sábado, 29 de julho de 2017

O RUSTICÃO



- Catarina nunca haveria de me compreender.

E enquanto caminhava, à beira do asfalto, André ia relembrando os tantos anos que havia vivido ao lado dela. Catarina tinha sido a primeira paixão da sua vida. Filha de um desembargador, ela crescera passando as férias na Europa, comendo escargot, andando de iate e frequentando as melhores festas da high Society. Desde criança, acostumara-se a aparecer nas Colunas Sociais, sempre com o ar de superioridade e a falsa modéstia que caracterizavam os nobres das grandes cidades.

André não era de família rica. Seus pais, no máximo, eram “bem de vida”. Ele nunca havia passado fome, mas também nunca havia ganhado do pai um autorama ou um videogame de aniversário. Nas férias, ia ao sítio do avô, onde ficava isolado durante um mês, andando a cavalo, tomando banho de rio, comendo abóbora com quiabo e carne de porco.  Os pais nunca passavam as férias na roça. O velho era dono de uma pequena loja de baterias para veículos, enquanto a mãe trabalhava no fórum, revisando arquivos e enviando cartas. A mãe, embora tirasse férias ao mesmo tempo em que André, sempre tivera que ficar com o pai, ajudando na loja, cuidando da casa.

Ele nunca reclamara a falta dos velhos. Era melhor assim: tinha a liberdade para andar de um lado a outro sempre que quisesse. Os avós não reclamavam e até incentivavam aquela vida. O avô dizia que a liberdade e os tocos far-no-iam um homem, enquanto a avó dizia que criança tinha mesmo era que brincar. Que os pais ficassem na cidade, ele gostava mesmo era da roça.

 Na escola, nunca fora um nerd, embora sempre passasse com notas consideráveis. Estudava menos do que devia, mas, talvez pela facilidade em escrever, sempre alcançava as notas que lhe garantissem a manutenção da bolsa. Os pais não tinham condição de pagar a escola particular em que estudava, mas, graças a uma prova que fizera ainda nos anos iniciais, já no último ano, adentrara o sexto ano como bolsista e ia caminhando devagar.

Todos os dias, acordava às cinco e trinta, banhava-se, vestia-se e, com o cabelo besuntado de gel, seguia para a escola. Já adolescente, com as barbas começando a crescer, via-se obrigado a passar a Gilete na cara e ir, feito uma criança, todo engomado, para junto dos outros mauricinhos. A maioria dos alunos eram filhos de juízes, desembargadores, políticos e grandes empresários. Apenas dez por cento, seguindo às novas regras sociais, eram advindos de classes inferiores. Nada mais justo que estes se unissem contra a maioria.

André havia frequentado os dois lados da trincheira. De início, andara se enturmando com os bolsistas. Pelos corredores da escola, era possível vislumbrar um pequeno grupo que se juntava e começava a tagarelar, em alto e bom som, contra as políticas vigentes. Em sua maioria, aquele grupo era composto por negros, indígenas e pobres.  O uniforme era doado pela escola, mas, ainda assim, muitos conseguiam destruí-los. Alguns rasgavam as calças e andavam sempre com as camisas para fora, amarrotados e com as roupas enxovalhadas. Ainda havia aqueles que vestiam o uniforme, com a gravata arrumadinha e a camisa por dentro da calça, mas, só para subverter a ordem, conforme dizia o diretor, calçavam uma velha alpercata feita com borracha de pneu.

A verdade é que aquele grupo tinha feito um pacto. A união deles não deveria ser um mero ajuntamento de classe, mais que isso, eles deveriam ser uma família, ou algo parecido. Resolveram chamar, então, o grupo de Irmandade; de fato, uma irmandade secreta, com regras e objetivos certos, a serem cumpridos a seu tempo, como forma de solidificar os pensamentos em que acreditavam.

E durante muito tempo André seguiu todos os preceitos da irmandade. As notas nunca poderiam passar dos setenta e cinco pontos, também não podendo ser menor do que sessenta e cinco, para que nenhum deles perdesse a bolsa. Assim, era preciso que houvesse um controle nos estudos e nos distúrbios, mostrando que eram eles quem mandava no seu próprio destino. A barba, antes sempre raspada, como ordenavam os pais, agora era deixada por fazer, como sinal de rebeldia e maturidade. E dentre as tantas regras a serem seguidas, uma satisfazia plenamente os anseios de André: “Todos somos frutos da terra e, por isso, como ela sempre devemos ser”. Portanto, a rusticidade deveria prevalecer no âmago daquele grupo.

André era feliz com a irmandade, as suas regras e as férias na roça. Mas, eis que numa festa de fim de ano, quando todos os alunos deveriam se confraternizar, Catarina floresceu à sua frente. É verdade que já a tinha visto muitas vezes pelos corredores da escola. Era aluna do primeiro ano azul, enquanto ele era do verde. Nunca haviam conversado, apenas respiravam o mesmo ar, independentes um do outro.

Ele estava encostado na parede, coçando a barba, conversando com dois colegas. Alguns alunos dançavam no salão, enquanto algumas meninas conversavam assentadas no sofá e uns professores tomavam ponche à beira da janela. A festa não tinha graça alguma, mas todos tinham que estar ali, sob a ameaça de não passarem de ano. Ele não tinha reparado quando ela aproximou, mas com um sorriso aberto e solícito, com a voz firme, Catarina convocou:

- Vamos dançar!

Por um tempo, meio estupefato, André não soube o que dizer. Quando ia negar, ela já o puxava pelo braço. Dançaram durante um bom tempo sem que qualquer palavra fosse dita; depois, como que num sobressalto, Catarina parou de dançar e, antes de se afastar, cochichou no seu ouvido:

- Estou te esperando no jardim.

André e Catarina namoraram durante seis anos e meio. A Irmandade tinha sido deixada de lado e, embora os amigos sempre reclamassem a sua falta, preferia ficar junto da amada. Deixara de ir ao sítio nas férias e até mesmo o gosto da abóbora já não sabia mais qual era. Aparecia nas Colunas Sociais junto de Catarina, mas, nunca de mãos dadas, sempre a um passo atrás, como se fosse um passante que estivesse por ali na hora da fotografia. Sempre frequentava a casa dos sogros, mas nunca era convidado para as reuniões de família.

Ele não se sentia excluído ou inferiorizado por isso. Até entendia os motivos daquela família: Ele não era da Alta Sociedade e, por isso, deveria saber o seu lugar. Contrariamente, agradecia sempre ao sogro pela ajudava que lhe havia dado, afinal de contas, fora uma indicação sua que o permitira um estágio remunerado num dos maiores escritórios de advocacia do estado. Se havia se formado em Direito, devia ao sogro e sua influência.

Catarina também se formara em direito e, graças ao pai, já estava convocada para trabalhar na Noruega, no consulado brasileiro, como adjunta, já com as pretensas oportunidades para que, logo, galgasse ao posto máximo da diplomacia internacional. Ele ainda não sabia bem o que faria, talvez estudasse para promotor ou juiz, quiçá, montasse o seu próprio escritório de advocacia. Se bem que, bem no fundo de sua alma, uma centelha ainda nutria a vontade de voltar ao sítio.

O convite de casamento viera faltando apenas seis meses para a viagem de Catarina, num jantar em família, enquanto o sogro abria o vinho chileno, que havia anos descansava na adega:

- André, meu querido. Faz tempo que namoramos e acho que já é tempo de nos casarmos. Estive conversando com o papai e acho que é plausível fazermos a cerimônia daqui a seis meses. Casamos num dia e no outro viajamos à Noruega. O que acha?

Ele pensara em negar. Lembrara-se da Irmandade, do sítio e dos avós. Aquela seria a oportunidade de realizar o sonho dos seus pais. Seria alguém na vida, embora sempre à sombra da sua esposa. Teria o amor que Catarina tanto sentia e sempre lhe demonstrava, mas, ainda assim, seria sempre o menino solitário, querendo andar a cavalo e tomar banho de rio. Resignou-se e aceitou as ordens de Catarina. Marcaram, enfim, o casamento.

Os seis meses passaram rápido. A notícia da cerimônia estava estampada nos jornais e vários colunistas afirmavam ser aquele o casamento do mês, a maior realização pessoal na vida da filha do desembargador, que, em breve, haveria de ser uma influente consulesa. Alguns ainda diziam que aquela também seria a virada na vida de André, um plebeu que tirava a sorte grande, ao se casar com uma mulher bonita, inteligente e rica. Ele lia tudo aquilo em silencio, mas, seus olhos demonstravam toda a sua insatisfação.

O casamento haveria de acontecer no sábado à tarde. Durante a semana, os noivos ficaram isolados, Catarina numa clínica particular, descansando, cuidando da beleza, fazendo os planos para o futuro de ambos. André não quisera ir para o hotel sugerido pelo sogro. Durante toda a semana ficara em casa, trancafiado no seu quarto. Não quisera falar com os pais, falar ao telefone ou ler jornais e revistas. Durante todos os dias, o som permanecia ligado todo o tempo, sempre tocando música caipira, reavivando as lembranças dos velhos tempos.

No dia do casamento, ainda de madrugada, André olhara-se no espelho. Fazia uma semana que não se barbeava. A barba estava grande e já com alguns brancos. A roupa, há muito não trocada, estava enxovalhada e amassada. O cabelo estava emaranhado e precisando de uma boa lavada. Não tinha como fugir daquelas lembranças; a sua imagem no espelho fazia-o relembrar da Irmandade e dos tempos no sítio. E junto das lembranças, viera também a recordação de que no dia em que criaram o grupo, numa das tantas regras propostas, prometeram todos, independente do que acontecesse, reunirem-se novamente, a fim de garantir a fidelidade do grupo.

É bem verdade que já não se achava no direito de frequentar a Irmandade. Mas, como na Parábola do Filho Pródigo, haveria de ser ainda recebido pelos seus irmãos. Depois, haveria de seguir para o sítio. Os pais não entenderiam, assim como nunca o tentaram entender, mas, embora ele amasse Catarina, aquela não era a sua vida. Sempre fora um membro da Irmandade, embora corrompido pelo amor, e a roça era a sua liberdade. Queria, de novo, tomar banho de rio, andar a cavalo, comer abóbora com quiabo e carne de porco.

Antes que os pais acordassem, André pegou a sua mochila e saiu porta à fora. A reunião da Irmandade aconteceria no sítio dos seus avós. Os velhos já não existiam e os pais há tempos não o frequentavam. Chegaria ainda durante o dia, arrumaria tudo e esperaria pelo resto do grupo. Depois haveria de ficar por lá, solitário, liberto de tudo aquilo, como se fosse um rústico de verdade, um fruto da terra que como ela deveria ser. E, enquanto caminhava à beira do asfalto, repetia:

- Catarina nunca haveria de me compreender.

   
    

   

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