Sentado à beira do córrego,
Juca lembrava-se de tudo que havia passado até ali. Lembrava-se da mãe chorando
encostada junto à porta quando da sua partida e pensava no quanto ela devia ter
sofrido enquanto todos os filhos iam embora.
Sabia da necessidade de
partir. Não podia ficar, não era justo que permanecesse na roça, sem ter o que
comer, mal encontrando o de beber. Queria ficar, ajudar a velha. Trabalharia
nalguma fazenda, criaria bode ou plantaria palma, mas, era preciso partir.
Tinha sido assim com os seus irmãos, também era preciso que fosse assim também
com ele.
Juca não chorava. Sentia um
aperto no peito e os olhos enchiam de lágrimas, mas não chorava. Sofria seco,
assim como sofrem todos os sertanejos. Nos momentos em que tinha vontade de
chorar, fazia uma oração. A mãe foi quem tinha lhe ensinado rezar. Lembrava-se
das noites calorentas da Bahia, quando ambos rezavam sob a luz da lamparina, a
velha rezando a primeira parte do terço, ele seguindo, abrindo a boca,
cochilando, pensando besteiras.
Quando era pequeno, pensara
algumas vezes em ser padre, usar batina, rezar missa e tomar o vinho que os
padres bebem. Não queria ser padre por crença, embora sempre cresse e, por
isso, benzia-se e rezava a todo instante, batia três vezes na madeira quando
pensava algum mau pensamento e evitava passar debaixo de escadas; acreditava
muito e acreditava em tudo: céu, inferno, purgatório.
Juca sempre acreditara que as pessoas boas
morriam e iam para o céu e que as pessoas, como Maria de Saturnino, que morrera
como um passarinho, enquanto dormia, quando ele ainda era menino pequeno, iam
para o céu, assim como as pessoas más, como Chico de Sá Benita, homem rude, que
tinha matado Teodoro por causa de um naco de fumo, iam para o inferno, onde
queimavam em brasa, enquanto eram espetados pelo diabo. Juca acreditava em tudo
isso, mas cria que também havia o Purgatório, onde Maria de Saturnino e Chico
de Sá Benita, assim como os outros mortos, haveriam de passar, para que
pudessem ter uma última oportunidade de ir para o céu.
Juca era, de verdade, um
crente; mas não era por isso que queria ser padre. Queria ser padre para beber
o vinho que os padres bebiam, para morar nas casas em que os padres moravam e,
mais que isso, para dar uma vida melhor para a sua mãe. Mas tudo isso foi de
quando ele ainda era um menino e não pensava em ver o mundo, fugir da seca,
viver a vida; quando ainda não havia conhecido Marciel e Margarida.
Depois, já rapazinho,
escondia-se detrás das moitas de macambira, perto do riacho onde as mulheres
tomavam banho no cair da tarde, só para vê-las nuas, ensaboando-se com sabão de
coco, enquanto cantavam velhas cantigas e conversavam sobre as besteiras que
haviam feito com os maridos nas noites anteriores.
As lembranças vinham
embaralhadas na cabeça de Juca. Lembrava-se de coisas de há muito, mas não se
recordava do que havia acontecido há pouco. Depois, pensava na espingarda que
havia roubado na casa do coronel e estava escondida debaixo do seu colchão, no
rancho onde dormiam ele, Marciel e Margarida.
O velho já tinha dado conta
do sumiço da arma. De início, desconfiara de Marciel, mas, depois, parecia ter
se esquecido de tudo. Jogaram a culpa nuns forasteiros que pernoitaram na
fazenda, indo para algumas léguas adiante. O coronel gostava de Juca e numa das
tantas noites em que os dois ficavam bebendo na fazenda, dissera que, se Juca
se comportasse, haveria de ficar com toda a fazenda para ele, quando da morte
do desgraçado.
Não acreditava naquela
promessa feita de frente a um copo de cachaça, mas sonhava com o dia em que
teria uma terra para chamar de sua. Fazia já quase um ano que estavam ali.
Margarida, de barriga, já não podia ajudar com os serviços da carvoeira. Agora,
eram apenas Juca e Marciel no corte da lenha, na queima do carvão, nos
trabalhos de maior monta. A mulher ficava no rancho, preparando o de comer,
lavando as roupas, esperando pelo marido.
Sentado na pedra, olhando
Marciel tomar banho no poço que o córrego formava ali embaixo, lembrava-se dos
primeiros dias, quando a esposa e o amigo mal se falavam. Ficava cada um ao seu
canto, ele cuidando de Melada, tirando leite, assoviando baixinho umas músicas
entristecidas; ela de bico estufado, arrumando a casa, em silêncio, pensando
coisas de muito longe.
Era a sua mãe quem dizia que
o tempo é senhor de tudo e que tudo haveria de curar. E ela dizia isso sempre
que alguma coisa acontecia e não se podia consertar. Pois assim também foi com
os dois. De fato, não ficaram amigos; mas, cada um aceitou a sua posição:
Marciel era o melhor amigo de Juca, o seu sócio naquela empreitada; Margarida
era o amor da sua vida, a mulher que haveria de lhe dar filhos, amor, o porto
seguro onde deveria ancorar o seu barco.
Durante muito tempo
trabalharam os três na carvoeira. A mulher fazia o serviço na casa de “Seu”
Gregório e seguia para a bateria. À noite, ficavam no rancho, conversando,
jogando cartas, olhando as estrelas e relembrando coisas de outros tempos.
Aquilo era o que Juca mais prezava: estava rodeado daqueles que amava e nada
mais lhe faltava.
Com o tempo passando e a
confiança do coronel aumentando, Juca passara a ser o seu confidente. Muitas
vezes, faltava o serviço para andar pelo mato com o velho, enquanto este contava
coisas da capital e falava de quando estava no exército, dos homens que havia
matado, de como tinha capado um sujeito que havia feito mal a uma mocinha filha
de um primo do velho e que tinha fugido para uma gruta perto dali.
Margarida, enquanto o marido
acompanhava o coronel, continuava os trabalhos da carvoeira junto com Marciel.
Cortavam a lenha, carreavam, enchiam os fornos, tiravam o carvão e punham na
bateria. Ela sentia a sua falta, assim como Marciel sentia a ausência do amigo,
mas não reclamavam, continuavam a trabalhar, enquanto aproximavam-se um do
outro.
Um dia, enquanto tomavam
cachaça e comiam torresmo de tira-gosto, o velho perguntou a Juca se não sentia
ciúmes do amigo com a sua esposa, pois eles estavam sempre juntos, enquanto ele
ficava bebendo e andando ao invés de trabalhar.
- Marciel é meu amigo,
Coronel. Aquele é como um irmão pra mim. Até mais do que os irmãos que minha
mãe me deu e que faz tempo que nem mais eu vejo.
Gregório não quis adiantar a
conversa; apenas assentiu com a cabeça e, jogando um pouquinho para o santo,
tomou mais uma talagada de cachaça.
O amigo já saíra de dentro do córrego e
secava-se próximo de Juca. Uma sensação estranha tomou conta do homem, que
tentava desviar a atenção. Marciel havia emagrecido durante aquele ano. O
serviço tinha sido puxado, mas tudo aquilo estava valendo a pena. O dinheiro
que haviam ganhado até ali já dava para Juca comprar a casinha na cidade,
montar a sua venda e construir a vida que sonhara com Margarida. Mas, agora, já
não queria mais apenas aquilo, sonhava ser fazendeiro, talvez um coronel, como
era o “Seu” Gregório.
Antes que Marciel se
vestisse, ainda que tentasse desviar o olhar, Juca notou que o amigo tinha uma
pinta, uma mancha vistosa à altura da cintura, bem encima do rim esquerdo.
Nunca havia reparado no quanto ele era forte; mesmo magro, o amigo era forte e
vistoso.
Da porta do rancho,
Margarida chamava para o jantar. Marciel foi à frente, silencioso, pensativo,
enquanto Juca o seguia, segurando-se para não mostrar a felicidade que sentia.
Não demorava e o filho já nasceria. Certamente, seria um homenzinho, para
ajudá-lo na labuta do dia-a-dia. Não queria ser um dono de venda e já tinha
pensado em tudo aquilo: assim que o bebê nascesse, levaria Margarida para a
cidade, compraria casa e montaria o negócio para ela comandar.
Ainda haveria de ficar mais
um tempo naquele lugar, junto com Marciel; fariam fortuna e, assim que o velho
morresse, haveria de herdar a fazenda. O velho houvera prometido e, embora não
cresse em promessa de cachaça, restava-lhe a esperança, além disso, quem
haveria de vir para cobra as terras naquele fim de mundo.
Não deixaria o amigo à
míngua. Dono da fazenda, ele buscaria a esposa na cidade; viveriam ambos e o
filho nas terras do coronel Juca Pessoa e deixaria a casa e a venda para
Marciel. Assim, teria ainda o amigo por perto, com toda a sua lealdade,
enquanto viveriam todos felizes e cheios de dinheiro. Ele teria dinheiro e poder, assim como o
“Seu” Gregório.
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