segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

VÉSPERA DE NATAL


Fazia duas horas que estava caminhando, sem nem saber o rumo a seguir. Tinha saído antes que o sol desse as caras e Clarinha e os meninos ainda estavam dormindo. Não havia pensado em nada, apenas tinha acordado, fez café e foi embora. Não levou roupas nem dinheiro. Nada disso era preciso. Não pensava em passar em algum lugar, seguiria pelo mato, cortando caminho, roendo pequi, chupando manga, mandapuçá, comendo castanhas e bichos pequenos.

Não estava arrependido de ter ido embora, mas também não tinha uma explicação. Era assalariado e nunca tinha sentido falta de nada. Durante o ano comia bem, sem fazer extravagâncias; no final do ano ia com a família passar uns dias na praia. Pagava no cartão, parcelado em doze vezes, que era para não se endividar. Bebia pouco, nos finais de semana. Gostava de cerveja e não bebia fora de casa. Sempre fora meio sistemático.

O sol estava quente e umas nuvens se avizinhavam. Na certa, ia chover. Não deveria ficar embaixo de alguma árvore, mas precisava achar algum lugar para se abrigar. A chuva viria com raios, já ouvia os trovões ao longe. O melhor era não parar, continuaria caminhando, podia ser que achasse alguma casa desocupada para se acomodar. Não queria ver gente, nem bichos, tinha medo de gente e de onça, e da chuva que não tardaria.

 Talvez estivesse doido, mas não ouvia vozes. Sempre tinha escutado que quem endoidava ouvia vozes que mandavam fazer isso e aquilo, e, por isso, os doidos saíam andando sem rumo, desnorteados. Ele não ouvia vozes, apenas caminhava. Nenhum pensamento fora do lugar, nenhuma falta de senso. Gostava da mulher e dos filhos, tinha sonhos, planos, pensava o futuro de cada um, a faculdade, empregos; o mais novo haveria de ser jogador de futebol, era habilidoso e tinha boa visão, certamente seria um goleador.

O sol tinha se escondido atrás de uma nuvem pesada, mas o calor já era quase insuportável. Muitos já falavam no fim dos tempos, quando todos morreriam esturricados pelo sol. Fazia bem um tempo que não chovia mesmo, só uns poucos pingos, que aumentavam ainda mais o calorão. Tirou a camisa e pôs sobre o ombro. Estava gordo, barrigudo e preguiçoso. A fome já começava a bater. A barriga roncava e sentia vontade de descansar, mas não podia, tinha que achar um lugar para se abrigar da chuva que não tardaria.

Pelo tempo que estava andando, já devia estar bem uns quinze quilômetros longe de casa. Não tinha a mínima ideia de onde estava, talvez tivesse até mesmo andado em círculos durante essas três horas. Uns pingos grossos batiam na sua cabeça. A chuva havia chegado e não tinha sinal de casa alguma, nem mesmo uma gruta. Fazia tempo que tinha saído da estrada e os trilhos pareciam se embaralhar, já não saberia nem sentia vontade de voltar.

Os raios cortavam o céu para, em seguida, se ouvirem os trovões. Ele sempre tivera medo de trovões. A camisa estava amarrada na cabeça e o short jeans todo encharcado era um peso a mais para carregar. Resolveu tirar o short. Colocou-o dependurado numa árvore e seguiu caminho. Deixou também o chinelo. A terra barrenta grudava e quase não o deixava seguir.

Dizem que os pés descalços puxam os raios, assim como o peito à mostra. Mas, ele não queria carregar peso. Agora se sentia mais leve, livre, embora com medo dos barulhos que o céu fazia. A chuva tinha engrossado e já não enxergava quase nada à sua frente, apenas um vulto que vinha crescendo, crescendo, parecendo um cachorro, um cachorro bem grande. Não teve mais medo, apenas foi seguindo, seguindo, seguindo...

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

CARLINHOS


Sol de rachar a moleira e os meninos brincando na rua. Um redemoinho tenta derrubar as roupas do varal, enquanto dona Maria corre de um lado para outro tentando pegá-las. “Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria!”; um menino assovia, com os outros indo atrás, numa algazarra sem tamanho. “Para de sobiar, bando de capeta! Senão o redemoinho não para!”.

Da janela, entreaberta, Carlinhos olha a cena. As férias mal começaram e ele já está entediado. Na televisão só notícia de política. Um ministro que prende, outro que solta; um deputado que rouba, outro que julga sem poder julgar; um senador que nem sabe da missa a metade. Futebol de verdade só em Janeiro, agora só um bando de marmanjos debatendo, gritando, discutindo as possíveis contratações de cada time.

Alguém disse que as aulas só devem começar em Março. Fosse em outros tempos e ajudaria o pai na roça, limparia algum lote ou ia engraxar sapatos na praça; mas isso era em outros tempos. Ainda tem dezesseis; é grande demais para correr com os outros meninos na rua; é novo demais para trabalhar. Foi numa dessas que quase prenderam seu Antônio, só porque tinha colocado os meninos pra vender laranja pela vizinhança.

Alessandra não para de postar fotos.  Foto de biquíni, na praia; foto no restaurante do hotel; foto com a família em cima de um morro, de onde podem ver toda a cidade. A última viagem de férias que tinha feito já faz bem uns quatro anos, quando foram para a Lapa do Bom Jesus. O pai sempre faz planos de voltar, mas Carlinhos queria mesmo é ir pra praia. Queria estar na foto junto de Alessandra.

Pedro mandou alguma mensagem no telefone. Não vai ler agora, certamente é mais um daqueles vídeos pornôs que ele manda a cada quinze minutos. Os meninos continuam correndo, outro redemoinho surge na esquina. As portas e janelas da casa de dona Maria estão todas abertas e ela já vem correndo da casa de Luciana. Um menino começou a assoviar e os outros foram atrás. Da janela entreaberta, Carlinhos sorri e imagina Alessandra só de biquíni na praia.

domingo, 16 de dezembro de 2018

A VOLTA


Ainda na esquina, já ouvia os latidos do cachorro. Certamente já havia sentido o seu cheiro e, ansioso, esperava pela sua chegada. Fazia quase um ano que estava fora, trabalhando em São Paulo, para poder manter a família. Todo mês enviava parte do salário à mulher, que sempre ligava reclamando das contas, dizendo que mandasse dinheiro, que desse um jeito, que já estava para não aguentar.

Durante todo o tempo tinha sentido saudade dos filhos e da esposa, e ligava todos os finais de semana, só para ouvir as suas vozes. O menino pedia um carrinho de brinquedo, igual ao que o coleguinha tinha ganhado de aniversário; a menina pedia uma boneca da Barbie, daquelas que vêm com um monte de acessórios; a esposa não falava de saudades, apenas pedia que mandasse algum para as contas.

O cachorro já quase derrubava o portão; latia e pulava, abanando o rabo feito louco. Parou no bar, cumprimentou o vizinho e pediu uma pinga. Perguntou pelas novas, quis saber sobre a esposa e os filhos, sem que ouvisse qualquer resposta. Depois, pediu mais uma, que era para criar coragem. Falou sobre o tempo, parecia que ia chover. O vizinho dizia amém; fazia tempo que não chovia e, se viesse, seria uma bênção.

O portão estava taramelado. Enfiou a mão por cima do muro e abriu. Talvez os filhos estivessem na escola. Havia avisado que chegaria na sexta, mas, com certeza, a mulher havia esquecido. O cachorro não sabia o que fazer, pulava, corria e latia, sempre abanando o rabo. Colocou a bolsa no chão e o adulou. Depois mandou que fosse deitar e parasse de tanto assanhamento.

As portas estavam trancadas. A da sala tinha a vidraça coberta por uma cortina vermelha, enquanto a da cozinha havia ganhado uma fechadura nova. Fazia tempo que a esposa reclamava e pedia um dinheiro a mais para arrumar, pois a cidade estava crescendo e os ladrões estavam cada dia mais sem vergonha. Estava com a chave da sala no bolso, mas preferiu chamar pela mulher.   

Durante um tempo passeou pelo quintal, esperando por alguém. Lá dentro, um silêncio terrível. Por um instante pensou ouvir grunhidos, mas, depois tudo se aquietou novamente. Seria a esposa, os filhos, ou haveria mais alguém lá dentro?! Podia ser só a sua mente pensando besteiras, afinal, sempre fora meio desconfiado, até mesmo onde não tinha nada sempre imaginava haver alguma coisa. E se estivessem preparando uma surpresa? Talvez estivessem todos em silêncio, ansiosos, esperando que entrasse. Resoluto, abriu a porta e entrou.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

PEQUI


            Pedro não sabe que o pequi possui o nome científico Caryocar Brasiliense, assim como não sabe que aquele nome, em Tupi, significa Pele Espinhenta; mas ele sabe que de Novembro a Janeiro, nos pés do Riacho da Areia, pode encontrar, quase diariamente, bem umas dúzias do fruto e que se não sair de manhãzinha para pegá-lo, vai ter que comprar, por dez reais, na venda de Tuniquim.

            Tuniquim não pega pequi. Com aquele gordurão todo, fica todo o dia detrás do balcão comendo doces e tomando Coca-cola. Nesta época, põe um prato cheio de farinha sobre a bancada e, enquanto assiste à velha televisão na parede, fica roendo um monte do fruto, ficando com a barba toda amarelada e os dentes sujos. Nem os caroços ele desperdiça, coloca tudo num cantinho, que é para o menino tirar as castanhas para comer, sempre tomando cuidado com os espinhos na língua.

            Quando era mais novo, Pedro andou vendendo pequi para Tuniquim; mas, depois de aposentado deixou de besteira. Nunca compensou levantar de madrugada e rodar mais de uma légua em cima de uma calanga pra vender por mixaria. Quem ganhava era só Tuniquim, que ainda reclamava dos pequis. Também já vendeu para os homens que chegavam nos caminhões e pagavam um pouco mais. Mas eram outros tempos. Agora só pega pra roer com farinha ou colocar no arroz com carne de sol. Tuniquim compra dos meninos de Luciolindo, que derrubam quase tudo de um pé perto do cemitério.

            Pedro faz as contas: em Agosto, Setembro ou outubro um monte de meninos nasce na cidade. É sempre assim, as meninas saem de um lado para caçar pequi e os rapazes saem de outro, dão a volta no Anel e se encontram no pequizeiro de sempre. Os meninos de Luciolindo, gêmeos idênticos, dizem as más línguas, foram feitos numa busca de pequi, lá pelos lados do São Caetano, assim como a filha de Geraldin, que nasceu à mesma época dos moleques.

            Os filhos de Pedro são de outra época. Um foi feito no Carnaval, enquanto o outro assim que o resguardo acabou. Os dois moram com a mãe e sempre chegam para as férias de dezembro. O mais velho namora com a filha de Geraldin. Tomara que os dois não vão caçar pequi. Não agora. É melhor esperar a crise acabar. O ano que vem tem mais safra de pequi.  


domingo, 9 de dezembro de 2018

CONSEQUÊNCIAS


“Ladrão fica entalado em porta depois de tentar roubar casa em BH”.
Jornal O tempo


“tudo na sua vida é um reflexo de alguma escolha que você fez. Se você quer resultados diferentes, faça uma escolha diferente”.
@Referenciou


            Entalado na porta da cozinha, ainda tonto de tanta cerveja e com vontade de ir ao banheiro, Furtado já entrava em desespero. O dia já estava amanhecendo e logo os donos chegariam. Deviam estar em alguma festa; se não, se estivessem para o sítio (que certamente deviam ter), só voltariam no final do dia. Então, na teria mais jeito, morreria ali mesmo, vergonhosamente entalado em uma porta, depois de um roubo frustrado, logo na sua primeira noite de trabalho.

            Em trinta e cinco anos, José Furtado da Silva nunca fora preso, pois nunca havia praticado qualquer delito. Não era nascido em berço de ouro, mas também nunca havia passado fome. Morador da região central de BH, gostava de hambúrgueres, pizza e macarrão. Bebia cerveja apenas aos finais de semana e, durante as refeições, preferia Fanta, pois, conforme sempre lia no Facebook, Coca é um veneno!

            Desde os quinze já era gordinho e, por isso, sempre era zoado pelos colegas. Um dia, num átimo de fúria, saiu na porrada com o filho do diretor, que era esquálido e sentava-se do seu lado direito. O menino foi para o hospital, enquanto Furtado, sem qualquer defesa, foi expulso do colégio particular. O pai, advogado da escola, preferiu colocar panos quentes no caso, enquanto a mãe o colocou de castigo eterno, além de proibir as guloseimas por uma semana.

            Aos vinte, Furtado, sem que ninguém o impedisse, saiu de casa. Foi morar num dos apartamentos que o pai mantinha na zona norte da cidade; o único que ainda não estava alugado. Não quis aceitar o emprego que o pai tinha oferecido. Não haveria de ser apenas um Office Boy. Viveria um tempo da mesada, dois mil reais, que o pai continuaria depositando em sua conta e depois, quando encontrasse o emprego que sonhava, seguiria o seu caminho.

            Aos trinta, sem mesada e desempregado, Furtado já não conversava com os pais. Morava no apartamento quase sem móveis, pois vendia tudo o eu tinha para comer e compra drogas. Durante o dia, perambulava pelas ruas belorizontinas, aproveitando-se do nome do pai para comer de graça em casa de antigos amigos da família e frequentava religiosamente a rua São Paulo, descansando da tristeza no parque municipal. De noite, ia às bocas da região central, onde fazia amigos, escrevia poemas, tecia ilusões e deitava-se com as menininhas que há muito o debochavam na escola.

Aos trinta e cinco anos de idade, uma enormidade de homem, ainda tonto e com vontade de ir ao banheiro, Furtado relembrava toda a sua vida, como se fosse um filme de terror. A bexiga já estava por estourar, teria mesmo que urinar ali, nas calças, pois nem mesmo os braços ele podia mover. O estômago roncando, a barriga doendo. O coração acelerado, doendo. Talvez tivesse sofrendo um infarto, ainda mais que o braço já começava a formigar. Ao longe, alguém abria o portão. O melhor era não gritar. Fechou os olhos e pensou nos pais. O pai haveria de defendê-lo; a mãe haveria de perdoá-lo. Só queria um hambúrguer, e já morreria feliz.

sábado, 8 de dezembro de 2018

JHONLEY


Para Alex e Hermelindo.

Preto, grande e de raça indefinida, o cachorro todas as noites nos espera no mesmo lugar. Fica à beira da estrada, observando a nossa chegada sem latir ou fazer qualquer menção para, num átimo de valentia, quando já estamos ao seu alcance, correr e latir ao nosso lado, até que cheguemos à última curva. E, com o serviço completado, ele volta para a sua casa, onde, creio eu, vai dormir o sono dos justos.

            Talvez ele se chame Bob ou Jhonley. Um antigo vizinho tinha um cachorro com este nome, também preto, grande e sem raça definida, mas que ficava no quintal todo o tempo e não gostava de correr atrás de carros. Pode ser que já seja pai de uma ou duas ninhadas e, quem sabe, até seja um bom caçador de bichos do mato; mas, por diversão, e acredito que seja somente isto, gosta de latir o nosso carro e apostar corrida todas as noites.

            O motorista não corre. Segue com o pé leve, firme ao volante, deixando que ele sinta a sensação de correr ao nosso lado, como se aquela fosse a sua maior diversão do dia, e, numa destas, ainda me disse que quando não passamos pode ser que o cachorro sinta a nossa falta e continue ali à nossa espera, até que o sono chegue e seja obrigado a se recolher. Disse, ainda, que um dia ele para, só para ver o que o bicho vai fazer.

            Confesso o meu temor, pois sempre fui um sujeito meio temeroso, receoso e deveras complacente. Gosto de ver a corrida de Jhonley, e assim o chamarei por afinidade, tanto quanto gosto de ouvir os seus latidos em torno do veiculo; mas temo pelo que ele não possa fazer no dia em que pararmos ao seu lado; pois, creio eu, ele talvez nunca tenha pensado nessa possibilidade.

            E talvez assim também sejamos nós; como o pobre Jhonley a correr atrás de sonhos, de esperanças e de ilusões, mas sem saber o que fazer quando o objetivo for alcançado. Certamente o nosso amigo nem quer que paremos e nem mesmo se interessa pelo que fazemos ou pensamos, desejando apenas correr, correr, correr, como se este fosse o seu único destino.

            Da mesma forma, pode ser que nós queiramos apenas sonhar, sonhar e buscar; pois, assim, sempre teremos um objetivo; senão, por que o cachorro esperaria todos as noites, por que ele correria em desabalada carreira, por que latiria tão fortemente, com os olhos brilhantes e o peito arfante? Sem a espera e a carreira noturna, talvez nada lhe tivesse razão, assim como não teríamos razão se não houvesse o que sempre buscar.  

sábado, 1 de dezembro de 2018

POEMAS-IMAGEM



Testando algumas criações poéticas, com poemas-imagem. Primeiro, POESIA ATRÁS DAS GRADES, numa tentativa de mostrar a situação em que nos encontramo atualmente, com os cidadãos de bem trancafiados, ironicamente, para nos protegermos da violência mundana.

Em seguida, ÉTICA NO LIXO, uma célere discussão sobre as questões éticas, em todos os âmbitos sociais, na atualidade.