sexta-feira, 27 de julho de 2018

O ÔNIBUS


O ônibus segue sacolejando pela estrada, desviando de pedras e buracos. Às vezes, o motorista desvia de algum galho de árvore que mira bem certo no retrovisor; noutras, quase entra mato à dentro para fugir das costelas que tomam conta do caminho. Enquanto isso, alguns passageiros mexem no celular, outros cochilam; e ainda há aqueles que vigiam o motorista, na certeza de que se dormirem este também dormirá.

A estrada é sempre a mesma: as mesmas árvores, os mesmos buracos, as mesmas caras todos os dias. O ônibus leva trabalhadores de uma grande firma, uma empresa estrangeira. Durante todo o dia, homens e mulheres plantarão, molharão, colherão e, no final do dia, quando estarão todos cansados, voltarão para casa, para dormirem e, no outro dia, fazerem tudo de novo.

Lucas não queria estar ali. Queria mesmo era jogar videogames, assistir televisão, mexer no computador; mas, fizera seus dezoito anos e, como sua família é muito pobre, precisa trabalhar para ajudar no sustento da casa. Os estudos ficam para outra hora, quando já estiver com algum dinheiro que lhe permita sair de casa, viver a sua própria vida, comprar as suas coisinhas.

Faz um mês que Lucas entrara na firma e já está cansado. Mexer com plantação é cansativo, ainda mais debaixo daquele monte de roupas: chapéu, camisa de manga comprida, calça de pano grosso, luvas, boné e botina de borracha. Já perdeu uns dois quilos, sem contar que já não tem ânimo nem mesmo para sair à noite. Enquanto mexe no celular, pensa, e, pensando, lembra-se de quando era criança, na escola; das brincadeiras na porta de casa; dos namoricos com Carlinha, encostados no muro de dona Pedra.

A tranquilidade do ônibus é entediante. Quase todo mundo dormindo. Lucas mexe no celular e pensa. Amanhã ele não vem. Vai falar com a mãe e se ela brigar sai de casa. Já é um homem feito, pode trabalhar num armazém, numa loja, numa oficina; tudo mais tranquilo, menos cansativo e entediante do que aquilo. O pai não falaria nada. Os pais nunca falam nada, as mães é que taramelam, falam, reclamam. Conversará com o pai primeiro.

Se Carlinha quisesse... Ah, Carlinha! Namorariam de novo. Agora seria coisa séria. Namoraria de aliança no dedo com ela, pediria ao pai, buscaria e levaria ela todos os dias na escola. Carlinha ainda estava no primeiro ano do Médio. Ele esperaria a formatura e, depois, se ela quisesse, se casariam. Ela quer, ela há de há de querer.

O pensamento de Lucas viaja longe, mas ele vê a estrada à sua frente. Sempre senta na primeira poltrona, pois gosta de ver o que está acontecendo. Nunca confiara em viajar nos bancos de trás. A viagem segue tranquila, sem nenhuma conversa, sem qualquer barulho de gente, apenas o ronco triste do motor. De repente, o ônibus pega velocidade; o motorista parece estar dormindo. Ninguém diz nada. Lucas olha para as pessoas, alguns dormem, enquanto outros o olham com cara de assustados. O ônibus segue rumo a uma pirambeira e, antes de o carro cair, Lucas grita, já se levantando:

- O ônibus vai tombar!

As pessoas acordam assustadas. O motorista para o ônibus no meio da estrada e repreende-o com os olhos. Lucas assenta-se novamente, fecha os olhos e finge que volta a dormir.  


domingo, 15 de julho de 2018

CANTIGA VESPERTINA


CANTIGA VESPERTINA

Aqui faz muito calor.
Manuel Bandeira


A tarde se arrasta.
Dona Maria de Zé de Cândia, sentada debaixo do pau,
Cantarola uma música triste
Enquanto Caetaninha
Contrita e desalmada
Reza a sua ladainha.
Uma torneira pinga eternamente
Ploc
Ploc
Ploc
Sem nenhuma alma para fechar
Nem um pássaro para banhar.
Apenas o redemoinho assovia, às 15 horas secas
Desta tarde modorrenta, balançando a saia no varal,
Jogando as folhas de um lado para outro,
Fazendo música e cortina
Para o Saci se apresentar.
A tarde se arrasta.
Modorrenta.
Eternamente.


São João da Lagoa, 14/07/2018

domingo, 8 de julho de 2018

ASTROGILDO



Enfunado em sua casa, Astrogildo, vive em quase completo isolamento. Sai, às vezes, para ir à casa de uma irmã, que mora em Montes Claros e, uma vez por mês, vai ao supermercado fazer a feira. Há algum tempo, fora casado, mas, dizem que a mulher não aguentou tamanha solidão e foi embora.  Alguns dizem que partiu para a Bahia, acompanhada de um colega da faculdade; outros, porém, dizem que foi morar com a mãe, que sempre a aconselhara a se separar do marido, segundo a velha: “um doido”.

Lembro de Gildo, era assim que o chamávamos, nos tempos de escola. Durante todo o colegial fomos colegas de sala. Ele era um sujeito comum, sem grandes manias, nem popular nem isolado, era apenas mais um aluno da sala. Não chegamos a ser amigos, mas, também não nutrimos qualquer desavença, e, uma ou outra vez, até fizemos alguns trabalhos juntos.

Depois, já adultos, nos víamos pouco. Fui para o curso de Letras e ele para o de exatas. Eu na pública e ele numa particular. Ele morava em Montes Claros e eu ia de ônibus todos os dias. Assim, via-o quando deixávamos alguns universitários à porta da faculdade. Ele balançava a cabeça e eu respondia com o mesmo movimento. E nisso se resumia a nossa relação.

A última vez que o vi, numa festa de fim de ano, na casa de um amigo em comum, eu notei que ele estava diferente. Já estávamos formados. Eu lecionava, já concursado, numa escola rural, enquanto ele lecionava, também concursado, em outra escola rural. Trazia a esposa a tiracolo, fazia um ano que estavam casados. Ela parecia feliz, ele se mostrava um pouco preocupado, meio cismado, quase arredio.

Tentei puxar algum assunto, relembrando os tempos de colégio; falei dos velhos colegas, dos trabalhos que fazíamos; perguntei sobre as aulas, casamento; tentei falar de futebol. Não tinha jeito, por mais que tentasse ser gentil, dar atenção, responder aos meus questionamentos; notei que Gildo estava desconfortável. Ele olhava para os lados, mexia os ombros e, eu pude perceber, conversava despistadamente com alguém, alguém que não estava ali. Não para mim e sua esposa.

Depois de algum tempo, conversando com alguns amigos, fiquei sabendo que tudo piorara e ele tinha sido encostado. Astrogildo já não disfarçava a sua loucura. Conversava a todo tempo com alguém. Sorria, brigava, chorava sozinho. E nem se importara quando a mulher foi embora. Trancou-se na sua casa e saía apenas para ir ao supermercado ou à casa de sua irmã, sempre conversando, com alguém que não estava ali, ou que nunca se via.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULOS FINAIS


Capítulo 19


Quando Juca voltou para casa, Margarida estava dando banho na menina. Ele escorou no fogão de lenha e ficou olhando aquela cena. A esposa não tinha notado a sua chegada e conversava baixinho com a criança.

A menina parecia com Marciel. Os olhos eram de Margarida, mas todo o rosto era do amigo. Juca tinha certeza de que ela não era sua filha. Tinha deixado os dois sozinhos para ir à casa do coronel, acreditando na lealdade e na amizade, mas, tinha sido traído por aqueles a quem sempre tinha amado.

Teve certeza da traição quando a mulher tirou a criança da bacia para secar e vestir a roupa. A menina trazia nas costas a mesma mancha que, há algum tempo, Juca tinha visto nas costas de Marciel. O sangue lhe subiu à cabeça, segurou firme num pau que queimava no fogão fervendo o feijão para o almoço, mas se controlou. A menina não tinha culpa da traição. Os culpados eram Margarida e Marciel. E o culpado maior era ele, que deixara os dois sozinhos naquele meio de nada, a mercê dos desejos, das fantasias, da perdição.

Não podia aceitar aquilo. Era um homem e como tal tinha que resolver a situação. Pegou o bule e pôs um copo cheio de café e, enquanto tomava lentamente, ordenou à esposa:

- Margarida, dá o de mamar à menina, que ela deve estar com fome. Depois, vai lá fora, que preciso conversar com você.

Terminado o café, deixou o copo sobre o fogão, pegou o facão que estava enfiado na fresta de uma das palhas que cobriam a casa e foi sentar-se no jirau, bem ao lado do rancho.

Margarida chorava enquanto amamentava a menina. Do lado de fora, Juca ouviu o seu choro e rezava. Pedia perdão à mãe pelo que haveria de fazer, pedia a Deus que perdoasse os seus pecados e encomendava a alma da sua esposa. Aquela situação não teria outro modo de se resolver. Havia perdido a sua honra. E o pior, a traição viera daqueles a quem ele sempre quisera bem.

- Pode confessar, Margarida, a menina não é minha filha. Não é mesmo?

A mulher não titubeou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e suas mãos tremiam, mas, com a voz firme, confirmou o pensamento do marido:

- O filho é de Marciel. Eu sempre quis um filho seu; sempre te amei e te respeitei; mas você me trocou pelas cachaças do coronel. Esqueceu que tinha uma esposa, uma casa, um futuro para construir...

O coração de Juca parecia querer saltar pela boca. O suor descia da sua testa e a raiva subia-lhe aos olhos enquanto Margarida se confessava.

- Marciel era o marido que eu tinha em casa, Juca. Era ele quem trabalhava na carvoeira, quem buscava a água para preparar o de comer, era ele quem apagava o meu fogo enquanto você estava na casa do “Seu” Gregório, sonhando riquezas, arrotando junto as arrogâncias do velho...

Juca não esperou que a mulher terminasse. Feito um touro bravio correu em sua direção e, com toda a sua força, enfiou-lhe o facão no bucho.

Margarida morreu nos seus braços, sem nada dizer. Dos seus olhos desceram algumas lágrimas, que molharam o peito de Juca. Ele não estava feliz com a morte da esposa. Sentia-se vazio, como se aquilo fosse apenas uma tarefa a ser cumprida. Deu-lhe um último beijo e passou ao enterro do corpo. Depois, pegou a menina e montando em seu cavalo saiu andando a esmo. Haveria de deixá-la na casa de alguém que a cuidasse. A pobre criança não tinha culpa de nada. Um dia voltaria e cuidaria dela, como se fosse sua filha. E aquilo era uma promessa.

Capítulo final

Com a espingarda dependurada e o facão do lado, Juca saíra em busca de Marciel. Pegou todo o dinheiro que conseguiram na carvoeira e, antes de partir, botou fogo no rancho. Não haveria de ficar qualquer lembrança dos três naquele lugar. Margarida, Juca ou Marciel, todos estavam mortos naquele rancho. Não havia mais o amor de antes, e a amizade de outrora havia se transformado em ódio, num incontrolável desejo de vingança.

O cavalo agora ia rápido, como se desejasse chegar logo à casa de Marciel. Juca não tinha mais lembranças, pensava apenas na vingança e matutava como haveria de matar o traidor. De repente, vieram-lhe as palavras do coronel Gregório, contando como capara o sujeito. Podia capar o amigo, para que ele soubesse o que é a dor de uma traição.

Já era a hora do almoço, mas Juca não tinha fome. Também não sentia sede. Não sede de água. O que sentia era vontade matar. Já não se lembrava do sentimento que nutria por Marciel, o sentimento que nunca conseguira divisar ser era uma amizade sincera ou se um amor verdadeiro. Agora tinha certeza do que sentia. O ódio fazia os seus olhos encherem de lágrimas e, antes que elas caíssem, limpava-as com a manga da camisa.

Enquanto o cavalo galopava, instintivamente, como se já soubesse o caminho para onde seguir, Juca via a imagem da menina à sua frente. Era a filha do seu melhor amigo, uma cópia perfeita dos olhos de sua esposa e a beleza insinuante de Marciel. A menininha não tinha culpa. Haveria de vê-la, voltaria a casa daquela mulher, veria a menina crescer, daria a ela tudo o que lhe fosse de direito e, quando já fosse mocinha, haveria de pegá-la para junto de si. Seria a sua filha e, já havia dito à velha, haveria de se chamar Catarina.

Catarina. Sempre gostara desse nome. Não tinha uma causa, apenas gostava, assim como gostava daquela menina, afinal, ela era o fruto daqueles de quem mais gostava.

De repente, a imagem da criança desapareça e o ódio voltara aos olhos de Juca. O cavalo estancara debaixo da Gameleira. A casa de Marciel estava próxima. Não queria fazer barulho, ele já o devia estar esperando. Deixaria o cavalo debaixo daquela árvore e seguiria a pé. Logo, tudo estaria resolvido. A sua honra estaria vingada e poderia seguir a sua vida, como sempre sonhara.

A poeira havia sujado as folhas das árvores. A seca tomava conta de tudo. Melada estava no curral, comendo capim, enquanto Marciel tomava café assentado à beira da porta.

Juca havia se escondido detrás de um pequizeiro, de onde observava o amigo. Marciel tinha o semblante cansado e entristecido. Estava sem camisa e suado, mas aquilo já não causava qualquer sensação em Juca. Ele sentia o ódio crescendo no seu peito e tinha vontade de matá-lo. Seria apenas um tiro e o homem estaria morto. Mas apenas isso não bastava, queria vê-lo morrer de perto, sentir a sua dor, até que o visse acabar-se à sua frente.

Lentamente, Juca saiu detrás do pequizeiro e caminhando com a espingarda em punho e o dedo no gatilho, gritava para o desgraçado:
- Maldito! Margarida já não existe, e agora é a sua vez!

Marciel não se moveu. Como se não se intimidasse com as ameaças do amigo, continuou a tomar o seu café, enquanto olhava fixamente para o cano da espingarda.

- Sempre o tive como amigo. Agradeci como pude por tudo o que me fez quando eu estava perdido nesses matos, mas você me traiu. Você e aquela vagabunda!...

Marciel levantou-se e, como se não tivesse qualquer temor, foi caminhando em direção ao amigo. Pôs o café sobre a cerca, alisou o pelo de Melada, pegou um capim que estava por ali e começou a mastigá-lo.

- Nós não traímos você. Eu sempre fui o seu amigo. Mais que isso eu sentia. Margarida também te amava e era capaz de dar a vida sua causa. Você se traiu, quando deixou tudo para seguir o coronel, com seus sonhos de riqueza, suas vontades de bacana. Nem eu nem Margarida queríamos dinheiro ou poder, Juca. E isso era o que você nunca foi capaz de perceber...

O ódio ferveu nos olhos daquele homem e ele deu o primeiro estampido. O tiro pegou no peito do traidor, que caíra de joelhos. Juca continuou a caminhar, até que o cano da espingarda encostasse à cabeça de Marciel, que o olhava com cara de dor e os olhos lacrimejantes.

 - Esta espingarda fui eu que roubei na casa do coronel e é com ela que você há de pagar os seus pecados. Não se preocupe, cuidarei da sua filha, como se fosse minha. Darei a ela tudo aquilo que daria a um filho meu, como haveria de fazer um amigo de verdade.

Juca tirou do bolso da calça um maço de dinheiro e jogou sobre Marciel. Sua mão tremia e ele podia sentir o cano da espingarda tocando a cabeça do desgraçado. O cabelo, antes liso, do amigo, agora estava desgrenhado, todo bagunçado, e o seu peito estava sujo de sangue. Um pouco do dinheiro ficou grudado no peito de Marciel, todo ensanguentado, moldando-se junto aos músculos e os seus fios de cabelo.

- Este dinheiro é a parte que te cabe da carvoeira. Eu tinha planos. Sonhava com uma família. É verdade, eu queria dinheiro e poder, mas, também queria tê-lo conosco. Você haveria de viver na cidade, cuidando da venda, construindo o seu caminho ao meu lado. Agora, não me resta qualquer escolha. Tenho de matá-lo, limpar a minha honra, consertar a minha vida.

- Você não tem mais honra, Juca. E não fomos nós quem a tiramos. Você mesmo a perdeu, quando se trocou pelo desejo do poder e do dinheiro.

A voz de Marciel saía fraca e ele se esforçava para manter-se ereto. Juca enfurecia-se com a força daquele homem, ao mesmo tempo em que admirava tamanha resiliência. Sentia ódio, mas seu coração fraquejava. Tinha vontade de abaixar a arma e dar a mão ao amigo, tratá-lo o ferimento e perdoá-lo. Não. Não poderia fazer isso. Era um homem e, como tal, tinha que terminar o que havia começado.

O tiro saiu firme e um esguicho de sangue sujou a roupa de Juca. Marciel caiu para trás com a força da bala, que lhe perfurara o crânio. Uma lágrima caiu dos olhos de Juca, que abaixou a espingarda e ajoelhou-se ao lado do morto.

Não seria justo deixá-lo de comida aos urubus. Numa cova rasa, Juca enterrara Marciel e, junto dele, também a espingarda; depois, respeitosamente, fez uma oração pelo amigo.

Sem olhar para trás, Juca foi caminhando pela estrada até a gameleira. Montou no seu cavalo e partiu, com a honra limpa e um enorme vazio no peito.



JUCA PESSOA - CAPÍTULO 18


Juca estava na carvoeira quando ouviu os gritos de Margarida. Eram gritos fortes e doídos, cheios de sofrimento. Marciel estava tirando a munha do forno e veio ligeiro para junto do amigo. Tinham que correr. Com certeza, a criança já estava nascendo, Juca seria pai.

Margarida caminhava de um lado para outro quando os dois chegaram. Juca não sabia o que fazer, pensou em pedir ajuda ao coronel, mas, e se o bebê cismasse de nascer antes que ele voltasse. Tinham que ter levado a mulher para a cidade. Sabia que o dia já estava chegando, mas ele só se preocupava com o carvão e com as noites na casa do Coronel. Não dava mais tempo para qualquer viagem. Levá-la no lombo de um cavalo para a cidade seria suicídio, morreriam ela e a criança no meio da estrada. Estava resolvido: ele e o amigo fariam o parto de Margarida.

Marciel estava trêmulo, amarelo, como se sentisse medo de tudo aquilo. Parado a um canto, olhava para Juca e Margarida como se visse algum bicho a sua frente. Parecia não ter forças para fazer coisa alguma.

Juca viu que não poderia contar com o amigo. O melhor seria deixá-lo do lado de fora do rancho até que a criança nascesse e tudo estivesse resolvido.

- Marciel, traga uma bacia com água e ponha ao lado da cama, junto com um pano limpo. Deixa a tesoura por perto e vai lá pra fora. Você não será de muita ajuda aqui dentro. Quando ouvir o choro do menino, pode vir para dentro.

Ele nunca houvera feito um parto, nem nunca tinha visto uma criança nascer. Ouvia apenas a mãe contar casos de crianças que nasciam com o umbigo enrolado no pescoço e de mães que morriam na hora do parto. Sabia que tinha que cortar o umbigo da criança e torcia para que Margarida não morresse.

A mulher suava frio, enquanto o marido segurava a sua mão. Suavemente, Juca passava o pano úmido na testa de margarida e pedia para que ela se acalmasse, enquanto rezava em silêncio Padres-Nossos e Ave-Marias.

Do lado de fora, Marciel andava de um lado para outro, nervoso, assoviando uma música triste. Estava preocupado e sentia medo. A lua estava cheia e fazia frio. Fazia tempo que Margarida estava deitada, sentindo dores, com o marido esperando pela chegada do seu filho.

Juca sentia a esposa quase desfalecendo e conversava coisas fúteis com ela. Tentava mantê-la acordada, apertava a sua mão e beijava a sua testa. Sentia as dores que a esposa sentia e tinha medo de que ela morresse, de que o menino não se salvasse. Não sabia o que fazer, apenas rezava e esperava.

Margarida gritava. As pernas abertas eram forçadas contra a parede, enquanto apertava as mãos do marido com toda a sua força. Buscava o seu último suspiro, na esperança de que a criança nascesse e chorava. Chorava de dor, chorava de medo, chorava de remorso.

Já era madrugada quando a criança nascera. A luz da lamparina estava fraca e Juca mal conseguia divisar os traços da criança. Entristecera-se ao ver que era uma menina. Queria um homenzinho, para ajudá-lo a cuidar da fazenda, para correr atrás do gado que teria, para aumentar toda a riqueza que haveria de conquistar.

Margarida chorava copiosamente com a menina nos braços. O marido a tinha enrolado numa toalha que achara por ali e, agora, ela mamava sossegada, enquanto fazia frio do lado de fora.

A menina era bonita. Assentado à beira da cama, Juca olhava para o rostinho do bebê. A luz fraca não permitia ver os traços, mas, sabia que era bonita. Tinha os olhos da mãe e o rostinho lembrava um pouco as feições de Marciel. Aquele pensamento perturbava Juca. Estava cansado e com certeza estava imaginando coisas. Deu um beijo em Margarida e sentiu os seus lábios frios, sem vontade, como se não quisesse beijá-lo. Besteiras. Estava cismando com coisas à toa.

 Marciel entrara timidamente no rancho, aproximou-se da cama onde Margarida e a menina dormiam, abençoou a criança e voltou para fora. Juca não disse qualquer palavra, apenas olhou para o amigo e sentiu desprezo por aquele homem. Alguma coisa corroia a sua alma naquele instante.

O amigo não dormiu no rancho àquela noite. Deitara-se à beira dos fornos, numa esteira que pusera sobre o carroção. De madrugada, pegou o cavalo e partiu, levando Melada puxada por uma corda.

Juca não entendia o porquê daquela fuga. Lembrava-se da pergunta que o coronel o havia feito numa das noites em sua casa e desconfiava. Margarida ainda dormia, quando o marido saíra. Não tinha ido trabalhar. Desceu até o córrego, sentou-se e começou a pensar na vida. Lembrou-se de tudo o que havia passado naquele ano, dos sonhos que alimentava para o seu futuro junto de Margarida, de quanto o amigo andava estranho desde que a esposa havia engravidado. E Juca tecia ideias, matutava coisas em sua cabeça.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 17


Sentado à beira do córrego, Juca lembrava-se de tudo que havia passado até ali. Lembrava-se da mãe chorando encostada junto à porta quando da sua partida e pensava no quanto ela devia ter sofrido enquanto todos os filhos iam embora.

Sabia da necessidade de partir. Não podia ficar, não era justo que permanecesse na roça, sem ter o que comer, mal encontrando o de beber. Queria ficar, ajudar a velha. Trabalharia nalguma fazenda, criaria bode ou plantaria palma, mas, era preciso partir. Tinha sido assim com os seus irmãos, também era preciso que fosse assim também com ele.

Juca não chorava. Sentia um aperto no peito e os olhos enchiam de lágrimas, mas não chorava. Sofria seco, assim como sofrem todos os sertanejos. Nos momentos em que tinha vontade de chorar, fazia uma oração. A mãe foi quem tinha lhe ensinado rezar. Lembrava-se das noites calorentas da Bahia, quando ambos rezavam sob a luz da lamparina, a velha rezando a primeira parte do terço, ele seguindo, abrindo a boca, cochilando, pensando besteiras.

Quando era pequeno, pensara algumas vezes em ser padre, usar batina, rezar missa e tomar o vinho que os padres bebem. Não queria ser padre por crença, embora sempre cresse e, por isso, benzia-se e rezava a todo instante, batia três vezes na madeira quando pensava algum mau pensamento e evitava passar debaixo de escadas; acreditava muito e acreditava em tudo: céu, inferno, purgatório.

 Juca sempre acreditara que as pessoas boas morriam e iam para o céu e que as pessoas, como Maria de Saturnino, que morrera como um passarinho, enquanto dormia, quando ele ainda era menino pequeno, iam para o céu, assim como as pessoas más, como Chico de Sá Benita, homem rude, que tinha matado Teodoro por causa de um naco de fumo, iam para o inferno, onde queimavam em brasa, enquanto eram espetados pelo diabo. Juca acreditava em tudo isso, mas cria que também havia o Purgatório, onde Maria de Saturnino e Chico de Sá Benita, assim como os outros mortos, haveriam de passar, para que pudessem ter uma última oportunidade de ir para o céu.

Juca era, de verdade, um crente; mas não era por isso que queria ser padre. Queria ser padre para beber o vinho que os padres bebiam, para morar nas casas em que os padres moravam e, mais que isso, para dar uma vida melhor para a sua mãe. Mas tudo isso foi de quando ele ainda era um menino e não pensava em ver o mundo, fugir da seca, viver a vida; quando ainda não havia conhecido Marciel e Margarida.

Depois, já rapazinho, escondia-se detrás das moitas de macambira, perto do riacho onde as mulheres tomavam banho no cair da tarde, só para vê-las nuas, ensaboando-se com sabão de coco, enquanto cantavam velhas cantigas e conversavam sobre as besteiras que haviam feito com os maridos nas noites anteriores.

As lembranças vinham embaralhadas na cabeça de Juca. Lembrava-se de coisas de há muito, mas não se recordava do que havia acontecido há pouco. Depois, pensava na espingarda que havia roubado na casa do coronel e estava escondida debaixo do seu colchão, no rancho onde dormiam ele, Marciel e Margarida.

O velho já tinha dado conta do sumiço da arma. De início, desconfiara de Marciel, mas, depois, parecia ter se esquecido de tudo. Jogaram a culpa nuns forasteiros que pernoitaram na fazenda, indo para algumas léguas adiante. O coronel gostava de Juca e numa das tantas noites em que os dois ficavam bebendo na fazenda, dissera que, se Juca se comportasse, haveria de ficar com toda a fazenda para ele, quando da morte do desgraçado.

Não acreditava naquela promessa feita de frente a um copo de cachaça, mas sonhava com o dia em que teria uma terra para chamar de sua. Fazia já quase um ano que estavam ali. Margarida, de barriga, já não podia ajudar com os serviços da carvoeira. Agora, eram apenas Juca e Marciel no corte da lenha, na queima do carvão, nos trabalhos de maior monta. A mulher ficava no rancho, preparando o de comer, lavando as roupas, esperando pelo marido.

Sentado na pedra, olhando Marciel tomar banho no poço que o córrego formava ali embaixo, lembrava-se dos primeiros dias, quando a esposa e o amigo mal se falavam. Ficava cada um ao seu canto, ele cuidando de Melada, tirando leite, assoviando baixinho umas músicas entristecidas; ela de bico estufado, arrumando a casa, em silêncio, pensando coisas de muito longe.

Era a sua mãe quem dizia que o tempo é senhor de tudo e que tudo haveria de curar. E ela dizia isso sempre que alguma coisa acontecia e não se podia consertar. Pois assim também foi com os dois. De fato, não ficaram amigos; mas, cada um aceitou a sua posição: Marciel era o melhor amigo de Juca, o seu sócio naquela empreitada; Margarida era o amor da sua vida, a mulher que haveria de lhe dar filhos, amor, o porto seguro onde deveria ancorar o seu barco.

Durante muito tempo trabalharam os três na carvoeira. A mulher fazia o serviço na casa de “Seu” Gregório e seguia para a bateria. À noite, ficavam no rancho, conversando, jogando cartas, olhando as estrelas e relembrando coisas de outros tempos. Aquilo era o que Juca mais prezava: estava rodeado daqueles que amava e nada mais lhe faltava.

Com o tempo passando e a confiança do coronel aumentando, Juca passara a ser o seu confidente. Muitas vezes, faltava o serviço para andar pelo mato com o velho, enquanto este contava coisas da capital e falava de quando estava no exército, dos homens que havia matado, de como tinha capado um sujeito que havia feito mal a uma mocinha filha de um primo do velho e que tinha fugido para uma gruta perto dali.

Margarida, enquanto o marido acompanhava o coronel, continuava os trabalhos da carvoeira junto com Marciel. Cortavam a lenha, carreavam, enchiam os fornos, tiravam o carvão e punham na bateria. Ela sentia a sua falta, assim como Marciel sentia a ausência do amigo, mas não reclamavam, continuavam a trabalhar, enquanto aproximavam-se um do outro.

Um dia, enquanto tomavam cachaça e comiam torresmo de tira-gosto, o velho perguntou a Juca se não sentia ciúmes do amigo com a sua esposa, pois eles estavam sempre juntos, enquanto ele ficava bebendo e andando ao invés de trabalhar.

- Marciel é meu amigo, Coronel. Aquele é como um irmão pra mim. Até mais do que os irmãos que minha mãe me deu e que faz tempo que nem mais eu vejo.

Gregório não quis adiantar a conversa; apenas assentiu com a cabeça e, jogando um pouquinho para o santo, tomou mais uma talagada de cachaça.

 O amigo já saíra de dentro do córrego e secava-se próximo de Juca. Uma sensação estranha tomou conta do homem, que tentava desviar a atenção. Marciel havia emagrecido durante aquele ano. O serviço tinha sido puxado, mas tudo aquilo estava valendo a pena. O dinheiro que haviam ganhado até ali já dava para Juca comprar a casinha na cidade, montar a sua venda e construir a vida que sonhara com Margarida. Mas, agora, já não queria mais apenas aquilo, sonhava ser fazendeiro, talvez um coronel, como era o “Seu” Gregório.

Antes que Marciel se vestisse, ainda que tentasse desviar o olhar, Juca notou que o amigo tinha uma pinta, uma mancha vistosa à altura da cintura, bem encima do rim esquerdo. Nunca havia reparado no quanto ele era forte; mesmo magro, o amigo era forte e vistoso.

Da porta do rancho, Margarida chamava para o jantar. Marciel foi à frente, silencioso, pensativo, enquanto Juca o seguia, segurando-se para não mostrar a felicidade que sentia. Não demorava e o filho já nasceria. Certamente, seria um homenzinho, para ajudá-lo na labuta do dia-a-dia. Não queria ser um dono de venda e já tinha pensado em tudo aquilo: assim que o bebê nascesse, levaria Margarida para a cidade, compraria casa e montaria o negócio para ela comandar.

Ainda haveria de ficar mais um tempo naquele lugar, junto com Marciel; fariam fortuna e, assim que o velho morresse, haveria de herdar a fazenda. O velho houvera prometido e, embora não cresse em promessa de cachaça, restava-lhe a esperança, além disso, quem haveria de vir para cobra as terras naquele fim de mundo.

Não deixaria o amigo à míngua. Dono da fazenda, ele buscaria a esposa na cidade; viveriam ambos e o filho nas terras do coronel Juca Pessoa e deixaria a casa e a venda para Marciel. Assim, teria ainda o amigo por perto, com toda a sua lealdade, enquanto viveriam todos felizes e cheios de dinheiro.  Ele teria dinheiro e poder, assim como o “Seu” Gregório.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

A SAGA DE JUCA PESSOA - CAPÍTULO 16


A SAGA DE JUCA PESSOA- CAPÍTULO 16


Ainda era madrugada quando Juca seguiu de volta para a casa do amigo. Deixou Margarida preparando o almoço e disse que voltaria logo. Precisaria convencer o amigo, mas cria fazê-lo dentro de pouco tempo.

Dentro de si, Margarida sentia que aquela ideia de Juca talvez não fosse a melhor, mas, não queria dizer nada, não conhecia o tal Marciel e nem saberia o quê e por que dizer. Apenas sentia um mau pressentimento, como já houvera sentido diversas outras vezes. Com certeza, alguma bobagem sua.

A viagem era longa. O cavalo seguia em passos lentos, sem que o homem o apressasse. Era como se nenhum dos dois quisesse voltar à velha casa. Juca sabia que voltar seria relembrar o passado, ver novamente o amigo tirando leite de Melada, sem camisa, com todos os músculos dançando, com sua pele suada e a barba por fazer.

Um sentimento estranho tomava conta de Juca. Sentia que amava Margarida, mas, embora tentasse, nunca conseguiria esquecer Marciel. Não sentia, por conta própria, desejos por aquele homem, mas, instintivamente, tinha vontade de tocá-lo, sentir os seus músculos, roçar o seu rosto na barba dele.

Esses pensamentos faziam com que se envergonhasse. Tinha pudor de pensar essas coisas. Estava pecando, sabia que estava; mas não sabia o que fazer. Durante quase toda a viagem, rezara o Rosário, mas, este sempre era entremeado pelas lembranças do amigo, como se fosse um atentação, pronta a tirá-lo do caminho a ser seguido.

Embora fizesse frio, o sol queimava-lhe a fronte. A cabeça doía e tinha sede. Parou debaixo de uma gameleira e tirou uma cabaça do alforje, bebeu da água barrenta que trouxera da casa de Margarida e sentiu saudades da sua esposa. Queria tê-la ali junto de si, para que ambos pudessem se deitar debaixo daquela árvore. Ela lhe faria cafuné, beijaria a sua boca calorosamente e fariam amor por um longo tempo.

Enquanto se lembrava da mulher, viu que um cavaleiro vinha em sua direção. Juca não possuía nenhuma arma e lembrou-se das palavras do coronel. Era preciso ter uma arma. O velho era esperto, ao mesmo tempo em que era um tolo: de que adianta aquele monte de armas guardadas numa estufa, se ela estava sempre aberta. Quando voltasse, se oportunidade tivesse, pegaria uma daquelas para si.

O cavaleiro vinha lento ao encontro de Juca. O seu cavalo não era grande e o homem trazia na cabeça um velho chapéu, estava sem camisa e trazia um sorriso nervoso no rosto.

- O que era feito de você, meu amigo? Tenho te procurado por aí há algum tempo. 
Saiu sem agradecer, sem dizer coisa alguma, como se fugisse de algum entrevero.

Juca reconhecera o amigo.  A sua voz ainda era suave, prazerosa aos seus ouvidos, embora viesse com um ar de irritação. Levantara-se e, sem tirar os olhos do amigo, esperou que descesse para lhe dar um abraço.

         Sentiu o coração de Marciel batendo forte, assim como o seu estava saltitando em seu peito. A barba do amigo roçava o seu rosto e isso lhe causava uma sensação estranha, uma sensação boa, embora pecaminosa.

         - Perdão, meu amigo. Eu tinha coisas a fazer. Não era justo que ficasse na sua casa, feito estorvo, apenas comendo e bebendo, sem que lhe pudesse ajudar.

         Enquanto falava, Juca olhava fundo nos olhos do amigo e via-os brilhar. Sentia-se envergonhado pelo que fizera. Havia traído a sua confiança e, ainda assim, fora recebido com um abraço.

         - Andei por algum tempo sem rumo, até que encontrei uma casa, uma esposa (e essa palavra lhe saiu dolorosa da boca) e um trabalho a fazer.

         Marciel estava imóvel, escutando as palavras do amigo. Mantinha ainda o brilho nos olhos, mas, não demonstrava qualquer sentimento. Era como se estivesse paralisado, impossibilitado de fazer qualquer movimento ou reação.

         - Arrumei-me nas terras de um tal coronel Gregório. Margarida, a minha esposa, trabalha em sua casa. Ele tem uma fazenda de tamanho quase incalculável e quer que desmatemos boa parte para a feitura de carvão. Quer plantar capim, botar gado de leite, de corte, além dos carneiros que já cria por lá. Peguei tudo para cortar de meia, e você vem pra me ajudar.

         O homem não dissera qualquer palavra por um longo tempo. Montou novamente no seu cavalo e já se virando para casa, ordenou:

         - Vamos embora. Já é quase noite, tenho que botar Melada no curral. Além disso, você já deve estar com fome.

         Ambos seguiram em silêncio. Marciel ia à frente. Juca observava como ele era elegante na montaria. Andava com um porte altivo, com a rédea a altura do peito, como se desfilasse com o seu cavalo, um pangaré que, mesmo desprovido de beleza, não se enfeava perto do seu dono.

         Não demoraram a chegar a casa. Ambos desceram, Juca foi tomar um banho, enquanto o amigo punha Melada no curral. O rancho continuava sem qualquer mudança, embora precisasse de uma limpeza. As vasilhas estavam sujas e o chão coberto por folhas secas.

         No jantar, conversaram amenidades. Juca procurou entrar aos poucos nos assuntos que se referiam à Margarida e à carvoeira. Não queria melindrar o amigo. Precisaria dele na empreitada, assim como o queria ao seu lado, como nos tempos em que estavam ambos naquela casa.

         Não foi difícil convencer Marciel a seguir para as terras do coronel. Mas este pedira ainda uma semana, para que pudesse cuidar das coisas de casa, tinha algumas plantas para cuidar, assuntos a serem resolvidos; coisas mínimas ainda por fazer.

         Juca aceitara a condição imposta pelo amigo. Embora soubesse que nada havia a ser resolvido naquele lugar, compreendia e respeitava os pensamentos de Marciel. Tudo aquilo havia de ser novo para ele. Mudaria de lugar, sairia da sua rotina para viver em um lugar distante, desconhecido, com outras pessoas e outras situações. Agora não eram mais apenas os dois, Margarida estaria entre eles, talvez como um complemento, quiçá como a separação dos amigos.

         Depois de tudo resolvido, poucos assuntos foram falados. Juca relembrou todo o caminho que traçou até chegar à casa de Margarida, das impressões que tivera ao adentrar a casa do coronel e dos pensamentos que tinha para quando ganhassem o dinheiro do carvão que produziriam. Certamente, teriam serviço para mais de ano. Ficariam ricos com todas aquelas árvores derrubadas.

         Marciel pouco falava. Escutava as palavras do amigo e assentia-as com a cabeça. Depois, reclamou que estava cansado com todo o trabalho que fizera durante o dia e foi dormir.

         Juca deitou na rede e ficou se lembrando de Margarida. O que estaria ela fazendo àquela hora? Já era tarde, talvez já estivesse dormindo, sonhando com o seu corpo junto ao dela, penetrando-a, esquentando a sua pele, enquanto beijava a sua testa.

         De repente, virou-se para o lado e viu que Marciel já dormia. Tinha os olhos fechados e a respiração tranquila. Ele estava mesmo cansado. Sem o amigo para cuidar da casa, tinha que cuidar de todos os afazeres. Tinha sido mesmo um ingrato: depois de tudo o que Marciel lhe tinha feito, deixou-o sozinho naquela casa e fugira.

         O homem dormia tranquilo, enquanto Juca o observava. Tinha vontade de se levantar da rede, deitar junto dele e abraçá-lo, como abraçava Margarida. Subitamente, envergonhou-se desse pensamento; benzeu-se e pôs-se a rezar silenciosamente, até que o sono viera e ele dormiu, sonhando com Margarida e Marciel.

         Durante toda a semana, padecera daquelas tentações, enquanto o amigo ajeitava as coisas para que pudessem partir. Até que, numa madrugada fria, saíram ambos a cavalo. Marciel levava uma bolsa com suas poucas roupas, uma capanga com os apetrechos para o cigarro e a vaquinha melada sendo puxada por uma corda. Juca seguia ao seu lado, feliz por levar consigo o seu amigo, mas, sem saber se aquilo era o melhor a se fazer.  

A SAGA DE JUCA PESSOA - CAPÍTULOS 14 E 15


A SAGA DE JUCA PESSOA


CAPÍTULO 14


A casa do coronel Gregório era enorme. Do alto do morro, antes de se chegar ao córrego já se podia avistá-la. Os currais encobriam uma parte, com os carneiros fazendo algazarra. Uma pequena barragem represava a água que deveria descer pelo córrego, que havia se transformado em estrada. O que corria era um filete de água que mal batia nos calcanhares de quem a pé atravessasse.

Juca atravessara a cancela com Margarida na garupa do cavalo. Desceram até o córrego, onde apearam para melhor admirar a paisagem. Ele seguira o percurso do córrego por alguns metros, cuidando-se para não escorregar nas Lages, e a avistara um poço com bastante água, onde daria para, vez ou outra, tirar um mergulho, quando chegasse o tempo do calor.

A esposa já tinha ido para a cozinha, enquanto ele se enchia de coragem para conversar com o coronel. Nunca tinha visto aquele homem e o que sabia sobre ele vinha da boca de Margarida. Fazia alguns anos que ela trabalhava naquela fazenda e, por isso, dizia que “Seu” Gregório era um homem justo. Severo, mas, justo. E isto lhe bastava.

Ao adentrar a sala, o homem já o esperava. Era baixinho dos olhos arregalados; o nariz era afilado e cheio de pintinhas negras, pequeninos cravos envelhecidos na pele do velho. Usava camisa “Volta ao Mundo” e calça social de um tom amarronzado; não era gordo, mas, a sua baixa estatura deixava-o com um aspecto avantajado. As botas brilhavam e o salto marcava o ritmo dos seus passos, enquanto andava de um lado a outro da sala, sobre o encerado piso de madeira.

A sala era enorme, talvez todo o tamanho da casa de Margarida. Contava com uma estante enorme, toda trabalhada no formão e toda lustrada com óleo de peroba. O sofá era todo de couro, com as pernas minúsculas cuidadosamente torneadas e uma mesinha de centro, onde ficava o cinzeiro e os charutos que o velho fumava a todo instante, sem grandes intervalos.

Apesar de todo o luxo, apenas as armas chamaram a atenção de Juca. O coronel ostentava, a um canto da sala, numa estufa de vidro, alguns revólveres, espingardas, espadas e facões. As observações de Juca foram rápidas, mas, demorou-se um pouco nas armas, alimentando o ego do coronel.

- Eu fiz carreira no exército, meu jovem. Lutei em várias frentes e, como prêmio, ganhei algumas honrarias, a patente de coronel e uma pequena fortuna que tenho investida aqui e em apartamentos na Capital. Lá deixei mulher e filhos e tenho ficado por aqui por esses tempos, pois, como você já deve saber “O olho do dono é que engorda o gado”... No meu caso, os carneiros.

E o homem ria frouxo, como se tivesse dito a mais engraçada de todas as piadas. Juca continuava sério, ainda junto à porta, admirando as armas do coronel.

- Vejo que você gostou das minhas armas. As espadas e os revólveres são da época do exército, assim como algumas dessas espingardas. Os facões comprei na Capital, quando já pensava em vir de vez para estas bandas. Aqui é terra de ninguém, vive que tem juízo, coragem e algumas armas em punho.

Margarida preparava o café na cozinha e um cheiro bom adentrava a sala. Cheiro de café coado, broa de milho e queijo fresco. Juca estava com fome. Como tinham levantado de madrugada, haviam comido há algum tempo e a barriga já começava a roncar.

- Sente-se, meu filho. Não precisa ficar acanhado. Soube que você é o novo homem de Margarida. Ela trabalha pra mim há anos, desde que seus pais morreram. Pobres desgraçados. Era gente honesta, trabalhadores, mas o velho bebia muito e numa noite qualquer, enquanto a mulher e a menina dormiam, ele arranjou uma desavença na cidade. Dizem que brigou, bateu, apanhou e pensou ter ficado por isso mesmo. Depois, uns dois dias passados, enquanto dormiam, invadiram a sua casa. Ninguém sabe quem foi. Mataram os velhos e deixaram a menina fugir.

- Eu ainda quis trazê-la para morar comigo, mas, Margarida insistia que lá era o seu lugar; que tinha que cuidar da casa e esperar pela volta dos pais.

Juca escutava com atenção as palavras do velho, enquanto observava a estufa com as armas.

- Ela cresceu. Ficou uma moça bonita e trabalhadeira. De tudo que preciso, ela faz aqui em casa. Se tivesse vindo para cá, talvez hoje eu fosse o seu homem...

E a risada do coronel vinha mais forte, como se tentasse provocar o seu interlocutor. Juca, no entanto, mesmo com raiva daquele velho safado, controlava-se e esboçava um falso sorriso, tentando mudar o rumo daquela conversa. Mas, antes que começasse a falar, Margarida chegara com o café, que o coronel Gregório já degustava prazeroso.


CAPÍTULO 15


De café tomado, saíram ambos a campear. Gregório já sabia do assunto a ser tratado, mas, antes que o forasteiro tocasse no assunto, queria testá-lo, conhecê-lo um pouco mais, saber se poderia confiar.

Andaram por toda a manhã. O coronel ia mostrando cada cantinho da fazenda, desfiando todo o rosário de como conseguira tudo aquilo, afirmando que até mesmo a casa em que Margarida morava era sua propriedade, pois, com a morte dos pais da menina, fora ele, ainda que de forma indireta, quem tomara conta dela, guiando o seu futuro e orientando os seus passos.

Juca, a cada instante, enojava-se mais daquele homem, mas cria que seria ele a ponte para o futuro que ele e Margarida tanto desejavam. Por isso, aturava-o e, por muitas vezes, fingia concordar com as suas palavras, enquanto iam a trotes curtos observando cada pé de pau que haveria de ser cortado: Cedros, Jacarandás, Tinguis, Sucupiras, Jatobás... De acordo com o coronel tudo aquilo deveria ir ao chão, servindo para o carvão ou não. O importante era que se limpasse toda aquela área, até que se chegasse ao córrego lá embaixo. Ali deveria se plantar capim; encheria tudo de gado, venderia o leite, a carne e os bezerrinhos para as empresas e os criadores de Montes Claros e da Capital.

Juca não gostava daquela ideia. As chuvas já estavam escassas e a poeira já tomava conta de todo aquele lugar. Mesmo em frente à casa de Margarida, quando passava algum cavaleiro mais apressado ou algum rebanho de gado, a poeira tomava conta do ambiente, tornando-se quase impossível a respiração. Mas, precisava do dinheiro e tinha que aceitar aquilo.

 Desertificaria o lugar, para frutificar a sua vida. Haveria de voltar à casa de Marciel, chamá-lo para o trabalho. Trariam a Melada e teriam o leite para as noites de frio. Faria o rancho na parte de cima da fazenda e de lá desceriam até a beira do córrego. Daria para tirar um bom dinheiro e ainda teria junto de si a esposa e o amigo.

Juca e o coronel voltaram já na hora do almoço. O velho exigiu que ficasse. Fazia tempos que não comia com gente de fora, sempre era apenas ele naquela mesa. Margarida comia sozinha na cozinha. Trazia a comida de casa, já fria, e nunca aceitava sentar-se à mesa.

O homem pensou recusar, mas, o melhor era acatar as ordens do velho, afinal, dele dependia o seu futuro. Margarida também se sentou à mesa, ao lado do marido e, enquanto se desvencilhava das pernas do velho, que tentava roçar as suas por debaixo da mesa, escutava a conversa que ambos travavam.

Eles faziam planos para toda a área a ser desmatada. Os carvoeiros teriam uma bateria com sete fornos, um carroção com dois bois carreiros para o transporte da lenha, machados e uma pequena feira que o velho faria para que passassem o mês. Margarida haveria de continuar cuidando dos afazeres da sede, mas, teria a liberdade para preparar o almoço para eles. Na parte da tarde, depois do serviço pronto, se quisesse, podia subir para ajudá-los.

A mulher sentia-se feliz com todos aqueles planos e, embora não gostasse das atitudes do coronel, tinha a certeza de que ele cumpriria com o combinado. Ela e Juca haveriam de ser felizes.