quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

SEU NEURASTÊNICO


Morreu o único Neurastênico da nossa rua e acredito que um dos derradeiros do país; afinal, quem, nesta época de tantas importunações, haveria de chamar ao filho de Neurastênico?!

Pois bem, Neurastênico Hollanda de Assis, o Seu Neura, fazia jus ao nome. Ele mesmo se dizia "sistemático"; mas, na verdade, era o estresse em pessoa, sempre de cara fechada, pouca conversa e quase nenhuma simpatia.

Quando chegara a nossa rua, Seu Neura já era velho; já tinha os cabelos brancos sempre assentados para trás com bastante gel, carregando sempre a impressão de que estivesse ainda molhado, e já era encurvado, lembrando o  Quasímodo de Notre Dame.

Ninguém sabe ao certo de onde viera, se fora casado, se tivera alguma profissão. Seu Neura vivia uma vida simples, com sua rotina corriqueira, e, como se fosse um relógio, podíamos sempre divisá-lo fazendo a sua caminhada matinal, passando pela padaria da esquina, onde comprava dois pães de sal e um litro de leite; subindo a rua até o posto de saúde, onde fazia fisioterapia, voltando dentro de uma hora, e assentado à porta da rua antes do pôr do sol, conversando com Seu Meneandro, um antigo empregado da Cemig, que mora numa das rua de baixo, mas sempre vinha conversar com o velho.

Com os vizinhos Seu Neura quase não conversava, a não ser para reclamar dos meninos que sempre jogavam bola na rua e  deixavam cair no seu quintal ou para perguntar sobre o seu gato que sempre sumia de casa.

Durante o dia, era possível ouvir os gritos e xingamentos que o velho soltava em casa. Às vezes brigava com o pobre gato, outras vezes resmungava consigo mesmo, reclamando da vida, arrotando impropérios, prometendo vinganças.

Seu Neura dormia pelas dez da noite, depois que tocava, sistematicamente, a sua serenata noturna. Eram sempre as mesmas músicas, nos mesmos acordes e com a voz extremamente aveludada de quem houvera nascido para cantar.

Morreu Seu Neurastênico, o último da nossa rua, calmamente, durante a sua caminhada, sem nem mesmo reclamar do gato, que também não haveria de voltar para casa.

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