Os cabelos brancos caídos
sobre a testa como se quisessem esconder a velhice eram finos e não escondiam a
beleza que um dia tiveram. Um dia foram negros e muito brilhantes; se bem que
ainda tinham algum brilho, mas agora um brilho morto como a algum tempo ela
também estaria.
Ela já não esperava quase
nada: apenas a morte e o filho. Primeiro queria ver o filho. Não sabia onde ele
estava; havia saído um dia dizendo que ia trabalhar numa fazenda lá pelos lados
do Maranhão e, isso já fazia mais de dez anos, nunca mais apareceu. Devia estar
muito bonito, pois era um rapaz alto,
contava vinte e um anos, tinha os cabelos negros e lisos iguais aos dela; os
olhos eram grandes e transmitiam uma vivacidade tão gostosa que ela era capaz
de ficar horas a olhá-los sem se cansar. Era um menino bom, que não se metia em
encrenca, quase não saía de casa e estava sempre do seu lado. Agora estava ali,
sozinha, esperando por um filho que não sabia onde estava (Alguma coisa dentro
de si dizia que ele ainda estava vivo) e por uma morte que demorava a chegar.
O
marido morrera quando o filho ainda era pequeno; por isso, Sofreu para criar o
menino; trabalhava em casa de família, comia o pão que o diabo amassou, mas era
feliz.
Agora contava tantos anos
vividos que já não se lembrava mais de quantos tinha; lembrava-se de pouca
coisa e já estava caducando. Uma mocinha tomava conta dela; dizia ser parente,
mas queria mesmo era a aposentadoria da velha; levava homens para dentro de
casa e se não dormisse até a hora de ela ir para as festas trancava-a no quarto
e deixava lá, sozinha.
A casa
não era grande; era uma casa simples, pequena
e velha, mas era fruto do seu suor. Economizara durante toda a vida até
que pudesse comprá-la; mas a mocinha dizia que era dela, bastando que a velha
morresse. O seu quarto ficava nos fundos da casa, não gostava de barulho e, por
isso , preferia ficar ali, escondidinha, rezando seu terço e conversando com
suas almas, parentes seus que todas as noites vinham lhe fazer companhia.
Alguns eram chatos; tinha o tio João que chegava todas as noites com as mesmas
piadas de quando ela era criança; Chiquinha, sua irmã mais velha, que cantava
para que ela dormisse; Dona Lúcia, uma velha vizinha da família, que vinha
chamando-a de Sá Clara e contava sempre as mesmas coisas, dizia que sentia frio
onde estava, mas que era um lugar bom, não tinha guerras, não tinha briga, era
um lugar cheio de luz. Clara tinha inveja de Dona Lúcia, queria ir pra lá
também, mas resignava-se e entendia que ainda não era a sua hora; pegava o
terço e punha-se a rezar; todos os conhecidos vinham e juntos faziam belas
noites de oração.
Já
devia ser umas nove da manhã. Sentada em sua cadeira de rodas, pois uma queda
no banheiro quebrara a sua bacia, impossibilitando-a de andar, esperava que
Juliana, a mocinha que cuidava dela, trouxesse o seu café. A menina a havia
deixado ali bem cedinho e não tinha voltado.
Pegou um pente que estava
depositado num cantinho da mesinha de oração e, de frente ao espelho, começou a
se pentear. As lembranças começaram a brotar na sua mente: lembrava-se dos
antigos namorados; do dia do seu casamento, um dia chuvoso, quase um dilúvio, o
que a fez arrepender-se de ter comido tanto na panela, desdenhando as falas da
mãe de que “moça que come em panela, quando casa cai um dilúvio sobre ela.”;
lembrava-se do nascimento do filho; do dia em que ele caíra de cama por causa
de uma gripe nervosa; quase que ela também morria de preocupação, mas eram
apenas manhas de criança, nada que uns chás de plantas não resolvessem.
Penteava os cabelos como
faziam as moças do seu tempo enquanto se preparavam para encontrar o namorado;
não era um simples ato de pentear-se, pois havia ali toda uma cerimônia. Não se
passavam todas aquelas colorações no rosto, o que deixa as moças de hoje com a
pele de fantasia carnavalesca; o que contava mesmo eram as mãos da artista, e as mãos de Clara eram
verdadeiras mãos de fada, faziam mágica e deixavam-na tão bonita quanto uma
princesa.
Os cabelos
brancos não a tornavam uma mulher feia, mas faziam-na uma pessoa triste. Ao
olhar-se no espelho, Dona Clara via não mais aquela menina cheia de viço, mas
uma velha cansada e enfadada, um resto de vida a espera da morte. A cada dia
tornava-se mais silenciosa, mais obscura; a cada dia morria um pouquinho,
esperava apenas que pudesse descansar. Não conversava com Juliana; não recebia
os amigos em vida, afinal, todos já estavam descansando e apenas ela insistia
em ficar, ou melhor, obrigavam-na a permanecer.
Dona Clara queria ver o
filho; sonhava com ele todas as noites; imaginava-o chegando num cavalo branco,
um animal grande e formoso; o filho vestido numa roupa de gala, trazendo nas
mãos um lindo buquê de flores e um grande sorriso no rosto.
O pente deslizava leve
pelos fios de cabelo branco, como se acalentasse a sua alma e a convidasse para
um longo instante de meditação.
A
velha tinha dormido por alguns instantes, um sono estranho em que não conseguiu
descansar; era um sono leve, cheio de sobressaltos, como se ela pressentisse
que alguma coisa lhe estivesse por acontecer. Acordou assustada; tentou gritar,
mas não tinha voz, era como se tantos anos de silêncio a tivessem emudecido.
Ouviu uns bates na porta; pensou que Juliana não estivesse em casa, fazia tanto
tempo que a havia deixado ali que talvez tivesse até saído para a rua; tentou
se levantar, mas lembrou-se que não tinha mais os movimentos das pernas;
acomodou-se novamente e deixou que continuassem a bater. Sentia-se cada vez
mais triste, era uma inválida; talvez fosse o filho que viera visitá-la , e ela
sem poder ir recebê-lo com um abraço caloroso.
Alguém abriu a porta,
devia ser Juliana. Duas pessoas entram pela casa adentro, com certeza eram o
filho e a sua esposa, ele já devia estar casado, talvez já tivesse até um
filhinho de colo, um bebezinho para ela bajular...
- Dona
Clara, está na hora de irmos ao médico. Estes dois rapazes irão ajudar a senhora.
Vamos embora? – Não pôde deixar de notar um sorriso sarcástico nos lábios
daquela mocinha; nunca a tinha levado ao médico, não seria agora que iria
fazê-lo; com certeza não era somente ao médico que estavam indo.
A velha tentou firmar-se
na sua cadeira para que não a levassem de casa, mas estava bastante debilitada
e não conseguiria, por mais que tentasse, vencer àqueles dois brutamontes.
Deixou-se levar, resignada, com a certeza de que não voltaria.
Uma
chuva fina caía àquela manhã. A mocinha veio com um guarda-chuva para que Dona
Clara não pegasse um resfriado. Um dos homens a carregava no colo, o outro
levava a sua cadeira; puseram-na no carro com todo o cuidado para que não se
machucassem, com certeza estavam ganhando bem por aquele serviço.
Da janela do carro,
fechada para que ela não pegasse o vento ou recebesse os pinguinhos de chuva,
via toda a cidade que ficava para trás, lembrava-se do seu tempo de moça,
quando pulava carnaval naquelas ruas sem se preocupar com o tempo e as dores
que este lhe traria.
Ela não conseguia mais sentir
raiva da Juliana, nem mesmo daqueles dois rapazes; de certa forma sentia-se feliz,
havia saído daquela casa, daquele quarto, havia saído um pouco de si mesma;
agora podia observar as outras pessoas: Uma criança brincava num parquinho
próximo à escola; na sua época de criança não existiam parquinhos, brincava de
cabra-cega, de esconde-esconde; porta-bandeiras; brincava de nadar no rio, mas
tudo isso depois de terminados os afazeres domésticos; desde pequena ajudava a
mãe a cuidar de casa. Quanta saudade sentia da sua mãe; o pai era carrasco, mas
a mãe era um ouro, nunca havia levantado a mão para lhe bater, dava-lhe apenas
carinho. Aquela criança brincava feliz, sem saber de como seria triste o seu
futuro.
Pararam
de frente uma casa imensa. Na porta, duas mulheres vieram ao seu encontro.
Cumprimentaram-na de uma forma carinhosa, mas mecânica, como se aquilo fosse
apenas uma parte do seu trabalho; carregaram Dona Clara para dentro da casa.
Enquanto levavam-na, não pôde deixar de reparar, ali moravam apenas velhos,
pessoas que não tinham mais serventia para o mundo lá fora e que , por esse
motivo, eram largadas como restos de uma civilização jovem e cheia de vida. Uma
grande tristeza tomou conta de Dona Clara, ela compreendia que aquele asilo era
a sua nova morada.
A
velha passou o resto dia dentro do quarto. Encostada junto à janela, olhava
para o pomar que ficava bem junto da casa e estava repleto de frutas: Mangas,
laranjas, abacates; todas as frutas de que mais gostava quando era jovem.
Ficava a observar aquela tela à sua frente, uma obra de arte da natureza, e
começava a lembrar-se dos seus parentes que sempre a visitavam na velha casa,
nenhum viera vê-la, talvez não soubessem onde ela estava. Agora se sentiria
verdadeiramente solitária, nem mesmo as suas almas viriam lhe fazer uma visita.
Dona
Clara sentia-se cansada. Deixou a cabeça pender para um lado e adormeceu. No
meio do sono sentiu que alguém sacudia o seu ombro; levantou a cabeça e
reconheceu o filho, era mesmo o seu menino que viera lhe visitar. Ele estava
forte e bonito, da mesma forma que ela havia sonhado.
O filho pegou-a pela mão e
pediu que se levantasse, pois tinham que ir, já era tarde. Ela tentou dizer que
não conseguiria, mas, com um gesto, o filho indicou que continuasse em silêncio
e insistiu para que ela se levantasse. Embora espantada, dona Clara se levantou
e, agarrada em suas mãos, foi andando até o pomar bem junto à sua janela.
Lá fora, um lindo cavalo branco a esperava. Ajudada
pelo filho, montou na sua garupa e ambos galoparam para bem longe dali. Bem
distante daquele lugar, Dona Clara ainda ouvia os seus velhos parentes que
pareciam um coral a cantar as velhas canções de ninar.
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