E
tudo isso se deu há muito tempo, quando ainda éramos cobras. Só tempos depois é
que nos tornaríamos dinossauros, cultivando a sabedoria e a parcimônia daqueles
que vivem as tantas idiossincrasias da vida, enfrentando as turbulências,
superando as divergências e incongruências deste mundo maldito.
Em tempos de cobras, tudo o que fazíamos era tomado pelos
ímpetos repentinos da jovialidade inconstante. Desta forma, pensávamos pouco e agíamos
mais. E quando nos detínhamos em pensamentos um pouco mais prolongados, era
traçando planos ou tramando meios que nos propiciassem algum retorno mais
imediato.
Dentre todos, Lúcio era o mais letrado nas artimanhas que
fazíamos: frequentava todas as rodas, fazia parte de todas as ordens, e
trazia-nos, diariamente, as mais diversas novidades. Dizia-se literato, sem
nunca ter publicado nenhuma letra; assim como se gabava de sapiente, sem nunca
sequer ter tirado qualquer diploma. Fizera seu nome nas rodas da cidade, e isto
lhe bastava na vida. Tirava proveito do seu nome e tentava nos impressionar com
suas façanhas narradas.
Cláudio era o mais incerto dos amigos: um dia chegava
sorridente, cheio de meneios e malemolências, mostrando as suas letras,
cantando a suas músicas, jogando versos aos quatro cantos; no outro, moribundo,
aquietava-se a um canto do salão e de lá ouviam-se simplesmente as lamúrias de
um velho injustiçado.
Paulo, com quem eu nunca tivera grandes proximidades,
trazia consigo as dúvidas da juventude. Fazia locuções numa pequenina rádio da
cidade, usava o nome artístico de Saulo e, vez ou outra, aparecia com alguns calhamaços
dissertativos, os quais eu nunca chegara a ler e, por isso, não sei se de boa
ou má qualidade.
Reuníamo-nos de frente uma casinha velha, num bar antigo
da cidade; cantávamos, recitávamos poesias e traçávamos planos os mais
diversos. Sonhávamos com a fama, o dinheiro, o reconhecimento e, quase sempre,
éramos despejados pelo dono do bar, quando, já quase o sol raiando, o dono, um
velho barrigudo e sem barba, gritava que saíssemos à rua.
Um dia nos cansamos e tomamos o bar de assalto. Chamamos todos
os literatos, os políticos e cantores da cidade. O velho, trancado dentro do
sujo banheiro, gritava por socorro, enquanto vivíamos a glória tão esperada das
jovens almas, com todos os seus sonhos, anseios, com toda a vivacidade das
poesias ainda não derramadas sobre a folha de papel.
Já era quase dia quando a polícia chegou. Fomos presos e
saímos ovacionados pelas cobras que haviam se criado em nosso entorno. Éramos
mártires e gozávamos o nosso prestígio de encarcerados. Paulo não aparecera
naquela noite, alegara compromissos prévios em outras paragens; mas, quando saíamos,
por entre os aplausos dos presentes, pude notá-lo a um canto, escondido por
entre as sombra, com um sorriso no canto da boca.
Mas isso foi há muito tempo, quando ainda éramos cobras.
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