sábado, 23 de junho de 2018

A SAGA DE JUCA PESSOA ( Primeiros quatro capítulos)


Leia, neste blog, diariamente, cada capítulo do livro Juca Pessoa, do escritor Elismar Santos.

Nesta primeira postagem, disponibilizaremos os quatro primeiros capítulos e nos dias subsequentes será disponibilizado um capítulo diário.

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JUCA PESSOA


Elismar Santos



CAPÍTULO 1



Entremeando o rosário e as ladainhas, apenas o silêncio. Eram poucos os que acompanhavam o féretro; gente simples, amigos do falecido. Todos ali se sentiam tristes, como acontece em todo velório, mas, apenas Catarina chorava.  E fazia-o copiosamente, sendo amparada por duas velhinhas de cara cansada. Ela tinha os pés descalços e vestia-se com um gasto vestido branco que deixava transparecer suas formas de menina-moça, com os seios durinhos e as coxas grossas.

O padre ia junto do caixão, o suor lhe escorrendo pela testa, quase cozinhando debaixo da batina. Catarina ia à sua frente, e isso lhe causava ainda mais calor. Às vezes, olhava para cima, como que a procura de alguma nuvem que lhe abrandasse o mormaço daquele dia; mas não choveria, não haveria de chover por um longo tempo. A falta de chuva, a fome, as guerras familiares, tudo isso seriam o carma daquele povo. Feliz era o defunto, que descansava de tudo aquilo.

Nos botecos, homens bebiam suas tristezas e, quando avistavam o caixão, punham o copo sobre o balcão, tiravam o chapéu da cabeça e benziam-se em respeito ao morto. Depois, voltavam às suas tristezas e abrandavam-se nas bebidas e piadas chulas. Ainda assim, enquanto o féretro partia, falavam de Catarina, prevendo o seu futuro; conjecturavam a sua virgindade e apostavam sobre quem haveria de quebrar o seu cabaço, se é que ela ainda fosse virgem.

Juca não escutava nem sentia aquelas falsidades e debilidades humanas. Vestido da sua roupa domingueira, as mãos postas ao peito, a barba feita e em completa falta de sentimentos, dormia tranquilamente no caixão, sem saber se um dia voltaria, sem se preocupar com o futuro de Catarina; sem nem mesmo agradecer aos préstimos de Meneandro ou tomar um último trago de pinga com o padre. Apenas descansava e deixava que o levassem rumo à sua morada eterna, naquele sol escaldante de dezembro.  


Capítulo 2

Era madrugada e os galos ainda nem cantavam nos quintais. Catarina não tinha sono. Ela havia passado toda a noite de olhos e ouvidos arregalados, seguindo o caminho da lua cheia através de uma das frestas do telhado e ouvindo os gemidos e as tosses estrondosas de Juca. Algumas vezes ele a havia chamado para pedir água; depois, parecia adormecer, para, em seguida, voltar a tossir desabaladamente, quase desfalecendo, procurando um pouco de ar para respirar.

Talvez ele estivesse morrendo. E esta ideia causava um sentimento dúbio na menina: de certa forma, o velho descansaria de todo aquele sofrimento; afinal, já fazia um tempo, desde que desmaiara a primeira vez, que as dores lhe aumentavam, a fraqueza tomava o seu corpo e, agora, essa tosse que parecia não ter fim. Mas, por outro lado, se ele morresse, quem lhe haveria de fazer companhia. Eram só os dois naquela casa, e nem mesmo Teresa, a sua madrinha, existia mais para lhe dar o apoio de que tanto precisava.

  As lembranças da velha Faziam aumentar a dor que Catarina sentia. Desde as suas recordações mais remotas, era aquela a sua mãe. Nunca soubera ao certo quando e como chegara à sua casa. Teresa sempre se esquivara das explicações, embora as indagações fossem insistentes. A velha sempre dissera que as dúvidas eram atentações que o diabo punha na cabeça das pessoas, para que não fizessem o que era certo. Além do mais, bastava-lhe tudo o que tinha. Ela era a sua mãe e o seu pai, apenas isso.

Catarina nunca aceitara os despistos da velha, mas respeitava-a e sabia que um dia, mais cedo ou mais tarde, a verdade lhe seria dita. A madrinha falecera pouco tempo depois que Juca viera lhe buscar. Não a viu ser enterrada. O velho disse que o melhor era fazer uma oração. Que fosse à igreja e pedisse pela alma da senhora. E que, se não a visse em trajes mortuários, com a terra sendo jogada sobre o seu caixão, restariam-lhe as boas lembranças. Que haveriam de ter mais valia do que a dor de se ver um parente morto.

Naquela época, Juca já lhe parecia velho. Por algumas vezes ela o havia visto conversando com a madrinha na cerca. Às vezes lhe trazia alguma roupa ou mesmo bonecas para brincar, mas tudo isso lhe era dado pelas mãos da senhora. Nunca tinha conversado com ele. E numa manhã ensolarada, quando ela ainda tomava o café, sua madrinha veio com os olhos avermelhados, banhados em lágrima, com uma pequena bolsa dependurada pelo ombro.

 A velha deu-lhe um abraço apertado, beijou demoradamente e, com a voz embargada, disse-lhe que era a hora de partir, que não chorasse e nem olhasse para trás, mas que nunca esquecesse de que a amava.

Catarina não entendia o porquê de tudo aquilo. Ainda era uma menina, com nove ou dez anos de idade. Ainda não era moça, não tinha peitos e brincava de boneca com os sabugos de milho que Teresa usaria para acender o fogão. Quis ficar e agarrou-se à velha, mas foi afastada pelas mãos calejadas da mulher. Juca a pegou nos braços, colocou na garupa do cavalo e, despedindo-se da mulher, seguiu seu caminho sem olhar para trás. 




Capítulo 3

Os pássaros amontoaram-se no sete-copas de frente a casa. Eles não cantavam, apenas observavam, quase que solenes, o que se passava naquele lugar. A janela já estava aberta, na tentativa de que o ar fresco daquela manhã penetrasse no ambiente. Nenhuma daquelas aves ousava entrar, apenas olhavam compenetradas, entristecidas. Eram papa-capins, sabiás, curiós, pintassilgos, trinca-ferros e canários-da-terra. É bem verdade que eles sempre estiveram por ali, mas, antes, chegavam em algazarra, entravam casa adentro e tomavam o restinho de café que o velho deixava na velha xícara de porcelana, já encardida pelo líquido e pelo tempo.

A casa era simples e não tinha muros. Uma grande cerca de arame farpado era a única barreira que a separava da esburacada rua de terra. O pé de sete-copas ficava do lado de dentro da cerca, tendo embaixo um pequeno banco de madeira, onde os namorados transavam de madrugada, depois que a meninada brincava de pique - esconde e os mais velhos conversavam amenidades.

As duas janelas passavam todo o dia abertas, a não ser nos meses de agosto, quando Catarina tinha que correr a todo instante para fechá-las contra algum redemoinho, enquanto a molecada ficava assoviando no meio da rua, só para ver o saci fazendo travessuras. Ambas eram azuis, de um azulado envelhecido, há muito pintadas por Juca, pouco antes de trazer a menina para a sua casa.

As paredes, caiadas de branco e tomadas pela poeira, fazia tempos já estavam amarelecidas, precisando de uma nova pintura, sempre prometida pelo velho. E, aqui e acolá, ainda se podiam ver as marcas das bolas de leite de mangaba que os meninos jogavam, enquanto Juca estava em alguma roça, trabalhando para algum fazendeiro.

Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera. Fazia tempos que morava naquela pequenina casa; primeiro sozinho, depois com Catarina, que alguns suspeitavam ser sua amásia, recriminando-os pelo ato, já que, quando da sua chegada, ainda era ela uma menina. Outros afirmavam ser Catarina uma filha do velho, recuperada tempos depois de ser deixada em cuidados de alguma senhora, porque teria Juca matado a companheira num átimo de ódio enciumado. Ainda havia aqueles que diziam que a mocinha era apenas uma criança órfã, que Juca encontrara pelas bandas de Bocaiúva num dia de muita chuva, debaixo de um enorme pequizeiro, enquanto descia da Bahia, de onde teria vindo fugido de um velho coronel, cuja filha tinha sido desvirginada pelo vaqueiro, estando este, há muito, jurado de morte.

Ninguém sabia ao certo de onde Juca viera e nem mesmo qual a sua relação com Catarina, embora ela sempre dissesse que o considerava como se deve considerar a um pai. Também não sabiam as pessoas do Pitinha que naquela manhã Juca estava morrendo, nos braços da mocinha, enquanto os pássaros observavam-nos de cima do Sete-copas, respeitando aquele momento triste e derradeiro. 




Capítulo 4

As dores eram constantes. E agora essa tosse que não parava. Juca sentia-se fraco, desanimado; já não tinha mais razão para viver. Às vezes, punha-se a desfiar o Rosário, silenciosamente, enquanto Catarina arrumava a casa. E nessas orações, pedia que morresse e, mais que isso, que a menina não ficasse desamparada, que alguma boa alma a tivesse ao seu lado.

Do muito que fizera em vida, de muita coisa se arrependia. Não se arrependia de tê-la buscado para junto de si. Ela não tinha culpa de tudo aquilo. Além disso, Catarina era como uma filha, a filha que poderia ter sido, mas que não fora; não haveria de ser.

Em quando morresse, já não haveria Teresa para ampará-la. Até ali foram apenas os dois, Juca e Catarina, ambos se cuidando dentro daquela casa. Ele, um velho, com todos os seus arrependimentos, seus segredos e suas desilusões. Ela, ainda uma criança, ganhando corpo de mulher; um poço de esperanças a ser derramado, a ser esvaziado pelas loucuras desse mundo bitolado.

Quem ali poderia cuidar de Catarina? O padre?! Não. Aquele seria o menos indicado à função. Sujeito bom, mas, um homem como todos os outros. Juca sabia que o seu fim viria rápido e ela restaria sozinha, desamparada, sem ninguém que a guiasse.

 Sempre soube que não era o homem certo para conselhos ou sermões, afinal, não era o seu pai e nem mesmo se via em autoridade para aconselhar quem quer que fosse. Mas a protegia, como se protegesse a uma filha.

Durante aquela noite, enquanto tossia e se revirava na cama, entre as tantas dores que lhe doíam pelo corpo, pensava no futuro de Catarina. Não podia mais ficar ali, sob os olhares devoradores daqueles homens que passavam todo o dia nos botecos, comendo com os olhos todas as menininhas daquele lugar. Temia pelo seu futuro, pelos seus sonhos, pelas suas ilusões.

Era impossível não imaginar a menina no rancho de Idalina, misturando-se às outras mulheres, entregando a sua virgindade e os seus sonhos por míseros tostões, deitando-se a contragosto com todos os tipos de homens, sujos, bêbados, ignorantes. Não a criara para isso. Não a criara para puta.

Pelas frestas do telhado o dia começava a nascer. As tosses eram constantes, seu corpo doía, seu peito doía e faltava-lhe o fôlego para respirar, faltavam-lhe as forças para viver. Por alguns minutos fechava os olhos, talvez a espera de que a morte lhe viesse buscar. E, enquanto esperava, revia, como a um filme, tudo o que tinha vivido desde que saíra da casa da sua mãe, deixando-a solitária junto à porta, vendo as lágrimas que desciam dos olhos da velha, até aquele momento em que tudo se consumava.

Catarina havia aberto a janela. Alguns pássaros pareciam esperá-lo no Sete-Copas. E todos continuaram lá, espiando, contritos, respeitosos, como se despedissem de um companheiro. Nunca fizera nada por aquelas aves. Ao invés disso, comera-os em quando descia para Minas, na vez em que se perdera no meio do cerrado, antes que Marciel o encontrasse.

Comera-os para não morrer, num instinto de sobrevivência. De resto, convivera pacificamente com todos os bichos, deixando que bebessem da água que guardava no tambor para os tempos de seca brava, e dando-lhes os farelos dos pães que comia durante as manhãs. Mais que isso nunca fizera. Nunca havia sido homem de amenidades. Vivera a sua vida toscamente, como vivem todos os sertanejos.

As dores iam aumentando. As lembranças entristeciam a sua alma: não tivera uma vida feliz. Alguns momentos lhe haviam sido prazerosos, mas, de todo, fora sempre um desgraçado em busca de algo que nunca encontrara. Tinha consciência da sua infelicidade; ainda assim, agradecia por tudo aquilo.

 Notava que o dia nascia bonito, apesar da sua dor, e sabia que nada daquilo haveria de mudar após a sua morte. Os pássaros continuariam a vir ao sete-copas, onde cantariam as mesmas melodias de sempre; beberiam ainda a água do tambor e comeriam os farelos que outros homens haveriam de deixar cair pelo chão.

Juca sentia suas forças se acabarem. A tosse era mais forte e o ar ainda mais lhe rareava. Chamou por Catarina; pediu que trouxesse uma vela, uma caixa de fósforos e um pouco de água. Mandou que a menina acendesse a vela e a colocasse aos pés da cama. Ainda que não fosse de todo crente, sentia a necessidade de luz, de algo que o guiasse pelo outro lado. Sentia a garganta seca e tinha sede. Como não tivesse forças para se levantar, pediu que lhe desse um pouco daquela água.

Catarina segurou a cabeça do velho e lentamente fê-lo bebericar. Os olhos dela estavam avermelhados, cansados, tomados por uma tristeza incontida. Quis dizê-la algumas palavras de conforto, mas, já não tinha forças para falar. Juca olhou candidamente para a sua filha e fechou os olhos. Seu coração foi diminuindo as batidas, até que tudo se transformasse num tétrico silêncio.  


Um comentário:

  1. <3 amei... vamos aos outros capítulos.. Senti falta de achar aqui o link dos próximos capítulos...

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