quinta-feira, 5 de julho de 2018

JUCA PESSOA - CAPÍTULO 17


Sentado à beira do córrego, Juca lembrava-se de tudo que havia passado até ali. Lembrava-se da mãe chorando encostada junto à porta quando da sua partida e pensava no quanto ela devia ter sofrido enquanto todos os filhos iam embora.

Sabia da necessidade de partir. Não podia ficar, não era justo que permanecesse na roça, sem ter o que comer, mal encontrando o de beber. Queria ficar, ajudar a velha. Trabalharia nalguma fazenda, criaria bode ou plantaria palma, mas, era preciso partir. Tinha sido assim com os seus irmãos, também era preciso que fosse assim também com ele.

Juca não chorava. Sentia um aperto no peito e os olhos enchiam de lágrimas, mas não chorava. Sofria seco, assim como sofrem todos os sertanejos. Nos momentos em que tinha vontade de chorar, fazia uma oração. A mãe foi quem tinha lhe ensinado rezar. Lembrava-se das noites calorentas da Bahia, quando ambos rezavam sob a luz da lamparina, a velha rezando a primeira parte do terço, ele seguindo, abrindo a boca, cochilando, pensando besteiras.

Quando era pequeno, pensara algumas vezes em ser padre, usar batina, rezar missa e tomar o vinho que os padres bebem. Não queria ser padre por crença, embora sempre cresse e, por isso, benzia-se e rezava a todo instante, batia três vezes na madeira quando pensava algum mau pensamento e evitava passar debaixo de escadas; acreditava muito e acreditava em tudo: céu, inferno, purgatório.

 Juca sempre acreditara que as pessoas boas morriam e iam para o céu e que as pessoas, como Maria de Saturnino, que morrera como um passarinho, enquanto dormia, quando ele ainda era menino pequeno, iam para o céu, assim como as pessoas más, como Chico de Sá Benita, homem rude, que tinha matado Teodoro por causa de um naco de fumo, iam para o inferno, onde queimavam em brasa, enquanto eram espetados pelo diabo. Juca acreditava em tudo isso, mas cria que também havia o Purgatório, onde Maria de Saturnino e Chico de Sá Benita, assim como os outros mortos, haveriam de passar, para que pudessem ter uma última oportunidade de ir para o céu.

Juca era, de verdade, um crente; mas não era por isso que queria ser padre. Queria ser padre para beber o vinho que os padres bebiam, para morar nas casas em que os padres moravam e, mais que isso, para dar uma vida melhor para a sua mãe. Mas tudo isso foi de quando ele ainda era um menino e não pensava em ver o mundo, fugir da seca, viver a vida; quando ainda não havia conhecido Marciel e Margarida.

Depois, já rapazinho, escondia-se detrás das moitas de macambira, perto do riacho onde as mulheres tomavam banho no cair da tarde, só para vê-las nuas, ensaboando-se com sabão de coco, enquanto cantavam velhas cantigas e conversavam sobre as besteiras que haviam feito com os maridos nas noites anteriores.

As lembranças vinham embaralhadas na cabeça de Juca. Lembrava-se de coisas de há muito, mas não se recordava do que havia acontecido há pouco. Depois, pensava na espingarda que havia roubado na casa do coronel e estava escondida debaixo do seu colchão, no rancho onde dormiam ele, Marciel e Margarida.

O velho já tinha dado conta do sumiço da arma. De início, desconfiara de Marciel, mas, depois, parecia ter se esquecido de tudo. Jogaram a culpa nuns forasteiros que pernoitaram na fazenda, indo para algumas léguas adiante. O coronel gostava de Juca e numa das tantas noites em que os dois ficavam bebendo na fazenda, dissera que, se Juca se comportasse, haveria de ficar com toda a fazenda para ele, quando da morte do desgraçado.

Não acreditava naquela promessa feita de frente a um copo de cachaça, mas sonhava com o dia em que teria uma terra para chamar de sua. Fazia já quase um ano que estavam ali. Margarida, de barriga, já não podia ajudar com os serviços da carvoeira. Agora, eram apenas Juca e Marciel no corte da lenha, na queima do carvão, nos trabalhos de maior monta. A mulher ficava no rancho, preparando o de comer, lavando as roupas, esperando pelo marido.

Sentado na pedra, olhando Marciel tomar banho no poço que o córrego formava ali embaixo, lembrava-se dos primeiros dias, quando a esposa e o amigo mal se falavam. Ficava cada um ao seu canto, ele cuidando de Melada, tirando leite, assoviando baixinho umas músicas entristecidas; ela de bico estufado, arrumando a casa, em silêncio, pensando coisas de muito longe.

Era a sua mãe quem dizia que o tempo é senhor de tudo e que tudo haveria de curar. E ela dizia isso sempre que alguma coisa acontecia e não se podia consertar. Pois assim também foi com os dois. De fato, não ficaram amigos; mas, cada um aceitou a sua posição: Marciel era o melhor amigo de Juca, o seu sócio naquela empreitada; Margarida era o amor da sua vida, a mulher que haveria de lhe dar filhos, amor, o porto seguro onde deveria ancorar o seu barco.

Durante muito tempo trabalharam os três na carvoeira. A mulher fazia o serviço na casa de “Seu” Gregório e seguia para a bateria. À noite, ficavam no rancho, conversando, jogando cartas, olhando as estrelas e relembrando coisas de outros tempos. Aquilo era o que Juca mais prezava: estava rodeado daqueles que amava e nada mais lhe faltava.

Com o tempo passando e a confiança do coronel aumentando, Juca passara a ser o seu confidente. Muitas vezes, faltava o serviço para andar pelo mato com o velho, enquanto este contava coisas da capital e falava de quando estava no exército, dos homens que havia matado, de como tinha capado um sujeito que havia feito mal a uma mocinha filha de um primo do velho e que tinha fugido para uma gruta perto dali.

Margarida, enquanto o marido acompanhava o coronel, continuava os trabalhos da carvoeira junto com Marciel. Cortavam a lenha, carreavam, enchiam os fornos, tiravam o carvão e punham na bateria. Ela sentia a sua falta, assim como Marciel sentia a ausência do amigo, mas não reclamavam, continuavam a trabalhar, enquanto aproximavam-se um do outro.

Um dia, enquanto tomavam cachaça e comiam torresmo de tira-gosto, o velho perguntou a Juca se não sentia ciúmes do amigo com a sua esposa, pois eles estavam sempre juntos, enquanto ele ficava bebendo e andando ao invés de trabalhar.

- Marciel é meu amigo, Coronel. Aquele é como um irmão pra mim. Até mais do que os irmãos que minha mãe me deu e que faz tempo que nem mais eu vejo.

Gregório não quis adiantar a conversa; apenas assentiu com a cabeça e, jogando um pouquinho para o santo, tomou mais uma talagada de cachaça.

 O amigo já saíra de dentro do córrego e secava-se próximo de Juca. Uma sensação estranha tomou conta do homem, que tentava desviar a atenção. Marciel havia emagrecido durante aquele ano. O serviço tinha sido puxado, mas tudo aquilo estava valendo a pena. O dinheiro que haviam ganhado até ali já dava para Juca comprar a casinha na cidade, montar a sua venda e construir a vida que sonhara com Margarida. Mas, agora, já não queria mais apenas aquilo, sonhava ser fazendeiro, talvez um coronel, como era o “Seu” Gregório.

Antes que Marciel se vestisse, ainda que tentasse desviar o olhar, Juca notou que o amigo tinha uma pinta, uma mancha vistosa à altura da cintura, bem encima do rim esquerdo. Nunca havia reparado no quanto ele era forte; mesmo magro, o amigo era forte e vistoso.

Da porta do rancho, Margarida chamava para o jantar. Marciel foi à frente, silencioso, pensativo, enquanto Juca o seguia, segurando-se para não mostrar a felicidade que sentia. Não demorava e o filho já nasceria. Certamente, seria um homenzinho, para ajudá-lo na labuta do dia-a-dia. Não queria ser um dono de venda e já tinha pensado em tudo aquilo: assim que o bebê nascesse, levaria Margarida para a cidade, compraria casa e montaria o negócio para ela comandar.

Ainda haveria de ficar mais um tempo naquele lugar, junto com Marciel; fariam fortuna e, assim que o velho morresse, haveria de herdar a fazenda. O velho houvera prometido e, embora não cresse em promessa de cachaça, restava-lhe a esperança, além disso, quem haveria de vir para cobra as terras naquele fim de mundo.

Não deixaria o amigo à míngua. Dono da fazenda, ele buscaria a esposa na cidade; viveriam ambos e o filho nas terras do coronel Juca Pessoa e deixaria a casa e a venda para Marciel. Assim, teria ainda o amigo por perto, com toda a sua lealdade, enquanto viveriam todos felizes e cheios de dinheiro.  Ele teria dinheiro e poder, assim como o “Seu” Gregório.

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