sexta-feira, 6 de julho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULOS FINAIS


Capítulo 19


Quando Juca voltou para casa, Margarida estava dando banho na menina. Ele escorou no fogão de lenha e ficou olhando aquela cena. A esposa não tinha notado a sua chegada e conversava baixinho com a criança.

A menina parecia com Marciel. Os olhos eram de Margarida, mas todo o rosto era do amigo. Juca tinha certeza de que ela não era sua filha. Tinha deixado os dois sozinhos para ir à casa do coronel, acreditando na lealdade e na amizade, mas, tinha sido traído por aqueles a quem sempre tinha amado.

Teve certeza da traição quando a mulher tirou a criança da bacia para secar e vestir a roupa. A menina trazia nas costas a mesma mancha que, há algum tempo, Juca tinha visto nas costas de Marciel. O sangue lhe subiu à cabeça, segurou firme num pau que queimava no fogão fervendo o feijão para o almoço, mas se controlou. A menina não tinha culpa da traição. Os culpados eram Margarida e Marciel. E o culpado maior era ele, que deixara os dois sozinhos naquele meio de nada, a mercê dos desejos, das fantasias, da perdição.

Não podia aceitar aquilo. Era um homem e como tal tinha que resolver a situação. Pegou o bule e pôs um copo cheio de café e, enquanto tomava lentamente, ordenou à esposa:

- Margarida, dá o de mamar à menina, que ela deve estar com fome. Depois, vai lá fora, que preciso conversar com você.

Terminado o café, deixou o copo sobre o fogão, pegou o facão que estava enfiado na fresta de uma das palhas que cobriam a casa e foi sentar-se no jirau, bem ao lado do rancho.

Margarida chorava enquanto amamentava a menina. Do lado de fora, Juca ouviu o seu choro e rezava. Pedia perdão à mãe pelo que haveria de fazer, pedia a Deus que perdoasse os seus pecados e encomendava a alma da sua esposa. Aquela situação não teria outro modo de se resolver. Havia perdido a sua honra. E o pior, a traição viera daqueles a quem ele sempre quisera bem.

- Pode confessar, Margarida, a menina não é minha filha. Não é mesmo?

A mulher não titubeou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e suas mãos tremiam, mas, com a voz firme, confirmou o pensamento do marido:

- O filho é de Marciel. Eu sempre quis um filho seu; sempre te amei e te respeitei; mas você me trocou pelas cachaças do coronel. Esqueceu que tinha uma esposa, uma casa, um futuro para construir...

O coração de Juca parecia querer saltar pela boca. O suor descia da sua testa e a raiva subia-lhe aos olhos enquanto Margarida se confessava.

- Marciel era o marido que eu tinha em casa, Juca. Era ele quem trabalhava na carvoeira, quem buscava a água para preparar o de comer, era ele quem apagava o meu fogo enquanto você estava na casa do “Seu” Gregório, sonhando riquezas, arrotando junto as arrogâncias do velho...

Juca não esperou que a mulher terminasse. Feito um touro bravio correu em sua direção e, com toda a sua força, enfiou-lhe o facão no bucho.

Margarida morreu nos seus braços, sem nada dizer. Dos seus olhos desceram algumas lágrimas, que molharam o peito de Juca. Ele não estava feliz com a morte da esposa. Sentia-se vazio, como se aquilo fosse apenas uma tarefa a ser cumprida. Deu-lhe um último beijo e passou ao enterro do corpo. Depois, pegou a menina e montando em seu cavalo saiu andando a esmo. Haveria de deixá-la na casa de alguém que a cuidasse. A pobre criança não tinha culpa de nada. Um dia voltaria e cuidaria dela, como se fosse sua filha. E aquilo era uma promessa.

Capítulo final

Com a espingarda dependurada e o facão do lado, Juca saíra em busca de Marciel. Pegou todo o dinheiro que conseguiram na carvoeira e, antes de partir, botou fogo no rancho. Não haveria de ficar qualquer lembrança dos três naquele lugar. Margarida, Juca ou Marciel, todos estavam mortos naquele rancho. Não havia mais o amor de antes, e a amizade de outrora havia se transformado em ódio, num incontrolável desejo de vingança.

O cavalo agora ia rápido, como se desejasse chegar logo à casa de Marciel. Juca não tinha mais lembranças, pensava apenas na vingança e matutava como haveria de matar o traidor. De repente, vieram-lhe as palavras do coronel Gregório, contando como capara o sujeito. Podia capar o amigo, para que ele soubesse o que é a dor de uma traição.

Já era a hora do almoço, mas Juca não tinha fome. Também não sentia sede. Não sede de água. O que sentia era vontade matar. Já não se lembrava do sentimento que nutria por Marciel, o sentimento que nunca conseguira divisar ser era uma amizade sincera ou se um amor verdadeiro. Agora tinha certeza do que sentia. O ódio fazia os seus olhos encherem de lágrimas e, antes que elas caíssem, limpava-as com a manga da camisa.

Enquanto o cavalo galopava, instintivamente, como se já soubesse o caminho para onde seguir, Juca via a imagem da menina à sua frente. Era a filha do seu melhor amigo, uma cópia perfeita dos olhos de sua esposa e a beleza insinuante de Marciel. A menininha não tinha culpa. Haveria de vê-la, voltaria a casa daquela mulher, veria a menina crescer, daria a ela tudo o que lhe fosse de direito e, quando já fosse mocinha, haveria de pegá-la para junto de si. Seria a sua filha e, já havia dito à velha, haveria de se chamar Catarina.

Catarina. Sempre gostara desse nome. Não tinha uma causa, apenas gostava, assim como gostava daquela menina, afinal, ela era o fruto daqueles de quem mais gostava.

De repente, a imagem da criança desapareça e o ódio voltara aos olhos de Juca. O cavalo estancara debaixo da Gameleira. A casa de Marciel estava próxima. Não queria fazer barulho, ele já o devia estar esperando. Deixaria o cavalo debaixo daquela árvore e seguiria a pé. Logo, tudo estaria resolvido. A sua honra estaria vingada e poderia seguir a sua vida, como sempre sonhara.

A poeira havia sujado as folhas das árvores. A seca tomava conta de tudo. Melada estava no curral, comendo capim, enquanto Marciel tomava café assentado à beira da porta.

Juca havia se escondido detrás de um pequizeiro, de onde observava o amigo. Marciel tinha o semblante cansado e entristecido. Estava sem camisa e suado, mas aquilo já não causava qualquer sensação em Juca. Ele sentia o ódio crescendo no seu peito e tinha vontade de matá-lo. Seria apenas um tiro e o homem estaria morto. Mas apenas isso não bastava, queria vê-lo morrer de perto, sentir a sua dor, até que o visse acabar-se à sua frente.

Lentamente, Juca saiu detrás do pequizeiro e caminhando com a espingarda em punho e o dedo no gatilho, gritava para o desgraçado:
- Maldito! Margarida já não existe, e agora é a sua vez!

Marciel não se moveu. Como se não se intimidasse com as ameaças do amigo, continuou a tomar o seu café, enquanto olhava fixamente para o cano da espingarda.

- Sempre o tive como amigo. Agradeci como pude por tudo o que me fez quando eu estava perdido nesses matos, mas você me traiu. Você e aquela vagabunda!...

Marciel levantou-se e, como se não tivesse qualquer temor, foi caminhando em direção ao amigo. Pôs o café sobre a cerca, alisou o pelo de Melada, pegou um capim que estava por ali e começou a mastigá-lo.

- Nós não traímos você. Eu sempre fui o seu amigo. Mais que isso eu sentia. Margarida também te amava e era capaz de dar a vida sua causa. Você se traiu, quando deixou tudo para seguir o coronel, com seus sonhos de riqueza, suas vontades de bacana. Nem eu nem Margarida queríamos dinheiro ou poder, Juca. E isso era o que você nunca foi capaz de perceber...

O ódio ferveu nos olhos daquele homem e ele deu o primeiro estampido. O tiro pegou no peito do traidor, que caíra de joelhos. Juca continuou a caminhar, até que o cano da espingarda encostasse à cabeça de Marciel, que o olhava com cara de dor e os olhos lacrimejantes.

 - Esta espingarda fui eu que roubei na casa do coronel e é com ela que você há de pagar os seus pecados. Não se preocupe, cuidarei da sua filha, como se fosse minha. Darei a ela tudo aquilo que daria a um filho meu, como haveria de fazer um amigo de verdade.

Juca tirou do bolso da calça um maço de dinheiro e jogou sobre Marciel. Sua mão tremia e ele podia sentir o cano da espingarda tocando a cabeça do desgraçado. O cabelo, antes liso, do amigo, agora estava desgrenhado, todo bagunçado, e o seu peito estava sujo de sangue. Um pouco do dinheiro ficou grudado no peito de Marciel, todo ensanguentado, moldando-se junto aos músculos e os seus fios de cabelo.

- Este dinheiro é a parte que te cabe da carvoeira. Eu tinha planos. Sonhava com uma família. É verdade, eu queria dinheiro e poder, mas, também queria tê-lo conosco. Você haveria de viver na cidade, cuidando da venda, construindo o seu caminho ao meu lado. Agora, não me resta qualquer escolha. Tenho de matá-lo, limpar a minha honra, consertar a minha vida.

- Você não tem mais honra, Juca. E não fomos nós quem a tiramos. Você mesmo a perdeu, quando se trocou pelo desejo do poder e do dinheiro.

A voz de Marciel saía fraca e ele se esforçava para manter-se ereto. Juca enfurecia-se com a força daquele homem, ao mesmo tempo em que admirava tamanha resiliência. Sentia ódio, mas seu coração fraquejava. Tinha vontade de abaixar a arma e dar a mão ao amigo, tratá-lo o ferimento e perdoá-lo. Não. Não poderia fazer isso. Era um homem e, como tal, tinha que terminar o que havia começado.

O tiro saiu firme e um esguicho de sangue sujou a roupa de Juca. Marciel caiu para trás com a força da bala, que lhe perfurara o crânio. Uma lágrima caiu dos olhos de Juca, que abaixou a espingarda e ajoelhou-se ao lado do morto.

Não seria justo deixá-lo de comida aos urubus. Numa cova rasa, Juca enterrara Marciel e, junto dele, também a espingarda; depois, respeitosamente, fez uma oração pelo amigo.

Sem olhar para trás, Juca foi caminhando pela estrada até a gameleira. Montou no seu cavalo e partiu, com a honra limpa e um enorme vazio no peito.



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