, Tá quentin”!

Eu era ainda menino pequeno e brincava na rua, correndo atrá de bolas feitas de meia e de plástico; saltando os buracos da erosão causada pelas chuvas e vez ou outra tampados pela prefeitura, brincando e brigando com Zé Domingos, o filho da vizinha,  enquanto os dois senhores passavam para lá e para cá debaixo do sol castigador. Dentro de pouco tempo a chuva chegava; Seu Zé Planeta e Seu Lila sumiam, enquanto minha mãe gritava para que eu fosse tomar banho. Eu era pequeno, tomava banho e, cansado, dormia; depois acordava avariado, com meus pais tomando café e assistindo tv.
- Bom dia, Negão. Vai tomar café que o dia já amanheceu.
Eu levantava atordoado e punha meu café, enquanto o Faustão tagarelava. Ainda era domingo e nem mesmo tinha anoitecido.

sábado, 11 de janeiro de 2020

CICLISTAS E BICICLETEIROS

Andando por estas estradas, é comum encontrar-se com ciclistas e bicicleteiros. Estes rumando para os eucaliptos ou para as roças; aqueles exercitando as pernas, espairecendo os pensamentos; todos se aventurando debaixo do sol escaldante, negando dos carros, forçando os músculos.

Eu também já fui ciclista, eu também já fui bicicleteiro. Quando adolescente, andava de magrela e jogava futebol. Quer dizer, jogar não jogava; corria atrás da redonda pelos campinhos corjesuenses, sem grandes sucessos, nem grandes aspirações.

De bicicleta eu andava para todos os cantos. Ia pagar as contas nos correios, comprar miudezas no supermercado, pegar livros no Caic, trabalhar na 106. Primeiro era uma Monareta 86, para, depois, perambular por várias bicicletas, de tantas marcas e muitos tipos.

Já velho e com rabugem, a bola e a bicicleta foram deixados de lado. Voltando, depois de muito tempo, às pedaladas, tornei-me um ciclista, com bicicleta apropriada e roupa esquisita. Andava vinte, trinta quilômetros por dia, tentando acabar com a gordura acumulada na linha do tempo e nos copos de cerveja. Até que a coluna deu o grito.

Uma hérnia de disco e um bico de papagaio deram uma pausa na minha curta carreira de ciclista. Vez ou outra, por pirraça, visto-me de bicicleteiro e saio pelas ruas, resfolegante e cheio de suor, em busca de algumas cervejas.

E para que não me reste culpa pelo sedentarismo, caminho quase que diariamente por dez quilômetros, pensando, sonhando, macomunando com minha mente as crônicas que não farei, pois a preguiça assim não me permitirá. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

AS NOSSAS REDES DE INFORMAÇÃO


As notícias de fora já não chegam pelos jornais; aliás, estes só chegam a estas plagas quando comprados em Montes Claros e cada vez mais são encontrados em menores quantidades naquela urbe. Cabe-nos, portanto, encontrá-las nas redes sociais, em meio à torre de babel digital, tentando diferenciar o que é verídico daquilo que não passa de Fake News, ou então, assisti-las nos tendenciosos telejornais noturnos.

A verdade é que, em plena era de tanta modernidade, encontramo-nos isolados do mundo. Isolados em meio a uma turba eriçada. As informações chegam de todos o lados, de todas as formas, sem maiores preocupações ou apurações, e, diante de tamanhas incertezas, o mais prudente talvez seja desligar-se das redes sociais e ater-se às notícias provincianas, encontradas gratuitamente em cada esquina, em meio aos “bons dias” de cada transeunte.

A fim de se esclarecer sobre todas as coisas de cá, é plausível que logo após o café matinal, que deve ser tomado antes que o sol nasça por detrás das nuvens sobre a lagoa, caminhe-se pelas ruas da cidade. Se possível, recomenda-se o passeio com um pequeno cachorro, um papagaio sobre o ombro esquerdo ou mesmo um gatinho debaixo do braço, pois isso sempre traz um ar mais interiorano.

Certamente que, antes que se chegue à primeira esquina, um solícito sujeito, ainda com cara de sono, haverá de dizer um preguiçoso “Bom dia”, para depois dizer que “Hoje o sol vai ser brabo, de queimar a moleira, né?”. Pronto, tem-se início a conversa, daí às informações, aos debates, com a turma se achegando rapidamente.

Os grupos são vários e dividem-se pelos mais diversos assuntos, o que não impede, no entanto, que se falem sobre amenidades e divagações. Alguns se especializam em política, com afirmações veementes, e fontes confiáveis, de que fulano e sicrano sairão candidatos à prefeitura, com uns senhores vaticinando que este será o vitorioso, enquanto outros dão a certeza de que aquele não perde de jeito algum. Outros grupos falam de futebol: Atlético, Cruzeiro e o Lagoano, que, se tudo der certo, em pouco tempo disputará o Mineiro.

É preciso que se alimente bem no café matinal, pois as conversas prolongam-se por horas, chegando ao ponto de, vez ou outra, as esposas precisarem intervir. Eis que uma grita do portão:

- Ananias, vem almoçar enquanto a comida tá quente, senão os meninos comem tudo!

É o sinal para que as outras senhoras apareçam rapidamente no portão. De novo alguns “Bons dias”, um comentário sobre o sol, que teima em queimar as nossas moleiras, e eis que as conversas recomeçam, com as informações, os debates, as discussões, e um novo grupo se formando.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

MÍNIMA CRÔNICA SOCIAL (Mais um hiato no Romance)


Muitos preferem São João da Lagoa. Eu, por questão de intimidade mesmo, prefiro a alcunha de Pitinha. Como bom mineiro, afeito às simplicidades e às proximidades das coisas, acho mais carinhoso o nome no diminutivo; não no sentido pejorativo, mas com a ideia de aconchego, de proximidade com o ser, assim como chamavam a um dos nossos maiores poetas de “Poetinha”, pelo simples prazer de trazê-lo para junto de si.

       Talvez seja mesmo o saudosismo, quiçá a nostalgia, que me fazem pensar assim. Consequentemente, sou avesso às formalidades, aos extensos cerimonialismos e às falsidades que tudo isso traz no seu âmago; preferindo andar de bermuda e chinelo, com a camisa do meu time à beira da lagoa nas tardes de quarta-feira, enquanto não começa o ano futebolístico.

            Pode parecer bobagem, mas, nomes enormes me fazem lembrar as novelas mexicanas; enquanto os nomes no diminutivo e até mesmo os apelidos me remotam aos nossos grandes jogadores de outros tempos, aos apelidos carinhosos de criança. Os bons jogadores chamavam-se Pelé, Tostão, Ronaldinho, Zico e as crianças eram Pedrinho, Luisinho, Careca, Toquinho.

            Muitas vezes os nomes não ornam com suas respectivas cidades. Ao repetir, por exemplo, o nome de Luís Eduardo Magalhães, imagino uma urbe onde convivam cerimoniosamente  homens de terno e gravata com mulheres de longas saias e blusas de manga. Não sei mesmo se teria coragem de perambular pelas ruas daquela plaga como ando pelas ruas de cá.

            Assim, lembro-me do cachorro de um vizinho. O vizinho chamava-se Eleutério e o cachorro Jonley. Pois eis que todas as manhãs, antes que o sol começasse a queimar o cocuruto, o homem levantava-se, fazia suas ablações, tomava o seu café com pão e manteiga, vestia-se de terno e gravata e punha-se a passear com o Jonley. Hoje, mais afeito as diversidades mundanas, não o recrimino, afinal, com um cachorro desses até eu andaria assim. Até eu.

sábado, 4 de janeiro de 2020

UM PAPO COM TONICO

Faz uma semana que Dina não aparece. Em redor da casa de Tonico poucos movimentos, apenas o homem e os meninos andam de um lado para outro, com os afazeres domésticos. De acordo com Candinha, que quase diariamente vai ter-se com a amiga, ela ainda se encontra acamada, mas melhorando a olhos vistos.

Tonico vez ou outra passa por aqui, com a mesma cara de bobo de sempre. Sempre tira o chapéu ao me ver sentado na varanda, diz um "Bom dia, Doutor!" e segue o caminho rumo ao curral. O menino mais velho sempre está ao lado dele na parte da tarde, quando já voltou da escola.

Tenho notado que, embora sempre passe e cumprimente, o homem não tem parado para conversar. Desde que a esposa caíra de cama, anda sempre apressado, correndo pelos cantos, sem tempo para um dedo de prosa. Por estes dias, peguei-o de jeito. Ele passava desembestado, quando ordenei que entrasse.

- Bom dia, Doutor. Algum problema?

Notei que me olhava com a cara assustada, olhos esbugalhados e tez amarelada. Fiz sinal para que sentasse no banco em frente ao meu, peguei um copo, enchi de vinho - um vinho trazido por um ambulante pelos lados do Rio Grande, coisa de boa qualidade, que eu degustava acompanhado de uns nacos de queijo dos que Tonico fazia - e convidei-o para beber comigo.

- Eu preciso trabalhar, Doutor. Se não se importa, vou beber só um golinho.

Entreguei-lhe o copo e empurrei o prato que estava sobre a mesa para o seu lado. Em seguida, falei sobre o Arnaldo e de como bebíamos sempre, enquanto conversávamos sobre tudo. Acho que o álcool já me subia pela cabeça, pois contei sobre a saudade que sentia do amigo morto e que sempre sonhava com o dia em que descobrisse quem o havia assassinado... Se é que ele tinha sido mesmo matado.

Acho que estava conversando demais e, num momento de devaneio, disse que aguardava ansioso pelo momento em que ele haveria de aparecer novamente no Sarará, quando eu faria uma grande festa pelo amigo e pediria perdão pelas muitas faltas que tive com ele.

Tonico parecia nervoso, mas se controlava e ouvia atenciosamente o que eu falava. Ele tomava o vinho vagarosamente e sempre balançava a cabeça, mesmo que meus pensamentos não fizessem qualquer sentido. Às vezes fazia menção de perguntar algo, mas logo desistia. A verdade é que, mesmo sendo bastante diferente, aquele homem lembrava-me do Arnaldo. Talvez todos os caseiros que pelo Sarará passassem, me lembrariam o Arnaldo.

Enchi novamente os nossos copos. O marido de Dina tentou recusar, mas, frente à minha insistência, pôs-se a bebericar o seu vinho. Parei de falar do Arnaldo e fiquei a olhar o pobre homem. E se ele fosse parente do meu falecido amigo e tivesse vindo vingá-lo? E se fossem, ele e a esposa, junto com os filhos, uma quadrilha, mercenários catrumanos, que tivessem pactuado com Arnaldo a fim de se vingarem, tomarem Candinha de volta e também o Sarará?... Com certeza, bebi demais.

Olhei para o tempo, parece que não demoraria a chover. O silêncio tomou conta da varanda e, para fazer com que Tonico falasse sobre algum assunto, perguntei pela esposa, se tinha melhorado, qual o problema dela e se precisavam de alguma coisa. Neste momento, Candinha chegou reclamando dores de cabeça. Enquanto ela sentava-se ao meu lado, o caseiro levantou-se e pedindo licença, voltou para as suas obrigações.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

AS DORES DE DINA

Dina não veio trabalhar hoje. Ainda bem cedo, quando eu mal tinha acordado, Tonico veio me avisar, todo cheio de rodeios, que a sua esposa não poderia vir, pois estava acamada. Disse que ela tinha acordado com dores de cabeça, sem conseguir ao menos se levantar da cama. 

Era possível notar a preocupação latente nos olhos do sujeito. Com o chapéu entre as mãos, olhava com cara de cachorro pidão, quase pedindo perdão pela doença da esposa. Disse que tinha madrugado, tirado o leite das vacas e preparado os queijos, e que o menino não iria à aula, para cuidar das coisas em casa.

Assenti com a cabeça, enquanto tomava um gole de pinga preocupado com a esposa do Tonico. Candinha haveria de ficar preocupada e, certamente, pediria que eu a deixasse ir cuidar da mulher. E nisto, eu preferiria trazê-la para dentro da casa. Seria menos perigosos, ainda mais sem a presença dos cabras, que, depois de receber uma boa paga pelos serviços prestados, partiram para o Triângulo. Disseram que iam colher café pelos lados de Patrocínio.

Ofereci uma dose de pinga ao homem, alegando que era para relaxar um pouco. Negou a bebida de um modo acanhado e, com as mãos para trás e a cabeça baixa, perguntou-me se poderia ir até a farmácia do seu Zequinha; talvez ele tivesse algum remédio para as dores da esposa.

Diante das preocupações do caseiro, permiti que fosse até o Pitinha e disse ainda que a mulher viesse quando sarasse, que não se apressasse e, fosse caso de maior precisão, eu fazia questão de que ela ficasse aqui em casa, aos cuidados de Maria e Candinha.

Tonico agradeceu com os olhos cheios d'água; apertou fortemente a minha mão e deu de beijá-la. Puxei a mão resoluto e disse-lhe que não era preciso nada daquilo; que fosse cuidar de Dina e se precisasse de algo não se fizesse de rogado. O homem saiu escarreirado, pegou o cavalo e foi buscar os conselhos e remédios do farmacêutico, enquanto eu enchia novamente o meu copo, preocupado com a pobre mulher.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

RESOLUÇÃO

Tonico veio me reclamar dos três companheiros de serviço. O caseiro chegou timidamente, antes que Dina chegasse para os serviços na cozinha. Disse que a mulher não demoraria, que tinha ficado dando uma adiantada nos serviços da casa, enquanto ele vinha conversar comigo.

Senti um frio na espinha ao ouvir aquelas palavras. Será que a esposa tinha se irritado com a maneira que eu a olhava e tinha reclamado ao marido? Procurei manter a postura altiva; destampei a garrafa de pinga e ofereci ao Tonico:

- Toma uma comigo?

O homem, que já estava com o chapéu nas mãos, deu um sorriso respeitoso e aceitou o convite:

- O senhor me desculpe, mas eu vou aceitar uma dosinha. Preciso mesmo acalmar meus nervos.

Enquanto eu punha as doses nos copos, ordenei que sentasse e falasse. Ele jogou um pouquinho da aguardente no chão, dizendo que era para o santo e, em seguida, bebericando lentamente, começou a reclamações. Disse que os homens não trabalhavam, apenas enrolavam no serviço, não fazendo render as capinas, a ordenha e a produção de queijo.

Não levei a sério as lamúrias de Tonico, afinal, os três não estavam ali para produzirem qualquer serviço de roça. Apesar disso, também considerava o fato de que talvez nem precisasse mais dos homens, afinal, fazia tempo que não se tinha qualquer notícia do Arnaldo e, certamente, ele já estivesse mesmo no descanso eterno.

Já estava pronto para dispensar o caseiro, quando ele disse sobre os acontecidos com a sua esposa. Não tinha sido uma ou duas vezes; corriqueiramente, eles mexiam com a pobrezinha enquanto ela mexia nas hortas ou buscava ovos no galinheiro a pedido de Candinha. Falou que a mulher não queria que ele me falasse, pois eram homens de minha confiança, mas que ele não poderia aguentar aquilo, se não ainda faria uma besteira.

Por algum motivo, também senti a raiva do Tonico. Tomei mais uma dose de pinga e fiz com que ele também bebesse; levantei-me e andei pela varanda, olhando as vacas que pastavam próximo aos pequizeiros:

- Não se preocupe, meu amigo. Ainda hoje mando todos embora. Isso é inadmissível; como podem mexer assim com a sua esposa?! 

O homem me agradeceu com os olhos brilhando e já ia se levantando para voltar ao serviço, quando o indaguei sobre um dos filhos:

- O seu menino mais velho já aguenta o serviço no Sarará? - Diante do consentimento de Tonico, continuei - Pois bem, a partir de hoje, ele será o seu auxiliar.

O caseiro esboçou um sorriso, mas, resoluto, conteve-se. Aproveitei a sua aparente alegria e continuei:

Mas eu exijo que ele continue estudando e só comece a trabalhar depois do almoço; que tire notas boas e não perca o ano. Ele vai receber o valor que merecer, e, para que garanta o seu futuro, darei a ele a Estrela e o seu bezerrinho. Isso se você permitir.

Notei que as lágrimas queriam descer dos olhos dele, mas ele conseguia se segurar. Agradeceu-me novamente, agora com um largo sorriso na cara e pediu licença para sair, pois precisava tirar o leite para preparar os queijos.

Sentei-me novamente e tomei mais uma dose de pinga. Gritei por Maria e ordenei que trouxesse linguiça frita para o meu tiragosto. Candinha tinha acabado de se  levantar e fazia as suas ablações; logo viria, como sempre fazia, tomar café junto comigo na varanda. E Dina não tardaria em chegar.

DINA, CANDINHA E ARNALDO

Depois da ida ao Pitinha e todo o pensamento no Arnaldo, as lembranças do meu amigo não saem da cabeça. Continuo vendo-o em todos os lugares, ainda com um pouco de medo, mas, esperançoso de que ele volte para conversarmos novamente na varanda tomando um gole de pinga.

Acho que a aproximação de Dina tirou-me boa parte do medo do falecido; talvez porque, desta forma, tenho afastado a possibilidade de que o meu sonho aconteça, de que ela me encaminhe ao encontro com a morte nas mãos do marido da minha esposa.

Dina continua sendo a reservada esposa do Tonico, pelo menos na minha frente. Vez ou outra a vejo conversando animadamente com Candinha; ambas falam sobre coisas sem qualquer importância e riem alto, riem gostoso; até que se deem conta da minha presença e aquela se cala, como se visse uma assombração.

Talvez Dina tenha receio de que eu não goste das suas amenidades com Candinha; ou talvez, quem sabe, se envergonhe de se mostrar tão solícita e liberta perto do patrão do seu esposo. A verdade é que ela mais se parece com um passarinho preso em uma gaiola, guardando uma grande felicidade e uma beleza contagiante, com medo de que eu lhe corte as asas.

Ainda assim, com toda a sua timidez, eu consigo perceber o seu interesse por mim. Sempre me olha enquanto a minha esposa se encontra distraída e, por qualquer motivo, passa rápido pela varanda, como se não quisesse que eu a visse, balançando o vestido de um lado para outro, deixando que eu veja suas coxas fornidas.

Já não me preocupo com o sonho que tive e até não tenho mais o medo de que o meu amigo Arnaldo apareça por estas bandas. Acredito que ele esteja mesmo morto, que tenha sido comido por onça ou algum outro bicho; mas, tenho a esperança de que um dia, quem sabe depois de muito tempo, ele chegue pela estrada do Pitão, talvez numa manhã de chuva, montado no seu velho cavalo, me dê um abraço e me conte sobre as saudades que sentira da nossas conversas na varanda; enquanto Candinha, Dina e Maria preparem tiragostos na cozinha.

O BEZERRO

Hoje tive que ir ao Pitinha, sozinho, meio de supetão. Era cedo ainda e eu tomava o café sentado na varanda, enquanto as vacas comiam os pequis que caíam dos pés àquela hora, quando Tonico viera me falar.

Eu tinha deixado Candinha ainda adormecida, vestida com uma camisola branca, com os cabelos caindo sobre os olhos, sonhando coisas que talvez mais tarde me contasse, assim como sempre fazia, e encontrei Maria terminando o café, que me foi servido com um bolo de fubá.

O homem tinha chegado correndo e falava destaramelado,  sem que lhe sobrasse tempo mal para respirar. Disse que uma das vacas estava dando cria, mas que o bezerro não queria sair, e que se não buscasse Pedro de Carmelita no Pitinha, nenhum dos dois sobreviveria.

Pedro de Carmelita era o dono da Loja do Fazendeiro. Não era formado em  coisa alguma, mas sabia curar todos os tipos de doenças que qualquer bicho apresentasse, sempre oferecendo remédios, injeções e até benzições para salvar vacas, cachorros, cabritos, coelhos e galinhas.

Tonico não poderia ir, pois precisava ajudar a vaca no parimento, e mesmo com a ajuda dos  meus três cabras,  quase não conseguiam puxar o bezerro para fora. Ficariam os quatro fazendo força, enquanto eu fosse buscar ajuda, urgente, sob o risco do prejuízo; era uma das vacas com a maior quantidade de leite produzido.

Entrei em casa, peguei o chapéu e montei no cavalo, que o marido de Dina já trouxera selado. Só alguns quilômetros à frente foi que me vieram as lembranças do Arnaldo. O medo tomou conta da minha alma e em toda sombra de árvore eu avistava o meu falecido amigo. Andei como louco, segurando firme o chapéu para que não voasse da minha cabeça, rezando para que nada de mau me pudesse acontecer.

Pedro de Carmelita não se opôs em vir comigo. Chegamos rápido ao Sarará e Candinha já me esperava junto à porta, enquanto Dina preparava um suco de Tamarindo para que nos refrescássemos do intenso calor já àquela hora da manhã.

A vaca já está correndo pelos pastos com seu bezerro que, depois de muita luta, nasceu forte e saudável. É um macho, que em breve darei de presente ao filho mais velho de Tonico. O menino é prestativo e vez ou outra, depois de arrumar a casa, vem ao curral ajudar o pai na ordenha das vacas. É bastante parecido com a mãe, com os olhos bonitos e o sorriso tímido. Tonico é mesmo um homem de sorte.