sábado, 24 de novembro de 2018

A SORTE DE LINA


Às quatro e trinta da manhã, Lina já estava de pé. Enquanto a água fervia, fez suas ablações, olhando na tela do celular as fofocas do Whatsapp, vendo as fotos no Insta, invejando os posts do Face. Todo dia era a mesma coisa, e isto já a estava irritando. Queria viajar, ir à praia, tomar uísque na banheira, como faziam as atrizes da tv.  

            Um dia Lina haveria de ser rica. Por isso, jogava todas as segundas, quartas e sextas na Lotofácil. Eram sempre os mesmos números; sempre no mesmo caixa, sempre à mesma hora. Fazia já uns três anos que jogava. Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ao menos uma vez a cada quinze dias, fazia onze pontos e recuperava quatro reais do que havia gastado nos jogos. Mas ela queria mais. Queria mesmo era fazer os quinze pontos. Ficar rica. Largar a vassoura num canto. Viajar e tomar uísque.

            Às cinco e meia, já varria a rua Treze, por onde sempre começavam. Era uma sexta-feira. Não era uma sexta-feira treze. As meninas conversavam sobre o que fizeram à noite, enquanto a poeira tomava conta da rua ainda escura. A luz fraca do poste não mostrava a irritação de Lina. Aquelas fotos, as meninas conversando destarameladas, a poeira subindo, entrando pelo nariz, pela garganta, a boca seca. Lina tinha vontade de ser rica, tomar uísque, largar a vassoura de vez.

            As meninas nunca varriam as ruas direito. Pérola falava sobre o namorado. Ele nunca a deixava satisfeita e ela sempre repetia a mesma coisa; que arrumaria outro; só não o deixava porque ele tinha dinheiro; porque ele pagava a sua faculdade. Lina nunca gostara das meninas, eram todas fuxiquentas, preguiçosas. Pérola era sem vergonha. Desde o primeiro dia não fora com a sua cara. E, quando fosse rica, nem se lembraria mais de Pérola, nem das outras. Muito menos da rua Treze.

            Geralmente saíam às nove; mas, como as meninas conversassem mais do que nos outros dias, Pérola falasse das posições que o namorado tentara, das vezes que havia falhado, do encontro que tivera com um amigo dele, antes que ele chegasse, terminaram às nove e trinta. Lina estava nervosa. Por isso não gostava delas, nunca se preocupavam com o que faziam, com a hora, com o que ela precisava fazer.

            Como de costume, com a vassoura na mão, passara na mercearia e comprou uma caixinha de cerveja, da mais barata, pois era final de mês e o dinheiro não daria até o pagamento. A lotérica estava cheia. Se tivesse chegado às nove e dez, certamente estariam apenas os dois velhinhos, que sempre jogavam na Mega àquela hora. Eles já não estavam lá. Deixara a caixinha e a vassoura a um canto e se pusera a cutucar o celular.

            Jogara os mesmos números e pegou a caixinha de cerveja. Já estava na esquina quando se lembrara da vassoura. Voltou para buscá-la e já saía quando anunciaram o assalto. Como já tivesse na porta, tentou correr. Um tiro bem na cabeça e tudo ficou escuro. Lina não ficaria mais rica, não veria as meninas, não varreria mais a rua Treze, também não precisaria mais levantar às quatro e trinta.

            De noite, pérola comemorava com o namorado os números sorteados da Lotofácil: Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ele nunca tinha roubado um cartão de jogo, mas aqueles números na mão daquela mulher chamaram a sua atenção.

 A cerveja estava quase empedrando. A vassoura continuava à porta da lotérica, enquanto Lina era enterrada silenciosamente no cemitério da cidade, quase como indigente. Apenas uma das meninas fora reconhecer o corpo. Pérola também não gostava dela. Mas sempre gostara de tomar uísque na banheira com o namorado, ou com o amigo do namorado.

3 comentários:

  1. Meu Deus,caríssimo confrade, se pudesse, seria como a Lina, mas não para ber isque, mas ganhar o prêmio e montar uma editora, só para prestigiar, pessoas assim, como você, simples e grande escritor. Parabéns, não de um amigo, mas de um fiel e grande admirador.

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  2. O existencialismo sempre presente!

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