segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

VÉSPERA DE NATAL


Fazia duas horas que estava caminhando, sem nem saber o rumo a seguir. Tinha saído antes que o sol desse as caras e Clarinha e os meninos ainda estavam dormindo. Não havia pensado em nada, apenas tinha acordado, fez café e foi embora. Não levou roupas nem dinheiro. Nada disso era preciso. Não pensava em passar em algum lugar, seguiria pelo mato, cortando caminho, roendo pequi, chupando manga, mandapuçá, comendo castanhas e bichos pequenos.

Não estava arrependido de ter ido embora, mas também não tinha uma explicação. Era assalariado e nunca tinha sentido falta de nada. Durante o ano comia bem, sem fazer extravagâncias; no final do ano ia com a família passar uns dias na praia. Pagava no cartão, parcelado em doze vezes, que era para não se endividar. Bebia pouco, nos finais de semana. Gostava de cerveja e não bebia fora de casa. Sempre fora meio sistemático.

O sol estava quente e umas nuvens se avizinhavam. Na certa, ia chover. Não deveria ficar embaixo de alguma árvore, mas precisava achar algum lugar para se abrigar. A chuva viria com raios, já ouvia os trovões ao longe. O melhor era não parar, continuaria caminhando, podia ser que achasse alguma casa desocupada para se acomodar. Não queria ver gente, nem bichos, tinha medo de gente e de onça, e da chuva que não tardaria.

 Talvez estivesse doido, mas não ouvia vozes. Sempre tinha escutado que quem endoidava ouvia vozes que mandavam fazer isso e aquilo, e, por isso, os doidos saíam andando sem rumo, desnorteados. Ele não ouvia vozes, apenas caminhava. Nenhum pensamento fora do lugar, nenhuma falta de senso. Gostava da mulher e dos filhos, tinha sonhos, planos, pensava o futuro de cada um, a faculdade, empregos; o mais novo haveria de ser jogador de futebol, era habilidoso e tinha boa visão, certamente seria um goleador.

O sol tinha se escondido atrás de uma nuvem pesada, mas o calor já era quase insuportável. Muitos já falavam no fim dos tempos, quando todos morreriam esturricados pelo sol. Fazia bem um tempo que não chovia mesmo, só uns poucos pingos, que aumentavam ainda mais o calorão. Tirou a camisa e pôs sobre o ombro. Estava gordo, barrigudo e preguiçoso. A fome já começava a bater. A barriga roncava e sentia vontade de descansar, mas não podia, tinha que achar um lugar para se abrigar da chuva que não tardaria.

Pelo tempo que estava andando, já devia estar bem uns quinze quilômetros longe de casa. Não tinha a mínima ideia de onde estava, talvez tivesse até mesmo andado em círculos durante essas três horas. Uns pingos grossos batiam na sua cabeça. A chuva havia chegado e não tinha sinal de casa alguma, nem mesmo uma gruta. Fazia tempo que tinha saído da estrada e os trilhos pareciam se embaralhar, já não saberia nem sentia vontade de voltar.

Os raios cortavam o céu para, em seguida, se ouvirem os trovões. Ele sempre tivera medo de trovões. A camisa estava amarrada na cabeça e o short jeans todo encharcado era um peso a mais para carregar. Resolveu tirar o short. Colocou-o dependurado numa árvore e seguiu caminho. Deixou também o chinelo. A terra barrenta grudava e quase não o deixava seguir.

Dizem que os pés descalços puxam os raios, assim como o peito à mostra. Mas, ele não queria carregar peso. Agora se sentia mais leve, livre, embora com medo dos barulhos que o céu fazia. A chuva tinha engrossado e já não enxergava quase nada à sua frente, apenas um vulto que vinha crescendo, crescendo, parecendo um cachorro, um cachorro bem grande. Não teve mais medo, apenas foi seguindo, seguindo, seguindo...

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

CARLINHOS


Sol de rachar a moleira e os meninos brincando na rua. Um redemoinho tenta derrubar as roupas do varal, enquanto dona Maria corre de um lado para outro tentando pegá-las. “Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria!”; um menino assovia, com os outros indo atrás, numa algazarra sem tamanho. “Para de sobiar, bando de capeta! Senão o redemoinho não para!”.

Da janela, entreaberta, Carlinhos olha a cena. As férias mal começaram e ele já está entediado. Na televisão só notícia de política. Um ministro que prende, outro que solta; um deputado que rouba, outro que julga sem poder julgar; um senador que nem sabe da missa a metade. Futebol de verdade só em Janeiro, agora só um bando de marmanjos debatendo, gritando, discutindo as possíveis contratações de cada time.

Alguém disse que as aulas só devem começar em Março. Fosse em outros tempos e ajudaria o pai na roça, limparia algum lote ou ia engraxar sapatos na praça; mas isso era em outros tempos. Ainda tem dezesseis; é grande demais para correr com os outros meninos na rua; é novo demais para trabalhar. Foi numa dessas que quase prenderam seu Antônio, só porque tinha colocado os meninos pra vender laranja pela vizinhança.

Alessandra não para de postar fotos.  Foto de biquíni, na praia; foto no restaurante do hotel; foto com a família em cima de um morro, de onde podem ver toda a cidade. A última viagem de férias que tinha feito já faz bem uns quatro anos, quando foram para a Lapa do Bom Jesus. O pai sempre faz planos de voltar, mas Carlinhos queria mesmo é ir pra praia. Queria estar na foto junto de Alessandra.

Pedro mandou alguma mensagem no telefone. Não vai ler agora, certamente é mais um daqueles vídeos pornôs que ele manda a cada quinze minutos. Os meninos continuam correndo, outro redemoinho surge na esquina. As portas e janelas da casa de dona Maria estão todas abertas e ela já vem correndo da casa de Luciana. Um menino começou a assoviar e os outros foram atrás. Da janela entreaberta, Carlinhos sorri e imagina Alessandra só de biquíni na praia.

domingo, 16 de dezembro de 2018

A VOLTA


Ainda na esquina, já ouvia os latidos do cachorro. Certamente já havia sentido o seu cheiro e, ansioso, esperava pela sua chegada. Fazia quase um ano que estava fora, trabalhando em São Paulo, para poder manter a família. Todo mês enviava parte do salário à mulher, que sempre ligava reclamando das contas, dizendo que mandasse dinheiro, que desse um jeito, que já estava para não aguentar.

Durante todo o tempo tinha sentido saudade dos filhos e da esposa, e ligava todos os finais de semana, só para ouvir as suas vozes. O menino pedia um carrinho de brinquedo, igual ao que o coleguinha tinha ganhado de aniversário; a menina pedia uma boneca da Barbie, daquelas que vêm com um monte de acessórios; a esposa não falava de saudades, apenas pedia que mandasse algum para as contas.

O cachorro já quase derrubava o portão; latia e pulava, abanando o rabo feito louco. Parou no bar, cumprimentou o vizinho e pediu uma pinga. Perguntou pelas novas, quis saber sobre a esposa e os filhos, sem que ouvisse qualquer resposta. Depois, pediu mais uma, que era para criar coragem. Falou sobre o tempo, parecia que ia chover. O vizinho dizia amém; fazia tempo que não chovia e, se viesse, seria uma bênção.

O portão estava taramelado. Enfiou a mão por cima do muro e abriu. Talvez os filhos estivessem na escola. Havia avisado que chegaria na sexta, mas, com certeza, a mulher havia esquecido. O cachorro não sabia o que fazer, pulava, corria e latia, sempre abanando o rabo. Colocou a bolsa no chão e o adulou. Depois mandou que fosse deitar e parasse de tanto assanhamento.

As portas estavam trancadas. A da sala tinha a vidraça coberta por uma cortina vermelha, enquanto a da cozinha havia ganhado uma fechadura nova. Fazia tempo que a esposa reclamava e pedia um dinheiro a mais para arrumar, pois a cidade estava crescendo e os ladrões estavam cada dia mais sem vergonha. Estava com a chave da sala no bolso, mas preferiu chamar pela mulher.   

Durante um tempo passeou pelo quintal, esperando por alguém. Lá dentro, um silêncio terrível. Por um instante pensou ouvir grunhidos, mas, depois tudo se aquietou novamente. Seria a esposa, os filhos, ou haveria mais alguém lá dentro?! Podia ser só a sua mente pensando besteiras, afinal, sempre fora meio desconfiado, até mesmo onde não tinha nada sempre imaginava haver alguma coisa. E se estivessem preparando uma surpresa? Talvez estivessem todos em silêncio, ansiosos, esperando que entrasse. Resoluto, abriu a porta e entrou.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

PEQUI


            Pedro não sabe que o pequi possui o nome científico Caryocar Brasiliense, assim como não sabe que aquele nome, em Tupi, significa Pele Espinhenta; mas ele sabe que de Novembro a Janeiro, nos pés do Riacho da Areia, pode encontrar, quase diariamente, bem umas dúzias do fruto e que se não sair de manhãzinha para pegá-lo, vai ter que comprar, por dez reais, na venda de Tuniquim.

            Tuniquim não pega pequi. Com aquele gordurão todo, fica todo o dia detrás do balcão comendo doces e tomando Coca-cola. Nesta época, põe um prato cheio de farinha sobre a bancada e, enquanto assiste à velha televisão na parede, fica roendo um monte do fruto, ficando com a barba toda amarelada e os dentes sujos. Nem os caroços ele desperdiça, coloca tudo num cantinho, que é para o menino tirar as castanhas para comer, sempre tomando cuidado com os espinhos na língua.

            Quando era mais novo, Pedro andou vendendo pequi para Tuniquim; mas, depois de aposentado deixou de besteira. Nunca compensou levantar de madrugada e rodar mais de uma légua em cima de uma calanga pra vender por mixaria. Quem ganhava era só Tuniquim, que ainda reclamava dos pequis. Também já vendeu para os homens que chegavam nos caminhões e pagavam um pouco mais. Mas eram outros tempos. Agora só pega pra roer com farinha ou colocar no arroz com carne de sol. Tuniquim compra dos meninos de Luciolindo, que derrubam quase tudo de um pé perto do cemitério.

            Pedro faz as contas: em Agosto, Setembro ou outubro um monte de meninos nasce na cidade. É sempre assim, as meninas saem de um lado para caçar pequi e os rapazes saem de outro, dão a volta no Anel e se encontram no pequizeiro de sempre. Os meninos de Luciolindo, gêmeos idênticos, dizem as más línguas, foram feitos numa busca de pequi, lá pelos lados do São Caetano, assim como a filha de Geraldin, que nasceu à mesma época dos moleques.

            Os filhos de Pedro são de outra época. Um foi feito no Carnaval, enquanto o outro assim que o resguardo acabou. Os dois moram com a mãe e sempre chegam para as férias de dezembro. O mais velho namora com a filha de Geraldin. Tomara que os dois não vão caçar pequi. Não agora. É melhor esperar a crise acabar. O ano que vem tem mais safra de pequi.  


domingo, 9 de dezembro de 2018

CONSEQUÊNCIAS


“Ladrão fica entalado em porta depois de tentar roubar casa em BH”.
Jornal O tempo


“tudo na sua vida é um reflexo de alguma escolha que você fez. Se você quer resultados diferentes, faça uma escolha diferente”.
@Referenciou


            Entalado na porta da cozinha, ainda tonto de tanta cerveja e com vontade de ir ao banheiro, Furtado já entrava em desespero. O dia já estava amanhecendo e logo os donos chegariam. Deviam estar em alguma festa; se não, se estivessem para o sítio (que certamente deviam ter), só voltariam no final do dia. Então, na teria mais jeito, morreria ali mesmo, vergonhosamente entalado em uma porta, depois de um roubo frustrado, logo na sua primeira noite de trabalho.

            Em trinta e cinco anos, José Furtado da Silva nunca fora preso, pois nunca havia praticado qualquer delito. Não era nascido em berço de ouro, mas também nunca havia passado fome. Morador da região central de BH, gostava de hambúrgueres, pizza e macarrão. Bebia cerveja apenas aos finais de semana e, durante as refeições, preferia Fanta, pois, conforme sempre lia no Facebook, Coca é um veneno!

            Desde os quinze já era gordinho e, por isso, sempre era zoado pelos colegas. Um dia, num átimo de fúria, saiu na porrada com o filho do diretor, que era esquálido e sentava-se do seu lado direito. O menino foi para o hospital, enquanto Furtado, sem qualquer defesa, foi expulso do colégio particular. O pai, advogado da escola, preferiu colocar panos quentes no caso, enquanto a mãe o colocou de castigo eterno, além de proibir as guloseimas por uma semana.

            Aos vinte, Furtado, sem que ninguém o impedisse, saiu de casa. Foi morar num dos apartamentos que o pai mantinha na zona norte da cidade; o único que ainda não estava alugado. Não quis aceitar o emprego que o pai tinha oferecido. Não haveria de ser apenas um Office Boy. Viveria um tempo da mesada, dois mil reais, que o pai continuaria depositando em sua conta e depois, quando encontrasse o emprego que sonhava, seguiria o seu caminho.

            Aos trinta, sem mesada e desempregado, Furtado já não conversava com os pais. Morava no apartamento quase sem móveis, pois vendia tudo o eu tinha para comer e compra drogas. Durante o dia, perambulava pelas ruas belorizontinas, aproveitando-se do nome do pai para comer de graça em casa de antigos amigos da família e frequentava religiosamente a rua São Paulo, descansando da tristeza no parque municipal. De noite, ia às bocas da região central, onde fazia amigos, escrevia poemas, tecia ilusões e deitava-se com as menininhas que há muito o debochavam na escola.

Aos trinta e cinco anos de idade, uma enormidade de homem, ainda tonto e com vontade de ir ao banheiro, Furtado relembrava toda a sua vida, como se fosse um filme de terror. A bexiga já estava por estourar, teria mesmo que urinar ali, nas calças, pois nem mesmo os braços ele podia mover. O estômago roncando, a barriga doendo. O coração acelerado, doendo. Talvez tivesse sofrendo um infarto, ainda mais que o braço já começava a formigar. Ao longe, alguém abria o portão. O melhor era não gritar. Fechou os olhos e pensou nos pais. O pai haveria de defendê-lo; a mãe haveria de perdoá-lo. Só queria um hambúrguer, e já morreria feliz.

sábado, 8 de dezembro de 2018

JHONLEY


Para Alex e Hermelindo.

Preto, grande e de raça indefinida, o cachorro todas as noites nos espera no mesmo lugar. Fica à beira da estrada, observando a nossa chegada sem latir ou fazer qualquer menção para, num átimo de valentia, quando já estamos ao seu alcance, correr e latir ao nosso lado, até que cheguemos à última curva. E, com o serviço completado, ele volta para a sua casa, onde, creio eu, vai dormir o sono dos justos.

            Talvez ele se chame Bob ou Jhonley. Um antigo vizinho tinha um cachorro com este nome, também preto, grande e sem raça definida, mas que ficava no quintal todo o tempo e não gostava de correr atrás de carros. Pode ser que já seja pai de uma ou duas ninhadas e, quem sabe, até seja um bom caçador de bichos do mato; mas, por diversão, e acredito que seja somente isto, gosta de latir o nosso carro e apostar corrida todas as noites.

            O motorista não corre. Segue com o pé leve, firme ao volante, deixando que ele sinta a sensação de correr ao nosso lado, como se aquela fosse a sua maior diversão do dia, e, numa destas, ainda me disse que quando não passamos pode ser que o cachorro sinta a nossa falta e continue ali à nossa espera, até que o sono chegue e seja obrigado a se recolher. Disse, ainda, que um dia ele para, só para ver o que o bicho vai fazer.

            Confesso o meu temor, pois sempre fui um sujeito meio temeroso, receoso e deveras complacente. Gosto de ver a corrida de Jhonley, e assim o chamarei por afinidade, tanto quanto gosto de ouvir os seus latidos em torno do veiculo; mas temo pelo que ele não possa fazer no dia em que pararmos ao seu lado; pois, creio eu, ele talvez nunca tenha pensado nessa possibilidade.

            E talvez assim também sejamos nós; como o pobre Jhonley a correr atrás de sonhos, de esperanças e de ilusões, mas sem saber o que fazer quando o objetivo for alcançado. Certamente o nosso amigo nem quer que paremos e nem mesmo se interessa pelo que fazemos ou pensamos, desejando apenas correr, correr, correr, como se este fosse o seu único destino.

            Da mesma forma, pode ser que nós queiramos apenas sonhar, sonhar e buscar; pois, assim, sempre teremos um objetivo; senão, por que o cachorro esperaria todos as noites, por que ele correria em desabalada carreira, por que latiria tão fortemente, com os olhos brilhantes e o peito arfante? Sem a espera e a carreira noturna, talvez nada lhe tivesse razão, assim como não teríamos razão se não houvesse o que sempre buscar.  

sábado, 1 de dezembro de 2018

POEMAS-IMAGEM



Testando algumas criações poéticas, com poemas-imagem. Primeiro, POESIA ATRÁS DAS GRADES, numa tentativa de mostrar a situação em que nos encontramo atualmente, com os cidadãos de bem trancafiados, ironicamente, para nos protegermos da violência mundana.

Em seguida, ÉTICA NO LIXO, uma célere discussão sobre as questões éticas, em todos os âmbitos sociais, na atualidade.











segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O ROUBO DA MULETA


Desde que o mundo existe, existem os gatunos e larápios; mas, agora, a coisa desandou de vez. Quando eu era criança, lá pelos finais de oitenta, até a adolescência, já na década de noventa, os ladrões eram nossos conhecidos, por quem passávamos nas poucas ruas da cidade e de quem, por ordens dos nossos pais e para o nosso bem, mantínhamos alguma distância; mudando, por muitas vezes, o lado da rua, indo passar em cima da outra calçada.

Eles roubavam galinhas, maços de cigarro, pequenas quantias em dinheiro, que eram encontradas nas gavetas dos botecos, enquanto o dono ia lá dentro tomar um cafezinho. Roubos grandes, em casas de família, ou coisas de maior monta, ouviam-se falar que aconteciam, ainda que de vez em quando, em Montes Claros, e, com maior frequência, em Belo Horizonte.

Minha bicicleta, uma Monareta oitenta e seis, que meu pai comprou já usada e que chegou em casa sem freio, dormiu algumas vezes na porta de seu Estanísio,  onde eu ia comprar sabão para minha mãe lavar as roupas ou picolé para refrescarmos o calorão do mês de setembro; tendo dormido muitas vezes também na porta de Edmundo, onde eu ia jogar fliperama quase que diariamente, sem que nunca fosse roubada.

Hoje se roubam de tudo, desde pirulitos de crianças indefesas até as grandes empresas nacionais. Aqueles o fazem por safadeza, estes por falta de ética. Dizem que tudo isso é bem diferente. Mas, sábado, e isto ouvi hoje pelo rádio, no Rio de Janeiro, roubaram a muleta de dona Maria. Talvez ela nem se chame Maria e pode ser que nem seja tão madura para ser chamada de dona. Acredito até que não precise usar muleta por toda a vida, pois, assim espero, pode ser que esteja apenas com uma das pernas quebradas após uma insossa queda de moto, quiçá, tenha sofrido um escorregão vagabundo enquanto lavava a casa da patroa, uma rica senhora do Arpoador. Mas isto não vem ao caso.

O que chama a atenção é o fato de a pobre mulher, enquanto fazia o seu joguinho da Mega-Sena, numa das tantas casas lotéricas cariocas, ter a sua muleta surrupiada, em plena luz do dia, sem que nem mesmo uma câmera tenha filmado a cara do deliquente. Sábado, realmente, não era o dia de sorte de dona Maria, que perdera a sua muleta e ainda não ganhou na Mega. Mas, hoje, ainda no noticiário, ouvi que um cidadão do Meyer resolvera doar para a pobre mulher uma muleta, que já não usa mais, com a condição de que quando ela não mais precisar dela, que o devolva, para que possa doar para outro necessitado.

Talvez, nesta tarde, dona Maria tenha feito a sua fezinha, depois de ter buscado, na garupa de uma moto, a muleta na casa do seu doador. Pode ser que acerte os números desta vez e não precise mais trabalhar em casa de família. Quanto ao ladrão da muleta, quem sabe ele tenha tomado um tombo, enquanto fugia com o objeto debaixo do braço, e agora a esteja usando para se locomover de um boteco a outro pelas ruas cariocas. Mas, tudo isto são apenas suposições e nada mais.  

domingo, 25 de novembro de 2018

QUADRILHA


Sempre que chove é a mesma coisa. Seu Antônio, que mora na roça e precisa da chuva para que o feijão, que já está grandinho, escape; para que o milho não morra; para que a barraginha não acabe de secar, agradece a Deus pela bênção que cai dos céus. Já até pediu que Benvinda reze o Rosário, que é pra agradecer. E quando for à cidade, ele vai mandar rezar uma missa pra São Pedro, que abriu as torneiras lá em cima.

Pedrelina não gosta de chuva. Se chove muito, a casa alaga; os meninos não podem ir à escola; as roupas vão acumulando no cesto, sem que ela possa lavar e secar. Quando Zé voltar do Maranhão, onde trabalha numa firma de carvão vegetal, vai chegar ele no canto: ou eles mudam pra uma rua lá de cima, pra uma casa decente, com varanda pra lavar e secar as roupas, onde a água não entre e até onde o carro consegue chegar pra pegar os meninos, ou ela vai embora.

Benvinda torce pra que inverne. Tomara que a chuva caia até o início de dezembro. Daí o feijão firma e dá pra colher. Depois ela volta de novo e só para em fevereiro, que aí Luciana volta. Luciana é filha de Benvinda e Seu Antônio. Menina nova, estudada, que sempre liga na casa de Joaquina e manda avisar que em Belo Horizonte tá tudo bem, que volta no início do ano que vem, depois que se arranjar por lá, que comprar um carrinho e tiver dinheiro para comprar um barraco na cidade.

Zé faz tempo que não liga. Todo mês deposita duzentos reais pra Pedrelina, que é pra feira, pras contas e pra comprar roupa pra os meninos. Pedrelina espera que ele volte em dezembro, mas, ele não sabe se volta pra ela ou se vai morar com Luciana, que nunca foi pra BH, que saiu direto pra o Maranhão, quando Zé veio em casa pela última vez, há uns seis meses.

A chuva cai mansa sobre o telhado. Benvinda reza agradecendo a chuva e pedindo pela filha, enquanto Seu Antônio, sentado num banquinho, olhando a chuva lá fora, prepara um grosso cigarro de palha. Pedrelina, deitada no sofá, assiste ao Globo Rural, torcendo pra chuva não engrossar, enquanto os meninos ainda dormem no quartinho dos fundos. Zé e Luciana dormem agarradinhos, depois de uma noite agitada no forró de Tuniquim.  Talvez nem voltem mais; pois Luciana já está até sentindo enjoos e entoteando. Pode ser que esteja esperando bebê.

sábado, 24 de novembro de 2018

A SORTE DE LINA


Às quatro e trinta da manhã, Lina já estava de pé. Enquanto a água fervia, fez suas ablações, olhando na tela do celular as fofocas do Whatsapp, vendo as fotos no Insta, invejando os posts do Face. Todo dia era a mesma coisa, e isto já a estava irritando. Queria viajar, ir à praia, tomar uísque na banheira, como faziam as atrizes da tv.  

            Um dia Lina haveria de ser rica. Por isso, jogava todas as segundas, quartas e sextas na Lotofácil. Eram sempre os mesmos números; sempre no mesmo caixa, sempre à mesma hora. Fazia já uns três anos que jogava. Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ao menos uma vez a cada quinze dias, fazia onze pontos e recuperava quatro reais do que havia gastado nos jogos. Mas ela queria mais. Queria mesmo era fazer os quinze pontos. Ficar rica. Largar a vassoura num canto. Viajar e tomar uísque.

            Às cinco e meia, já varria a rua Treze, por onde sempre começavam. Era uma sexta-feira. Não era uma sexta-feira treze. As meninas conversavam sobre o que fizeram à noite, enquanto a poeira tomava conta da rua ainda escura. A luz fraca do poste não mostrava a irritação de Lina. Aquelas fotos, as meninas conversando destarameladas, a poeira subindo, entrando pelo nariz, pela garganta, a boca seca. Lina tinha vontade de ser rica, tomar uísque, largar a vassoura de vez.

            As meninas nunca varriam as ruas direito. Pérola falava sobre o namorado. Ele nunca a deixava satisfeita e ela sempre repetia a mesma coisa; que arrumaria outro; só não o deixava porque ele tinha dinheiro; porque ele pagava a sua faculdade. Lina nunca gostara das meninas, eram todas fuxiquentas, preguiçosas. Pérola era sem vergonha. Desde o primeiro dia não fora com a sua cara. E, quando fosse rica, nem se lembraria mais de Pérola, nem das outras. Muito menos da rua Treze.

            Geralmente saíam às nove; mas, como as meninas conversassem mais do que nos outros dias, Pérola falasse das posições que o namorado tentara, das vezes que havia falhado, do encontro que tivera com um amigo dele, antes que ele chegasse, terminaram às nove e trinta. Lina estava nervosa. Por isso não gostava delas, nunca se preocupavam com o que faziam, com a hora, com o que ela precisava fazer.

            Como de costume, com a vassoura na mão, passara na mercearia e comprou uma caixinha de cerveja, da mais barata, pois era final de mês e o dinheiro não daria até o pagamento. A lotérica estava cheia. Se tivesse chegado às nove e dez, certamente estariam apenas os dois velhinhos, que sempre jogavam na Mega àquela hora. Eles já não estavam lá. Deixara a caixinha e a vassoura a um canto e se pusera a cutucar o celular.

            Jogara os mesmos números e pegou a caixinha de cerveja. Já estava na esquina quando se lembrara da vassoura. Voltou para buscá-la e já saía quando anunciaram o assalto. Como já tivesse na porta, tentou correr. Um tiro bem na cabeça e tudo ficou escuro. Lina não ficaria mais rica, não veria as meninas, não varreria mais a rua Treze, também não precisaria mais levantar às quatro e trinta.

            De noite, pérola comemorava com o namorado os números sorteados da Lotofácil: Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ele nunca tinha roubado um cartão de jogo, mas aqueles números na mão daquela mulher chamaram a sua atenção.

 A cerveja estava quase empedrando. A vassoura continuava à porta da lotérica, enquanto Lina era enterrada silenciosamente no cemitério da cidade, quase como indigente. Apenas uma das meninas fora reconhecer o corpo. Pérola também não gostava dela. Mas sempre gostara de tomar uísque na banheira com o namorado, ou com o amigo do namorado.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ANONIMATO E A DISTÂNCIA


Talvez o mais decente para um escritor seja, realmente, o anonimato e a distância; pois, assim, não se misturam o autor e a obra, o autor e o personagem, o autor e os autores. E isso sempre é conveniente saber: poder parecer piegas, maçante, manjado mesmo; mas, de fato, cada leitor é deveras um autor. Por isso, quando escrevo e publico, deixo logo de ser o pai da criança e, por conseguinte, concordo com todas as interpretações possíveis e plausíveis.

Da mesma forma, enquanto leio João Ubaldo Ribeiro, Vinícius de Moraes ou Christian Carvalho Cruz, interpreto-os de acordo com minhas mais convictas emoções, de acordo com as minhas mais prováveis compreensões, confundindo, por vezes, Autor – Personagem – Obra. Por isso, não culpo os leitores que me imputam o sumiço do Arnaldo, que me veem como um poeta inveterado, como uma cópia imperfeita de Guimarães Rosa e Jorge Amado. A interpretação é a conveniência do leitor-autor e, portanto, a mais pura verdade, ainda que sejam concretas inverdades.

Faço, então, a mea-culpa: também eu crio meus leitores; também eu sou um leitor inveterado daqueles que me leem os textos. E talvez por isso eu os conheça tão bem, embora sempre à minha maneira, conversando, silenciosamente, por vezes, com este ou aquele, pedindo, ainda que intuitivamente uma opinião, fazendo parcerias, escrevendo a mais mãos aquilo que uma não faria com tanta dignidade.

Talvez o mais decente seja, realmente, o anonimato e a distância, pois, desta forma, não saberá cada leitor-autor que durante um espaço de tempo, em frente ao computador, todos eles se escrevem nas linhas de uma Crônica ou nos versos de um poema, para em seguida serem jogados, sem qualquer tipo de piedade, nas entranhas das redes sociais, para serem desfeitos e recriados por tantos outros autores, sendo compreendidos das mais diferentes maneiras, de todas as formas, em todas as suas crudelíssimas veracidades.

E talvez isto seja o mais justo, uma vez que nestes caminhos tão turbulentos e tortuosos, de que adiantaria a lida, se todos não caminhássemos juntos, se não falássemos a mesma língua, com nossos tantos sotaques e pensamentos, se não escrevêssemos todas as nossas histórias e estórias? Não há dúvida, a melhor escrita é o distante anonimato!  

terça-feira, 20 de novembro de 2018

KEVIN ALEXSANDER


Faz uma semana que Kevin nasceu, cheio de sonhos, com o viço e a esperança que todas as crianças sempre trazem consigo e que, nós, adultos inveterados, guardamos tristemente em alguma gaveta, da qual nunca mais lembramos a real localização. Talvez tenha chorado ao nascer, para, um pouco depois, descansar de todo o trabalho despendido, no sereno colo materno, enquanto Alex certamente segurava umas lágrimas, que sempre teimam em cair.

Pode ser que Kevin, quando grande, seja locutor, o Famoso Kevin Alexsander, com sua possante voz de veludo; pode ser ainda que lecione Português e Espanhol na rede estadual de ensino; é possível que, nas horas vagas, trabalhe como DJ, animando as almas dos jovens que ainda não terão se perdido nas entranhas dos cursinhos pré-vestibulares ou nos emaranhados das redes sociais; mas, certamente, Kevin Alexsander haverá de ser artista como o pai, fazer teatro e hipnotizar sonhos.

Os tempos não são mais os mesmos e, por isso, o menino Kevin não haverá de descer a Amintas Sales, carregando um caixote de engraxate, empurrando um carrinho de picolés; assim como não jogará bola à beira da barragem do Renovação, não buscará pequi na mangas de Zé Lopes, nem caçará passarinho no Santa Tereza.

Pode ser que Kevin não seja, e certamente não será como o pai, mas, convenhamos, os filhos são a evolução dos pais e, por isso, trazem consigo toda a esperança de que tudo possa ser bem melhor do que hoje, do que fomos, do que sonhamos.

Faz uma semana que Kevin nasceu, cheio de sonhos. E, agora, enquanto dorme, embalado por alguma canção de ninar, ou brinca tranquilamente no seu berço, a pequena criança tem a plena certeza de que o menino é o pai do homem. E, subitamente, as lágrimas teimam em descer dos olhos de Alex, num átimo inconteste de felicidade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O RIO DE VINÍCIUS


Na televisão, preferencialmente, tenho assistido aos programas esportivos, sobretudo os que falam dos times mineiros; primordialmente, aqueles que falem sobre o Galo. Caso contrário, fico ligado no rádio, primando pelas ondas do AM, que tocam, quase sempre, esporte e música velha. Mas, vez ou outra, dou um pulo nos canais jornalísticos, que é para descortinar um pouco das minhas utopias, que é para pisar um pouco sobre a triste realidade em que vivemos, e, como contraponto, por vezes, descanso a mente nos filmes de Faroeste.

            Durante as manhãs, após as caminhadas, quando caço pequi e esfrio a cabeça das dores na coluna, leio, deitado na velha rede, duas ou três Crônicas de Vinícius de Moraes, que é pra não esquecer que a poesia ainda nos é indispensável, e que devemos respirá-la, ao menos uma vez ao dia, para que não nos embebamos demasiadamente das mazelas que nos rodeiam.

            Hoje, contrariando a minha rotina, não cochilei após o almoço, assim como não me ative aos programas esportivos. Munido de uma raquete, peguei-me a torrar as muriçocas que se proliferaram depois das chuvas, enquanto assistia ao noticiário, tentando separar os barulhos das muriçocas, as conversas na calçada e as informações debatidas na TV.

            Numa bancada, quase formando um U, o âncora falava sobre a retirada da Força Nacional de Segurança do Rio de Janeiro, que haverá de acontecer ainda no findar deste ano, passando a palavra aos debatedores, afirmando, porém, antes, que de nada tem resolvido essa intervenção. Ainda não tenho conversado com as pessoas de lá sobre a situação, mas, lembrei-me imediatamente do Poetinha e sobre como haveriam de ser as suas Crônicas neste tempo de incertezas.

            Após um breve instante de reflexão, eis que a minha alma novamente se apaziguou.  Certamente que o Vinícius não avexaria, embora uma dor metaforicamente o roesse por dentro. Placidamente, tomaria mais um gole de uísque e reafirmaria todas as esperanças que apenas os poetas possuem, ainda que muitas vezes disfarçadas em melancolia e incongruências; depois, sentaria-se defronte ao mar e, observando as mocinhas que porventura passassem pela praia naquele instante, comporia mais uma música, escreveria mais um poema e, por fim, amaria a vida como se não houvesse o amanhã, pois, convenhamos, tudo sempre há de melhorar.

            Assustei-me com o clarão, enquanto um pipocar estranho me feria os ouvidos.  Não eram tiros de fuzis. Também eu não estava na praia, tomando uísque com o Poetinha. Eram apenas as muriçocas que vinham, feito camicazes, bater direto na tela da raquete. Os jornalistas já não debatiam mais sobre política. Falavam agora sobre músicas, que em nada lembravam Vinícius, crônicas ou poesias.  

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

BERNADETE SILVA


Conheci a Bernadete nos tempos de rádio. Ela tinha uma voz grossa, potente, imponente mesmo. Chegou numa manhã agitada, quando os telefones não paravam de tocar, e, sem cerimônias, pediu uma oportunidade. Sempre quisera ser locutora de rádio. Crescera ouvindo Paulo Lopes, Eli Correia e Zé Bétio. Treinava em casa diariamente, falando em latinhas de salsicha, conversando com a voz empostada de frente ao espelho, repetindo o que falavam os grandes locutores. Puseram-na para atender o telefone. Se desse, um dia, colocariam-na ao microfone.

Durante quase um ano, Dete, pois assim passamos a chamá-la, embora não gostasse, mas respondesse, por educação, ficara detrás da mesinha, recebendo as ligações dos ouvintes, anotando os pedidos musicais, repassando as ligações para o estúdio, quando alguma ouvinte mais assanhada insistia em falar com um dos locutores. Nunca reclamara; mas também não escondia que o seu desejo era estar do outro lado do vidro, falando, oferecendo músicas e abraços aos seus ouvintes cativos.

Enquanto falávamos ao microfone, era comum a vermos balançar os braços no ar, como sempre fizera o Amadeu, balançar a cabeça, como fazia o Dagoberto, e repetir as palavras que pronunciávamos à nossa audiência. E aquilo nos tocava profundamente. Por isso, reunimo-nos, numa manhã de Agosto, quando ela ainda não tinha chegado, e, cerimoniosamente, pedimos ao diretor que a deixasse falar. Tiraríamos uma hora dos nossos programas e daríamos a ela. Também passaríamos a atender às ligações, para que ela não se sobrecarregasse. Acordamos todos, então, que Bernadete Silva seria mais uma das possantes vozes da nossa rádio.

Lembro-me, claramente, da felicidade de Bernadete ao saber da sua promoção. Não nos agradeceu, mas, prometeu se esforçar ao máximo para que, um dia, pudesse alcançar o patamar em que nós estávamos. E, rapidamente, ela nos alcançou. Com sua voz forte e seu gênio decidido, trabalhava todos os dias com a voracidade de um leão, sempre sorridente e prestativa, correndo atrás de propagandas, fazendo serviços bancários, produzindo e apresentando programas de domingo a domingo. Não queria folga nem férias. O trabalho era a sua distração.

Com sua força de vontade e seu talento, Bernadete conquistou o seu espaço na rádio e, logo, sem que isso fosse surpresa para nós, chegou ao, antes tão desejado por todos nós, poderoso cargo de diretora. Como primeiro ato, numa modorrenta tarde de sexta-feira, reuniu-nos em sua sala e, agradecendo pelos serviços prestados, disse que todos estávamos dispensados. A rádio teria, a partir de então, um novo rumo a ser seguido, com uma cara nova, com locutores jovens e dinâmicos, e, portanto, nossos serviços não seriam mais necessários. Nós havíamos criado um monstro.


NÓS, OS TIOS ATLETICANOS COM MAIS DE TRINTA


            É batida a ideia de que todo brasileiro seja um técnico em potencial, porém, já não se trata de uma verdade tão latente, sobretudo, após o advento da internet e seus agregados. As crianças já não assistem ao futebol como assistíamos antigamente. E, com isto, já não se contentam em ficar por mais de noventa minutos vendo uma partida de qualquer time brasileiro; assistem aos jogos do Barcelona, Chelsea, Manchester City, Real Madrid, mas ignoram, por exemplo, um Atlético e Cruzeiro. Ir ao estádio, só se for na Europa. Por aqui, preferem ficar de frente ao videogame, jogando com algum time europeu.

            Cabe a nós, portanto, os tios com mais de trinta, sofrer com os jogos do Galo. E como temos sofrido com as suas enfadonhas apresentações. Não pela esperança de que o time dê shows, que goleie seus adversários, que encha os olhos dos aficionados; mas, sofremos pela covardia, pela apatia dos milionários atletas que envergam a camiseta alvinegra, sem o sangue nos olhos que caracterizavam tantos atletas de outros tempos.

            Jogadores de habilidade, de classe, de grandes enfeites são bem-vindos em qualquer grande clube; mas, os alvinegros, diferentes de muitos outros, não fazem conta destes. Pedem apenas que joguem com raça, virilidade, que se doem ao nosso time, assim como fizeram tantos outros que não sabiam nem ao menos fintar, mas que corriam durante todo o jogo, se matavam em campo e jogavam bola como se a grama fosse o seu prato de comida, e a bola um vistoso pedaço de carne.

            Continuemos nós, os tios com mais de trinta, a carregar o glorioso Galo das Minas Gerais, esperando que um dia não precisemos mais contar com Patric, Elias, Cazares, Denílson e tantos outros que muito pouco fazem pelo nosso time, contribuindo apenas para o seu endividamento, sem levarem em conta toda uma vida de lutas e conquistas que tornaram o Clube Atlético Mineiro num dos grandes clubes do Brasil.

            Enquanto não chegam os jogadores que queremos; enquanto a diretoria não realiza o seu trabalho com a eficiência que sonhamos; enquanto os títulos não retornem às nossas mãos, aprazamos em ver em um jogo contra o rebaixado Paraná, onde, com dois jogadores a mais, nossos “imponentes” atletas toquem a bola de um lado para outro, sem atacar, sem ameaçar verdadeiramente o fraco adversário, com medo de levar um contra-ataque. Isto é o que nos dão, mas não o que queremos. E tenho dito!
              


terça-feira, 13 de novembro de 2018

SOBRE A MINHA INAPTIDÃO DECLARADA PARA O FUTEBOL


Seguindo a genética da família, se é que isto conta neste caso, nunca prestei para o futebol, embora sempre gostasse de correr atrás da redonda. Assim, de domingo a domingo, detrás do parque, no campinho do Buriti, Renovação, Diamante, ou no campinho de Menom, lá estava eu, correndo de um lado para outro, chutando a bola igual doido.

 A prova de que não prestava para o futebol é o fato de eu ter passado por todas as posições nas quatro linhas. Comecei pela defesa, atuando "gloriosamente" pela zaga, no campinho detrás do parque e, depois, no Real Madri corjesuense. Não tinha preferência por nenhum quadrante próximo à área e, portanto, jogava pela direita, pela esquerda ou no centro, falhando em qualquer um dos seus quadrados.

Depois, aproveitando da minha velocidade, embora o fôlego não ajudasse,literalmente, caí para os lados do campo, jogando, ora pela direita, ora pela esquerda; correndo quase velozmente por ambos os lados, não cruzando nem defendendo, pois, quase não ia ao ataque e, incrivelmente, quando ia, igual louco, não tinha fôlego para retornar à defesa.

Por uma ocasião, no campo do Cecorje, grama alta, onde todos sempre queríamos jogar, pois era o estádio da cidade e, consequentemente, apenas jogos de maior monta eram ali realizados, joguei pelo meio de campo. Como não era volante nem meia, não atacava nem armava; apenas ficava, feito galinha tonta, correndo de um lado para outro.  Ato contínuo, fui rapidamente substituído pelo treinador, terminado de assistir ao jogo debaixo de uma sombra, encostado no muro.

No ataque, joguei também uma vez, num torneio debaixo de chuva, numa manhã de domingo, no pelador do Renovação. Na única chance clara de gol, numa maldita bola que me sobrou, ficamos o goleiro e eu frente a frente. O gol enorme me sorrindo e Araponga (este era o nome do goleiro) pulando que nem canguru, crescendo em minha direção. Desesperado, mandei a bola pelo alto, enquanto deveria apenas tê-la tocado por baixo, no canto ou entre as pernas do arqueiro. Ela foi lenta, direto nas mãos do goleiro, que saiu rindo da minha cara.  Como consequência, atendendo aos pedidos da torcida e dos outros jogadores do meu time, fui substituído, e ainda saí vociferando, maldizendo a substituição.

Por último, num átimo de loucura, cismei de ser técnico. Primeiro, num time de garotos da escola, num campeonato interclasses: chegamos à final, mas, devido às fortes chuvas e as goteiras na quadra do CAIC, não houve o jogo final. Depois, num jogo do Real, quando tentei, sem sucesso, substituir um dos nossos atletas que teimava em não sair. Para não ficar queimado, tirei um dos menos espirituosos, que, para o meu azar, estava jogando bem àquela tarde e, com a sua saída, logo numa falha do seu suplente, levamos um gol.

 Depois, aproveitando de um telefonema da rádio, onde solicitavam a minha presença, para substituir um locutor, que por algum motivo, precisava sair do ar, retirei-me da beira do campo, aposentando-me do cargo e dos encargos futebolísticos.

Hoje, uns tantos quilos acima e sem o viço de outros tempos, ajeito-me tranquilamente no sofá e munido do controle remoto e de algumas latas de cerveja, com um belo prato de tira-gosto sobre a mesinha, aprazo-me em reclamar dos jogadores do Galo, vociferando contra o Levir que, erroneamente, bota o Elias em Campo, ainda por cima, como segundo volante, num famigerado 4, 2, 3, 1, com Luan se matando em todos os quadrantes do campo e o Cazares passeando, inoperante, em campo.

E, novamente, confirmando a minha inaptidão para o futebol, dentro ou fora das quatro linhas, Elias, numa bonita jogada pela esquerda, tabelando com Cazares e, em seguida, caindo para o meio de campo, recebe uma bola açucarada, tocada por Fábio Santos, e marca um belo gol, para a minha felicidade.