quinta-feira, 26 de outubro de 2017

SANHARÓ

A parede era rasgada por uma grande rachadura, quase como o rasgo de um pedaço de papel. Um pau fazia as vezes de escora, até que ela pudesse refazer aquele lado. Uma tarefa difícil, pois era ainda uma casa de adobe e somente ela poderia consertar, afinal, os meninos não teriam tempo para isso, estavam sempre no mato, cortando lenha, enchendo e esvaziando os fornos.

O rio barulhava no quintal, como se quisesse dizer alguma coisa. Mas ela não tinha tempo para ouvi-lo. Não àquela hora. Ainda tinha que bater a massa para a mistura, preparar o almoço, lavar as roupas, carpir os matos do terreiro. Os cachorros corriam de um lado para outro, brincando com um Jacu, que, do nada, aparecera. Ao longe, uma nuvem de chuva caminhava lentamente. De certo, choveria, depois de muitas luas. As plantas agradeceriam.

Enquanto a massa descansava e o arroz secava a água no fogão à lenha, assentava junto à porta e ficava a observar o tempo. Algumas lembranças vinham e uma lágrima, timidamente, escorria pelo rosto. Mas não tinha tempo para as lembranças. Levantava-se e punha a água para a vaquinha, que lambia o bezerro no curral, bem junto da casa, como que num puxadinho.

Tinha que passar a vassoura na casa, jogar uma água para abaixar a poeira. As crianças não tardariam a chegar em férias. Será que os biscoitos seriam suficientes? Melhor seria garantir mais uma sacada de pães de queijo! Alguns macaquinhos saltavam nas copas das árvores, enquanto as nuvens já se achegavam sobre a casa. O rio barulhava no quintal, parecia brincar de um lado para outro, alegrava-se com a chuva, aprazia-se em vê-la andando de um lado para outro. Alegrava-se deveras.


Os tempos passaram. As chuvas já não caem como outrora. Ela já anda de um lado para outro, descansa apenas. A velha casa já não existe, o rio, dantes alegre e brincalhão, silenciou-se quase por completo. Os meninos já não vivem mais no mato, alguns se foram, viraram lembranças carinhosas. As crianças cresceram, enquanto o Sanharó já não é mais nem um quadro na parede: Apenas um rasgo na alma.

Um comentário:

  1. Paródia da nossa realidade: todos vemos sanharós por todo lado e o cheiro da chuva que não chega neste ano que envelhece todo dia. Parabéns pelo texto. Pena que o livro já não está mais disponível.

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