quinta-feira, 15 de junho de 2017

ESTAÇÃO PARAÍSO

Fizesse sol ou chovesse, ele sempre estava lá. Chegava como quem nada quisesse e assentava-se sempre do mesmo lado. As pessoas que esperavam os ônibus já o conheciam, nem lhe davam mais importância. Não pedia esmolas, nem dizia qualquer coisa, apenas assentava-se ao seu canto e punha-se a observar. Às vezes descansava o queixo sobre as mãos, com as pernas dobradas sobre o banco, mas, na maioria das vezes ficava paralisado, feito uma estátua humana, mirando ao longe.

Não possuía qualquer recipiente onde os transeuntes pudessem depositar algumas moedas, também não tinha as roupas surradas ou andava sujo. Contrariamente, era uma pessoa aparentemente distinta: sempre com sua calça social bem passada, com a camisa alinhada e os cabelos bem penteados. A barba estava sempre impecável e tinha os dentes alvíssimos, realçando uma beleza achocolatada.

Durante toda a manhã, invariavelmente, ele chegava. Assentava-se e ficava, até que desse à hora do almoço. Nenhum passante lhe dirigia a palavra. Não fazia questão de que lhe falassem, apenas queria ficar ali, por umas quatro ou cinco horas, olhando todo aquele movimento, quase imóvel, quase invisível.

Ninguém sabia onde morava, se tinha esposa, filhos ou se morava com os pais. Pelas roupas e pelos modos, ninguém acreditaria se morasse debaixo de algum viaduto ou numa favela qualquer. Certamente, era um homem de bem, que, talvez, tivera algumas posses e, quem sabe, perdera no carteado ou com as putas da Guaicurus. Ninguém sabia qualquer coisa daquele sujeito, apenas que podia ser encontrado todos os dias naquele mesmo ponto de ônibus, sem nunca pegá-los, sem nunca fazer menção de subir ou descer em qualquer outra parada.


E foi num dia ensolarado, numa segunda-feira qualquer, enquanto as pessoas andavam para um lado e para outro, como se fossem formiguinhas apressadas em busca de suprimentos para o inverno, que ele morreu. Sem dizer qualquer palavra, levantou-se, ainda na metade do seu expediente, deu sinal ao primeiro ônibus que passava, entrou, assentou-se no último banco à direita, fechou os olhos e descansou. O ônibus ia para a estação Paraíso.

terça-feira, 6 de junho de 2017

A NOSSA FALTA DE LEITURA DE CADA DIA

Os jovens de hoje em dia, salvo raras exceções, não sabem ler. Ainda que vivam todo o tempo com os olhos vidrados nos aparelhos celulares, perambulando pelas redes sociais, onde se veem obrigados a alguma leitura, fazem-na superficialmente, sem grandes qualidades e prazeres. E esta falta, para a felicidade dos nossos políticos, tem nos custado o Conhecimento, a Cultura, a nossa Dignidade. Mas isso é assunto para alguma outra Crônica.

Tenho perambulado muitas vezes pelas redes sociais, mas, guardo ainda alguns momentos para uma boa leitura, degustando bons livros, viajando por autores dantes não navegados ou revisitando velhos amigos literários. E esse hábito tem me trazido algumas sensações estranhas, as quais não me vejo capaz de explicar, mas que nunca sinto ao assistir a um filme ou ao ler algum post no Facebook ou no Twitter.

Minhas primeiras leituras vieram dos livretos de Cordel, que o meu pai ainda hoje traz guardados dentro de uma velha valise; ambos, livretos e valise, são relíquias da sua juventude. Recordo-me de quando, assentado debaixo do sete-copas, imaginava, enquanto lia compenetrado, as aventuras de “Coco Verde e Melancia”, “Rufino, o Rei do Barulho”, “Cancão de Fogo”, entre tantas outras estórias escritas em verso e rima. E ainda hoje, também eu tenho os meus livretos, trazidos de Bom Jesus da Lapa, lendo-os de quando em vez.

Naquela época, também lia os livros de Faroeste, escolhidos a dedo dentro de um enorme saco plástico que Mozar (e esse era mesmo o nome do sujeito) deixava debaixo do balcão do açougue, para passar o tempo nos momentos de ócio. Ali mesmo, debaixo do balcão, eu ficava, por horas a fio, assistindo, pelas folhas amarelecidas dos velhos livros, aos filmes de cowboys e bandidos.

Nas minhas aulas, ainda tento instigar nos pupilos o gosto pela boa leitura, incitando-os a um Jorge Amado, Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, entre tantos outros grandes escritores. É verdade que alguns se enveredaram pelo mundo da Literatura, encontrando-se nas agradabilíssimas leituras, sendo que outros ainda, assim como este escriba, têm se aventurado no mundo da escrita; mas, confesso, a leitura verdadeira tem se transformado num mundo cada vez mais restrito, contentando muitos em apenas dar uma olhada naquilo que se escreve.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

EM OBRAS

Um dia serei apenas rua
Condomínio
Prédio
    Ou seção.
Hoje sou poema
Um operário em construção.

domingo, 4 de junho de 2017

NEGUINHA DE BIREU

Neguinha de Bireu morava com sua cachorra Piranha. Desde a morte do marido, o animal era a sua única companhia. Nunca mais sentira o corpo de um homem junto ao seu. Não é que não sentia falta, mas, nessas horas, descia ao Sanharó e tomava um banho frio, enquanto se lembrava do falecido e todo o seu calor.

Vieram de Mato Verde, corridos da seca. Bireu trabalhava suas terrinhas lá no Norte, mas, sem água e sem recursos, não pudera se sustentar. Vieram descendo aos poucos, até chegarem àquelas terras. Chegaram, levantaram o rancho e, como ninguém reclamasse o lugar, foram ficando. Ele trabalhava nas fazendas vizinhas, roçando o mato, carpindo, cortando cana, tangendo o gado; ela ficava em casa, sonhando as noites com o marido.

Neguinha, agora velha e decadente, fora uma moça bonita. Negra, de cabelos encaracolados, tinha os lábios carnudos e os olhos tão grandes e gostosos, feito duas jabuticabas maduras. As ancas eram enormes e a bunda durinha; os seios não eram volumosos, mas, por muito tempo, permaneceram macios e durinhos.

Bireu morrera cedo, deixando Neguinha solitária. Outros homens ainda tentaram conquistá-la, mas, sem obterem êxito, foram deixando-a em seu canto. Piranha aparecera do nada. Viera do meio do mato e aquietara-se em sua casa; como ninguém reclamasse a cachorra, deixou que ela ficasse. Assim, ficaram as duas, Neguinha e Piranha, solitárias naquele rancho, ambas se completando.

Com a ausência do marido, a mulher ia se acabrunhando. Pouco ia ao Pitinha. Ordinariamente, descia, a pé, para fazer a feira, a cada dois meses. Uma feirinha rala, que pagava com a aposentadoria, que a muito custo conseguira pelo INAMPS. Não gostava do tumulto do povoado, ademais, com a falta do marido, não lhe convinha ficar andando sozinha por aí. Preferia ficar em casa, plantando sua rocinha, conversando com Piranha.

Àquela manhã, Neguinha não amanhecera disposta. Fazia tempo que uma dorzinha no peito a aporrinhava. Levantara lentamente, ainda querendo permanecer na cama por um tempo. Acendera o fogo e pusera a água para ferver. Descera até o rio para pegar mais água para preparar o almoço. A dor parecia mais forte, mas dava para suportar. Preparou o angu de Piranha. A cachorra chegou tímida e encostou-se nas suas pernas.

Enquanto o angu esfriava, passou o café. Pôs o angu na vasilha, pegou o seu café e sentou-se junto da cachorra. Não tinha fome, apenas o café já lhe era o suficiente. Alisou o pelo de Piranha por longo tempo e notou que ela precisava de um banho. Os olhos dela lhe pareciam tristes, como numa última despedida; por isso, quase que instintivamente, abaixou e deu-lhe um beijo no focinho.

Mal tomara o primeiro gole do café, quando ouvira a voz do marido:

-Neguinha, meu amor, vamos embora, eu vim te buscar.

Enquanto Neguinha se afastava, Piranha a olhava com os olhos cheios d’água. Não latira nem reclamara; ela sabia que era a hora e que um dia ainda iriam se encontrar.


E quando já estava quase sumindo, a cachorra ainda vira o momento em que Neguinha lhe dera um último adeus. Ela estava linda, como há muito tempo, quando chegara com Bireu. 

quinta-feira, 1 de junho de 2017

O MENINO

Um menino catarrento brinca na terra. Apesar de já grandinho, ele está pelado. A barriga grande é desproporcional ao resto do corpo, magricela, todo acinzentado. Vez ou outra, limpa o catarro com o braço, deixando marcas amarelecidas em meio à sua cor desbotada. Timidamente se levanta, chega de cabeça baixa e diz:

- Bença.

A sua mão está toda suja de lama. Dou-lhe a bênção e faço menção de seguir. Alguém grita:

- Ei, vem cá!

Abaixo a cabeça para não acertar a minúscula porta e assento-me num velho banco de madeira. A casa é bastante simples. O fogão à lenha ainda mantém algumas brasas acesas, esquentando uma caçarola com feijão e um bule desbotado. As outras duas panelas a um canto estão cobertas com tampas improvisadas, deixando à mostra o arroz branco quebrado e um macarrão seco e amarelo.

O homem, dicrocado sobre os calcanhares, fala sobre o sol que tem queimado toda a lavoura, sobre o filho de seu Laudreando, que, dizem, engravidara a filha de Quitéria e, com medo dos irmãos da moça, tinha fugido para São Paulo numa noite dessas. A verdade é que faz rodeios, enquanto observo o menino que brinca na lama, pelado, com o rosto coberto de catarro.

Faz tempos que moram ele e o menino. Havia se casado ainda muito jovem, com uma mocinha que viera da Bahia trabalhar numa carvoeira com os pais. Viveram felizes por algum tempo, com o menino e as agruras daquele lugar. Mas, numa manhã qualquer, antes que ele se levantasse para ir para a roça, dissera que ia buscar água na cacimba e fugira com Cassiano, filho de seu Ludovico.

Não se casara novamente. Vive a trabalhar pelas redondezas, sempre com o filho a tiracolo. Agora, teria de ir trabalhar numa fazenda longe, mexer com gado e lavoura grande. Pagariam bem; não teria como não pegar.

- Preciso de um favor seu...

Noto a sua voz embargada, como se algo o quisesse impedir de falar. Respira profundamente e, como se saltasse num precipício, diz:

- Fica com o meu filho. Não posso levá-lo. Troco num radinho de pilha.