Leia, neste blog, diariamente, cada
capítulo do livro Juca Pessoa, do escritor Elismar Santos.
Nesta primeira postagem,
disponibilizaremos os quatro primeiros capítulos e nos dias subsequentes será
disponibilizado um capítulo diário.
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JUCA PESSOA
Elismar Santos
CAPÍTULO 1
Entremeando o rosário e as ladainhas, apenas o silêncio. Eram poucos os
que acompanhavam o féretro; gente simples, amigos do falecido. Todos ali se
sentiam tristes, como acontece em todo velório, mas, apenas Catarina
chorava. E fazia-o copiosamente, sendo amparada por duas velhinhas de
cara cansada. Ela tinha os pés descalços e vestia-se com um gasto vestido
branco que deixava transparecer suas formas de menina-moça, com os seios
durinhos e as coxas grossas.
O padre ia junto do caixão, o suor lhe escorrendo pela testa, quase
cozinhando debaixo da batina. Catarina ia à sua frente, e isso lhe causava
ainda mais calor. Às vezes, olhava para cima, como que a procura de alguma
nuvem que lhe abrandasse o mormaço daquele dia; mas não choveria, não haveria
de chover por um longo tempo. A falta de chuva, a fome, as guerras familiares,
tudo isso seriam o carma daquele povo. Feliz era o defunto, que descansava de
tudo aquilo.
Nos botecos, homens bebiam suas tristezas e, quando avistavam o caixão,
punham o copo sobre o balcão, tiravam o chapéu da cabeça e benziam-se em
respeito ao morto. Depois, voltavam às suas tristezas e abrandavam-se nas
bebidas e piadas chulas. Ainda assim, enquanto o féretro partia, falavam de
Catarina, prevendo o seu futuro; conjecturavam a sua virgindade e apostavam
sobre quem haveria de quebrar o seu cabaço, se é que ela ainda fosse virgem.
Juca não escutava nem sentia aquelas falsidades e debilidades humanas.
Vestido da sua roupa domingueira, as mãos postas ao peito, a barba feita e em
completa falta de sentimentos, dormia tranquilamente no caixão, sem saber se um
dia voltaria, sem se preocupar com o futuro de Catarina; sem nem mesmo
agradecer aos préstimos de Meneandro ou tomar um último trago de pinga com o
padre. Apenas descansava e deixava que o levassem rumo à sua morada eterna,
naquele sol escaldante de dezembro.
Capítulo
2
Era madrugada e os galos
ainda nem cantavam nos quintais. Catarina não tinha sono. Ela havia passado
toda a noite de olhos e ouvidos arregalados, seguindo o caminho da lua cheia
através de uma das frestas do telhado e ouvindo os gemidos e as tosses
estrondosas de Juca. Algumas vezes ele a havia chamado para pedir água; depois,
parecia adormecer, para, em seguida, voltar a tossir desabaladamente, quase
desfalecendo, procurando um pouco de ar para respirar.
Talvez ele estivesse
morrendo. E esta ideia causava um sentimento dúbio na menina: de certa forma, o
velho descansaria de todo aquele sofrimento; afinal, já fazia um tempo, desde
que desmaiara a primeira vez, que as dores lhe aumentavam, a fraqueza tomava o
seu corpo e, agora, essa tosse que parecia não ter fim. Mas, por outro lado, se
ele morresse, quem lhe haveria de fazer companhia. Eram só os dois naquela
casa, e nem mesmo Teresa, a sua madrinha, existia mais para lhe dar o apoio de
que tanto precisava.
As lembranças da velha Faziam aumentar a dor
que Catarina sentia. Desde as suas recordações mais remotas, era aquela a sua
mãe. Nunca soubera ao certo quando e como chegara à sua casa. Teresa sempre se
esquivara das explicações, embora as indagações fossem insistentes. A velha
sempre dissera que as dúvidas eram atentações que o diabo punha na cabeça das
pessoas, para que não fizessem o que era certo. Além do mais, bastava-lhe tudo
o que tinha. Ela era a sua mãe e o seu pai, apenas isso.
Catarina nunca aceitara os
despistos da velha, mas respeitava-a e sabia que um dia, mais cedo ou mais
tarde, a verdade lhe seria dita. A madrinha falecera pouco tempo depois que
Juca viera lhe buscar. Não a viu ser enterrada. O velho disse que o melhor era
fazer uma oração. Que fosse à igreja e pedisse pela alma da senhora. E que, se
não a visse em trajes mortuários, com a terra sendo jogada sobre o seu caixão,
restariam-lhe as boas lembranças. Que haveriam de ter mais valia do que a dor
de se ver um parente morto.
Naquela época, Juca já lhe
parecia velho. Por algumas vezes ela o havia visto conversando com a madrinha
na cerca. Às vezes lhe trazia alguma roupa ou mesmo bonecas para brincar, mas
tudo isso lhe era dado pelas mãos da senhora. Nunca tinha conversado com ele. E
numa manhã ensolarada, quando ela ainda tomava o café, sua madrinha veio com os
olhos avermelhados, banhados em lágrima, com uma pequena bolsa dependurada pelo
ombro.
A velha deu-lhe um abraço apertado, beijou demoradamente
e, com a voz embargada, disse-lhe que era a hora de partir, que não chorasse e
nem olhasse para trás, mas que nunca esquecesse de que a amava.
Catarina não entendia o
porquê de tudo aquilo. Ainda era uma menina, com nove ou dez anos de idade.
Ainda não era moça, não tinha peitos e brincava de boneca com os sabugos de
milho que Teresa usaria para acender o fogão. Quis ficar e agarrou-se à velha,
mas foi afastada pelas mãos calejadas da mulher. Juca a pegou nos braços,
colocou na garupa do cavalo e, despedindo-se da mulher, seguiu seu caminho sem
olhar para trás.
Capítulo
3
Os pássaros amontoaram-se no
sete-copas de frente a casa. Eles não cantavam, apenas observavam, quase que
solenes, o que se passava naquele lugar. A janela já estava aberta, na tentativa
de que o ar fresco daquela manhã penetrasse no ambiente. Nenhuma daquelas aves
ousava entrar, apenas olhavam compenetradas, entristecidas. Eram papa-capins,
sabiás, curiós, pintassilgos, trinca-ferros e canários-da-terra. É bem verdade
que eles sempre estiveram por ali, mas, antes, chegavam em algazarra, entravam
casa adentro e tomavam o restinho de café que o velho deixava na velha xícara
de porcelana, já encardida pelo líquido e pelo tempo.
A casa era simples e não
tinha muros. Uma grande cerca de arame farpado era a única barreira que a
separava da esburacada rua de terra. O pé de sete-copas ficava do lado de
dentro da cerca, tendo embaixo um pequeno banco de madeira, onde os namorados
transavam de madrugada, depois que a meninada brincava de pique - esconde e os
mais velhos conversavam amenidades.
As duas janelas passavam
todo o dia abertas, a não ser nos meses de agosto, quando Catarina tinha que
correr a todo instante para fechá-las contra algum redemoinho, enquanto a
molecada ficava assoviando no meio da rua, só para ver o saci fazendo
travessuras. Ambas eram azuis, de um azulado envelhecido, há muito pintadas por
Juca, pouco antes de trazer a menina para a sua casa.
As paredes, caiadas de
branco e tomadas pela poeira, fazia tempos já estavam amarelecidas, precisando
de uma nova pintura, sempre prometida pelo velho. E, aqui e acolá, ainda se
podiam ver as marcas das bolas de leite de mangaba que os meninos jogavam,
enquanto Juca estava em alguma roça, trabalhando para algum fazendeiro.
Ninguém sabia ao certo de
onde Juca viera. Fazia tempos que morava naquela pequenina casa; primeiro
sozinho, depois com Catarina, que alguns suspeitavam ser sua amásia,
recriminando-os pelo ato, já que, quando da sua chegada, ainda era ela uma
menina. Outros afirmavam ser Catarina uma filha do velho, recuperada tempos
depois de ser deixada em cuidados de alguma senhora, porque teria Juca matado a
companheira num átimo de ódio enciumado. Ainda havia aqueles que diziam que a
mocinha era apenas uma criança órfã, que Juca encontrara pelas bandas de Bocaiúva
num dia de muita chuva, debaixo de um enorme pequizeiro, enquanto descia da
Bahia, de onde teria vindo fugido de um velho coronel, cuja filha tinha sido
desvirginada pelo vaqueiro, estando este, há muito, jurado de morte.
Ninguém sabia ao certo de
onde Juca viera e nem mesmo qual a sua relação com Catarina, embora ela sempre
dissesse que o considerava como se deve considerar a um pai. Também não sabiam
as pessoas do Pitinha que naquela manhã Juca estava morrendo, nos braços da
mocinha, enquanto os pássaros observavam-nos de cima do Sete-copas, respeitando
aquele momento triste e derradeiro.
Capítulo
4
As dores eram constantes. E
agora essa tosse que não parava. Juca sentia-se fraco, desanimado; já não tinha
mais razão para viver. Às vezes, punha-se a desfiar o Rosário, silenciosamente,
enquanto Catarina arrumava a casa. E nessas orações, pedia que morresse e, mais
que isso, que a menina não ficasse desamparada, que alguma boa alma a tivesse
ao seu lado.
Do muito que fizera em vida,
de muita coisa se arrependia. Não se arrependia de tê-la buscado para junto de
si. Ela não tinha culpa de tudo aquilo. Além disso, Catarina era como uma
filha, a filha que poderia ter sido, mas que não fora; não haveria de ser.
Em quando morresse, já não
haveria Teresa para ampará-la. Até ali foram apenas os dois, Juca e Catarina,
ambos se cuidando dentro daquela casa. Ele, um velho, com todos os seus
arrependimentos, seus segredos e suas desilusões. Ela, ainda uma criança,
ganhando corpo de mulher; um poço de esperanças a ser derramado, a ser
esvaziado pelas loucuras desse mundo bitolado.
Quem
ali poderia cuidar de Catarina? O padre?! Não. Aquele seria o menos indicado à
função. Sujeito bom, mas, um homem como todos os outros. Juca sabia que o seu
fim viria rápido e ela restaria sozinha, desamparada, sem ninguém que a
guiasse.
Sempre soube que não era o homem certo para
conselhos ou sermões, afinal, não era o seu pai e nem mesmo se via em
autoridade para aconselhar quem quer que fosse. Mas a protegia, como se
protegesse a uma filha.
Durante aquela noite,
enquanto tossia e se revirava na cama, entre as tantas dores que lhe doíam pelo
corpo, pensava no futuro de Catarina. Não podia mais ficar ali, sob os olhares
devoradores daqueles homens que passavam todo o dia nos botecos, comendo com os
olhos todas as menininhas daquele lugar. Temia pelo seu futuro, pelos seus
sonhos, pelas suas ilusões.
Era impossível não imaginar
a menina no rancho de Idalina, misturando-se às outras mulheres, entregando a
sua virgindade e os seus sonhos por míseros tostões, deitando-se a contragosto
com todos os tipos de homens, sujos, bêbados, ignorantes. Não a criara para
isso. Não a criara para puta.
Pelas frestas do telhado o
dia começava a nascer. As tosses eram constantes, seu corpo doía, seu peito
doía e faltava-lhe o fôlego para respirar, faltavam-lhe as forças para viver.
Por alguns minutos fechava os olhos, talvez a espera de que a morte lhe viesse
buscar. E, enquanto esperava, revia, como a um filme, tudo o que tinha vivido
desde que saíra da casa da sua mãe, deixando-a solitária junto à porta, vendo
as lágrimas que desciam dos olhos da velha, até aquele momento em que tudo se
consumava.
Catarina havia aberto a
janela. Alguns pássaros pareciam esperá-lo no Sete-Copas. E todos continuaram
lá, espiando, contritos, respeitosos, como se despedissem de um companheiro.
Nunca fizera nada por aquelas aves. Ao invés disso, comera-os em quando descia
para Minas, na vez em que se perdera no meio do cerrado, antes que Marciel o
encontrasse.
Comera-os para não morrer,
num instinto de sobrevivência. De resto, convivera pacificamente com todos os
bichos, deixando que bebessem da água que guardava no tambor para os tempos de
seca brava, e dando-lhes os farelos dos pães que comia durante as manhãs. Mais
que isso nunca fizera. Nunca havia sido homem de amenidades. Vivera a sua vida
toscamente, como vivem todos os sertanejos.
As dores iam aumentando. As
lembranças entristeciam a sua alma: não tivera uma vida feliz. Alguns momentos
lhe haviam sido prazerosos, mas, de todo, fora sempre um desgraçado em busca de
algo que nunca encontrara. Tinha consciência da sua infelicidade; ainda assim,
agradecia por tudo aquilo.
Notava que o dia nascia bonito, apesar da sua
dor, e sabia que nada daquilo haveria de mudar após a sua morte. Os pássaros
continuariam a vir ao sete-copas, onde cantariam as mesmas melodias de sempre;
beberiam ainda a água do tambor e comeriam os farelos que outros homens
haveriam de deixar cair pelo chão.
Juca
sentia suas forças se acabarem. A tosse era mais forte e o ar ainda mais lhe
rareava. Chamou por Catarina; pediu que trouxesse uma vela, uma caixa de
fósforos e um pouco de água. Mandou que a menina acendesse a vela e a colocasse
aos pés da cama. Ainda que não fosse de todo crente, sentia a necessidade de
luz, de algo que o guiasse pelo outro lado. Sentia a garganta seca e tinha
sede. Como não tivesse forças para se levantar, pediu que lhe desse um pouco
daquela água.
Catarina
segurou a cabeça do velho e lentamente fê-lo bebericar. Os olhos dela estavam
avermelhados, cansados, tomados por uma tristeza incontida. Quis dizê-la
algumas palavras de conforto, mas, já não tinha forças para falar. Juca olhou
candidamente para a sua filha e fechou os olhos. Seu coração foi diminuindo as
batidas, até que tudo se transformasse num tétrico silêncio.
<3 amei... vamos aos outros capítulos.. Senti falta de achar aqui o link dos próximos capítulos...
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