terça-feira, 3 de março de 2020

REENCONTRO


Os cabelos brancos caídos sobre a testa como se quisessem esconder a velhice eram finos e não escondiam a beleza que um dia tiveram. Um dia foram negros e muito brilhantes; se bem que ainda tinham algum brilho, mas agora um brilho morto como a algum tempo ela também estaria.

Ela já não esperava quase nada: apenas a morte e o filho. Primeiro queria ver o filho. Não sabia onde ele estava; havia saído um dia dizendo que ia trabalhar numa fazenda lá pelos lados do Maranhão e, isso já fazia mais de dez anos, nunca mais apareceu. Devia estar muito bonito, pois  era um rapaz alto, contava vinte e um anos, tinha os cabelos negros e lisos iguais aos dela; os olhos eram grandes e transmitiam uma vivacidade tão gostosa que ela era capaz de ficar horas a olhá-los sem se cansar. Era um menino bom, que não se metia em encrenca, quase não saía de casa e estava sempre do seu lado. Agora estava ali, sozinha, esperando por um filho que não sabia onde estava (Alguma coisa dentro de si dizia que ele ainda estava vivo) e por uma morte que demorava a chegar.

            O marido morrera quando o filho ainda era pequeno; por isso, Sofreu para criar o menino; trabalhava em casa de família, comia o pão que o diabo amassou, mas era feliz.

Agora contava tantos anos vividos que já não se lembrava mais de quantos tinha; lembrava-se de pouca coisa e já estava caducando. Uma mocinha tomava conta dela; dizia ser parente, mas queria mesmo era a aposentadoria da velha; levava homens para dentro de casa e se não dormisse até a hora de ela ir para as festas trancava-a no quarto e deixava lá, sozinha.

            A casa não era grande; era uma casa simples, pequena  e velha, mas era fruto do seu suor. Economizara durante toda a vida até que pudesse comprá-la; mas a mocinha dizia que era dela, bastando que a velha morresse. O seu quarto ficava nos fundos da casa, não gostava de barulho e, por isso , preferia ficar ali, escondidinha, rezando seu terço e conversando com suas almas, parentes seus que todas as noites vinham lhe fazer companhia. Alguns eram chatos; tinha o tio João que chegava todas as noites com as mesmas piadas de quando ela era criança; Chiquinha, sua irmã mais velha, que cantava para que ela dormisse; Dona Lúcia, uma velha vizinha da família, que vinha chamando-a de Sá Clara e contava sempre as mesmas coisas, dizia que sentia frio onde estava, mas que era um lugar bom, não tinha guerras, não tinha briga, era um lugar cheio de luz. Clara tinha inveja de Dona Lúcia, queria ir pra lá também, mas resignava-se e entendia que ainda não era a sua hora; pegava o terço e punha-se a rezar; todos os conhecidos vinham e juntos faziam belas noites de oração.

            Já devia ser umas nove da manhã. Sentada em sua cadeira de rodas, pois uma queda no banheiro quebrara a sua bacia, impossibilitando-a de andar, esperava que Juliana, a mocinha que cuidava dela, trouxesse o seu café. A menina a havia deixado ali bem cedinho e não tinha voltado.

Pegou um pente que estava depositado num cantinho da mesinha de oração e, de frente ao espelho, começou a se pentear. As lembranças começaram a brotar na sua mente: lembrava-se dos antigos namorados; do dia do seu casamento, um dia chuvoso, quase um dilúvio, o que a fez arrepender-se de ter comido tanto na panela, desdenhando as falas da mãe de que “moça que come em panela, quando casa cai um dilúvio sobre ela.”; lembrava-se do nascimento do filho; do dia em que ele caíra de cama por causa de uma gripe nervosa; quase que ela também morria de preocupação, mas eram apenas manhas de criança, nada que uns chás de plantas não resolvessem.

Penteava os cabelos como faziam as moças do seu tempo enquanto se preparavam para encontrar o namorado; não era um simples ato de pentear-se, pois havia ali toda uma cerimônia. Não se passavam todas aquelas colorações no rosto, o que deixa as moças de hoje com a pele de fantasia carnavalesca; o que contava mesmo eram as mãos  da artista, e as mãos de Clara eram verdadeiras mãos de fada, faziam mágica e deixavam-na tão bonita quanto uma princesa.

            Os cabelos brancos não a tornavam uma mulher feia, mas faziam-na uma pessoa triste. Ao olhar-se no espelho, Dona Clara via não mais aquela menina cheia de viço, mas uma velha cansada e enfadada, um resto de vida a espera da morte. A cada dia tornava-se mais silenciosa, mais obscura; a cada dia morria um pouquinho, esperava apenas que pudesse descansar. Não conversava com Juliana; não recebia os amigos em vida, afinal, todos já estavam descansando e apenas ela insistia em ficar, ou melhor, obrigavam-na a permanecer.

Dona Clara queria ver o filho; sonhava com ele todas as noites; imaginava-o chegando num cavalo branco, um animal grande e formoso; o filho vestido numa roupa de gala, trazendo nas mãos um lindo buquê de flores e um grande sorriso no rosto.

O pente deslizava leve pelos fios de cabelo branco, como se acalentasse a sua alma e a convidasse para um longo instante de meditação.

            A velha tinha dormido por alguns instantes, um sono estranho em que não conseguiu descansar; era um sono leve, cheio de sobressaltos, como se ela pressentisse que alguma coisa lhe estivesse por acontecer. Acordou assustada; tentou gritar, mas não tinha voz, era como se tantos anos de silêncio a tivessem emudecido. Ouviu uns bates na porta; pensou que Juliana não estivesse em casa, fazia tanto tempo que a havia deixado ali que talvez tivesse até saído para a rua; tentou se levantar, mas lembrou-se que não tinha mais os movimentos das pernas; acomodou-se novamente e deixou que continuassem a bater. Sentia-se cada vez mais triste, era uma inválida; talvez fosse o filho que viera visitá-la , e ela sem poder ir recebê-lo com um abraço caloroso.

Alguém abriu a porta, devia ser Juliana. Duas pessoas entram pela casa adentro, com certeza eram o filho e a sua esposa, ele já devia estar casado, talvez já tivesse até um filhinho de colo, um bebezinho para ela bajular...

            - Dona Clara, está na hora de irmos ao médico. Estes dois rapazes irão ajudar a senhora. Vamos embora? – Não pôde deixar de notar um sorriso sarcástico nos lábios daquela mocinha; nunca a tinha levado ao médico, não seria agora que iria fazê-lo; com certeza não era somente ao médico que estavam indo.

A velha tentou firmar-se na sua cadeira para que não a levassem de casa, mas estava bastante debilitada e não conseguiria, por mais que tentasse, vencer àqueles dois brutamontes. Deixou-se levar, resignada, com a certeza de que não voltaria.

            Uma chuva fina caía àquela manhã. A mocinha veio com um guarda-chuva para que Dona Clara não pegasse um resfriado. Um dos homens a carregava no colo, o outro levava a sua cadeira; puseram-na no carro com todo o cuidado para que não se machucassem, com certeza estavam ganhando bem por aquele serviço.

Da janela do carro, fechada para que ela não pegasse o vento ou recebesse os pinguinhos de chuva, via toda a cidade que ficava para trás, lembrava-se do seu tempo de moça, quando pulava carnaval naquelas ruas sem se preocupar com o tempo e as dores que este lhe traria.

Ela não conseguia mais sentir raiva da Juliana, nem mesmo daqueles dois rapazes; de certa forma sentia-se feliz, havia saído daquela casa, daquele quarto, havia saído um pouco de si mesma; agora podia observar as outras pessoas: Uma criança brincava num parquinho próximo à escola; na sua época de criança não existiam parquinhos, brincava de cabra-cega, de esconde-esconde; porta-bandeiras; brincava de nadar no rio, mas tudo isso depois de terminados os afazeres domésticos; desde pequena ajudava a mãe a cuidar de casa. Quanta saudade sentia da sua mãe; o pai era carrasco, mas a mãe era um ouro, nunca havia levantado a mão para lhe bater, dava-lhe apenas carinho. Aquela criança brincava feliz, sem saber de como seria triste o seu futuro.

            Pararam de frente uma casa imensa. Na porta, duas mulheres vieram ao seu encontro. Cumprimentaram-na de uma forma carinhosa, mas mecânica, como se aquilo fosse apenas uma parte do seu trabalho; carregaram Dona Clara para dentro da casa. Enquanto levavam-na, não pôde deixar de reparar, ali moravam apenas velhos, pessoas que não tinham mais serventia para o mundo lá fora e que , por esse motivo, eram largadas como restos de uma civilização jovem e cheia de vida. Uma grande tristeza tomou conta de Dona Clara, ela compreendia que aquele asilo era a sua nova morada.

            A velha passou o resto dia dentro do quarto. Encostada junto à janela, olhava para o pomar que ficava bem junto da casa e estava repleto de frutas: Mangas, laranjas, abacates; todas as frutas de que mais gostava quando era jovem. Ficava a observar aquela tela à sua frente, uma obra de arte da natureza, e começava a lembrar-se dos seus parentes que sempre a visitavam na velha casa, nenhum viera vê-la, talvez não soubessem onde ela estava. Agora se sentiria verdadeiramente solitária, nem mesmo as suas almas viriam lhe fazer uma visita.

            Dona Clara sentia-se cansada. Deixou a cabeça pender para um lado e adormeceu. No meio do sono sentiu que alguém sacudia o seu ombro; levantou a cabeça e reconheceu o filho, era mesmo o seu menino que viera lhe visitar. Ele estava forte e bonito, da mesma forma que ela havia sonhado.

O filho pegou-a pela mão e pediu que se levantasse, pois tinham que ir, já era tarde. Ela tentou dizer que não conseguiria, mas, com um gesto, o filho indicou que continuasse em silêncio e insistiu para que ela se levantasse. Embora espantada, dona Clara se levantou e, agarrada em suas mãos, foi andando até o pomar bem junto à sua janela.

 Lá fora, um lindo cavalo branco a esperava. Ajudada pelo filho, montou na sua garupa e ambos galoparam para bem longe dali. Bem distante daquele lugar, Dona Clara ainda ouvia os seus velhos parentes que pareciam um coral a cantar as velhas canções de ninar.




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