- Catarina nunca
haveria de me compreender.
E enquanto caminhava, à
beira do asfalto, André ia relembrando os tantos anos que havia vivido ao lado
dela. Catarina tinha sido a primeira paixão da sua vida. Filha de um
desembargador, ela crescera passando as férias na Europa, comendo escargot,
andando de iate e frequentando as melhores festas da high Society. Desde
criança, acostumara-se a aparecer nas Colunas Sociais, sempre com o ar de
superioridade e a falsa modéstia que caracterizavam os nobres das grandes
cidades.
André não era de
família rica. Seus pais, no máximo, eram “bem de vida”. Ele nunca havia passado
fome, mas também nunca havia ganhado do pai um autorama ou um videogame de
aniversário. Nas férias, ia ao sítio do avô, onde ficava isolado durante um
mês, andando a cavalo, tomando banho de rio, comendo abóbora com quiabo e carne
de porco. Os pais nunca passavam as
férias na roça. O velho era dono de uma pequena loja de baterias para veículos,
enquanto a mãe trabalhava no fórum, revisando arquivos e enviando cartas. A
mãe, embora tirasse férias ao mesmo tempo em que André, sempre tivera que ficar
com o pai, ajudando na loja, cuidando da casa.
Ele nunca reclamara a
falta dos velhos. Era melhor assim: tinha a liberdade para andar de um lado a
outro sempre que quisesse. Os avós não reclamavam e até incentivavam aquela
vida. O avô dizia que a liberdade e os tocos far-no-iam um homem, enquanto a
avó dizia que criança tinha mesmo era que brincar. Que os pais ficassem na
cidade, ele gostava mesmo era da roça.
Na escola, nunca fora um nerd, embora sempre
passasse com notas consideráveis. Estudava menos do que devia, mas, talvez pela
facilidade em escrever, sempre alcançava as notas que lhe garantissem a
manutenção da bolsa. Os pais não tinham condição de pagar a escola particular
em que estudava, mas, graças a uma prova que fizera ainda nos anos iniciais, já
no último ano, adentrara o sexto ano como bolsista e ia caminhando devagar.
Todos os dias, acordava
às cinco e trinta, banhava-se, vestia-se e, com o cabelo besuntado de gel,
seguia para a escola. Já adolescente, com as barbas começando a crescer, via-se
obrigado a passar a Gilete na cara e ir, feito uma criança, todo engomado, para
junto dos outros mauricinhos. A maioria dos alunos eram filhos de juízes,
desembargadores, políticos e grandes empresários. Apenas dez por cento,
seguindo às novas regras sociais, eram advindos de classes inferiores. Nada
mais justo que estes se unissem contra a maioria.
André havia frequentado
os dois lados da trincheira. De início, andara se enturmando com os bolsistas.
Pelos corredores da escola, era possível vislumbrar um pequeno grupo que se
juntava e começava a tagarelar, em alto e bom som, contra as políticas
vigentes. Em sua maioria, aquele grupo era composto por negros, indígenas e
pobres. O uniforme era doado pela
escola, mas, ainda assim, muitos conseguiam destruí-los. Alguns rasgavam as
calças e andavam sempre com as camisas para fora, amarrotados e com as roupas enxovalhadas.
Ainda havia aqueles que vestiam o uniforme, com a gravata arrumadinha e a
camisa por dentro da calça, mas, só para subverter a ordem, conforme dizia o
diretor, calçavam uma velha alpercata feita com borracha de pneu.
A verdade é que aquele
grupo tinha feito um pacto. A união deles não deveria ser um mero ajuntamento
de classe, mais que isso, eles deveriam ser uma família, ou algo parecido.
Resolveram chamar, então, o grupo de Irmandade; de fato, uma irmandade secreta,
com regras e objetivos certos, a serem cumpridos a seu tempo, como forma de
solidificar os pensamentos em que acreditavam.
E durante muito tempo
André seguiu todos os preceitos da irmandade. As notas nunca poderiam passar
dos setenta e cinco pontos, também não podendo ser menor do que sessenta e
cinco, para que nenhum deles perdesse a bolsa. Assim, era preciso que houvesse
um controle nos estudos e nos distúrbios, mostrando que eram eles quem mandava
no seu próprio destino. A barba, antes sempre raspada, como ordenavam os pais,
agora era deixada por fazer, como sinal de rebeldia e maturidade. E dentre as
tantas regras a serem seguidas, uma satisfazia plenamente os anseios de André: “Todos
somos frutos da terra e, por isso, como ela sempre devemos ser”. Portanto, a
rusticidade deveria prevalecer no âmago daquele grupo.
André era feliz com a
irmandade, as suas regras e as férias na roça. Mas, eis que numa festa de fim
de ano, quando todos os alunos deveriam se confraternizar, Catarina floresceu à
sua frente. É verdade que já a tinha visto muitas vezes pelos corredores da
escola. Era aluna do primeiro ano azul, enquanto ele era do verde. Nunca haviam
conversado, apenas respiravam o mesmo ar, independentes um do outro.
Ele estava encostado na
parede, coçando a barba, conversando com dois colegas. Alguns alunos dançavam
no salão, enquanto algumas meninas conversavam assentadas no sofá e uns
professores tomavam ponche à beira da janela. A festa não tinha graça alguma,
mas todos tinham que estar ali, sob a ameaça de não passarem de ano. Ele não tinha
reparado quando ela aproximou, mas com um sorriso aberto e solícito, com a voz
firme, Catarina convocou:
- Vamos dançar!
Por um tempo, meio
estupefato, André não soube o que dizer. Quando ia negar, ela já o puxava pelo
braço. Dançaram durante um bom tempo sem que qualquer palavra fosse dita;
depois, como que num sobressalto, Catarina parou de dançar e, antes de se
afastar, cochichou no seu ouvido:
- Estou te esperando no
jardim.
André e Catarina
namoraram durante seis anos e meio. A Irmandade tinha sido deixada de lado e,
embora os amigos sempre reclamassem a sua falta, preferia ficar junto da amada.
Deixara de ir ao sítio nas férias e até mesmo o gosto da abóbora já não sabia
mais qual era. Aparecia nas Colunas Sociais junto de Catarina, mas, nunca de
mãos dadas, sempre a um passo atrás, como se fosse um passante que estivesse
por ali na hora da fotografia. Sempre frequentava a casa dos sogros, mas nunca
era convidado para as reuniões de família.
Ele não se sentia excluído
ou inferiorizado por isso. Até entendia os motivos daquela família: Ele não era
da Alta Sociedade e, por isso, deveria saber o seu lugar. Contrariamente,
agradecia sempre ao sogro pela ajudava que lhe havia dado, afinal de contas,
fora uma indicação sua que o permitira um estágio remunerado num dos maiores
escritórios de advocacia do estado. Se havia se formado em Direito, devia ao
sogro e sua influência.
Catarina também se
formara em direito e, graças ao pai, já estava convocada para trabalhar na
Noruega, no consulado brasileiro, como adjunta, já com as pretensas
oportunidades para que, logo, galgasse ao posto máximo da diplomacia
internacional. Ele ainda não sabia bem o que faria, talvez estudasse para
promotor ou juiz, quiçá, montasse o seu próprio escritório de advocacia. Se bem
que, bem no fundo de sua alma, uma centelha ainda nutria a vontade de voltar ao
sítio.
O convite de casamento
viera faltando apenas seis meses para a viagem de Catarina, num jantar em
família, enquanto o sogro abria o vinho chileno, que havia anos descansava na
adega:
- André, meu querido.
Faz tempo que namoramos e acho que já é tempo de nos casarmos. Estive conversando
com o papai e acho que é plausível fazermos a cerimônia daqui a seis meses.
Casamos num dia e no outro viajamos à Noruega. O que acha?
Ele pensara em negar.
Lembrara-se da Irmandade, do sítio e dos avós. Aquela seria a oportunidade de
realizar o sonho dos seus pais. Seria alguém na vida, embora sempre à sombra da
sua esposa. Teria o amor que Catarina tanto sentia e sempre lhe demonstrava,
mas, ainda assim, seria sempre o menino solitário, querendo andar a cavalo e
tomar banho de rio. Resignou-se e aceitou as ordens de Catarina. Marcaram,
enfim, o casamento.
Os seis meses passaram
rápido. A notícia da cerimônia estava estampada nos jornais e vários colunistas
afirmavam ser aquele o casamento do mês, a maior realização pessoal na vida da
filha do desembargador, que, em breve, haveria de ser uma influente consulesa.
Alguns ainda diziam que aquela também seria a virada na vida de André, um
plebeu que tirava a sorte grande, ao se casar com uma mulher bonita,
inteligente e rica. Ele lia tudo aquilo em silencio, mas, seus olhos
demonstravam toda a sua insatisfação.
O casamento haveria de
acontecer no sábado à tarde. Durante a semana, os noivos ficaram isolados,
Catarina numa clínica particular, descansando, cuidando da beleza, fazendo os
planos para o futuro de ambos. André não quisera ir para o hotel sugerido pelo
sogro. Durante toda a semana ficara em casa, trancafiado no seu quarto. Não
quisera falar com os pais, falar ao telefone ou ler jornais e revistas. Durante
todos os dias, o som permanecia ligado todo o tempo, sempre tocando música
caipira, reavivando as lembranças dos velhos tempos.
No dia do casamento,
ainda de madrugada, André olhara-se no espelho. Fazia uma semana que não se
barbeava. A barba estava grande e já com alguns brancos. A roupa, há muito não
trocada, estava enxovalhada e amassada. O cabelo estava emaranhado e precisando
de uma boa lavada. Não tinha como fugir daquelas lembranças; a sua imagem no
espelho fazia-o relembrar da Irmandade e dos tempos no sítio. E junto das
lembranças, viera também a recordação de que no dia em que criaram o grupo,
numa das tantas regras propostas, prometeram todos, independente do que acontecesse,
reunirem-se novamente, a fim de garantir a fidelidade do grupo.
É bem verdade que já
não se achava no direito de frequentar a Irmandade. Mas, como na Parábola do
Filho Pródigo, haveria de ser ainda recebido pelos seus irmãos. Depois, haveria
de seguir para o sítio. Os pais não entenderiam, assim como nunca o tentaram
entender, mas, embora ele amasse Catarina, aquela não era a sua vida. Sempre
fora um membro da Irmandade, embora corrompido pelo amor, e a roça era a sua
liberdade. Queria, de novo, tomar banho de rio, andar a cavalo, comer abóbora
com quiabo e carne de porco.
Antes que os pais
acordassem, André pegou a sua mochila e saiu porta à fora. A reunião da
Irmandade aconteceria no sítio dos seus avós. Os velhos já não existiam e os
pais há tempos não o frequentavam. Chegaria ainda durante o dia, arrumaria tudo
e esperaria pelo resto do grupo. Depois haveria de ficar por lá, solitário,
liberto de tudo aquilo, como se fosse um rústico de verdade, um fruto da terra
que como ela deveria ser. E, enquanto caminhava à beira do asfalto, repetia:
- Catarina nunca
haveria de me compreender.
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