O Arnaldo é uma
lembrança sobre quem não gostamos de lembrar, mas que a todo tempo nos assola.
De vez em quando, vejo a minha sua esposa choramingando pelos cantos. Ela nunca
me diz qualquer palavra sobre o marido, mas, sinto que a tristeza, ou algum
sentimento obscuro, por vezes, toma a sua alma. E eu a entendo. Também eu sinto
saudades do amigo.
Nesta manhã, enquanto
tomava o meu café com pães de queijo, requeijão e alguns pedaços de bolo de
fubá, observando as vacas que pastavam e os pássaros que cantavam na mangueira
bem de frente a minha casa, eis que a lembrança do amigo me viera à mente.
Senti que ele assentava-se ao meu lado, talvez querendo um trago de cachaça,
como sempre tomávamos em quando vinha à minha casa. Meus olhos quase
lacrimejaram e, por precaução, tratei de segurar firme o revólver que trazia debaixo
do blusão.
É verdade que sinto
falta do amigo, das nossas conversas, das discussões filosóficas e dos tragos
de pinga, mas, e se tudo isso não fosse apenas a saudade trazendo as velhas
recordações?! Ouvi, certa feita, pelos lados de Ibiaí, da boca de uma
rezadeira, que somos capazes de sentir a presença de um inimigo, quando ele se
aproxima, assim como também sentimos a presença da morte, assim que ela nos
bate à porta.
O Arnaldo nunca fora um
inimigo meu, mas, ninguém conhece o coração alheio. Ademais, entre o saber se
vive ou se está morto, o melhor é ficar precavido. Espero ainda a vinda do
amigo. Que venha num dia de chuva, quando eu tomar o meu café da manhã, e
beberemos juntos, faremos uma “boca de pito” e colocaremos em dia todas as
prosas que deixamos de versar durante todo este tempo.
Por enquanto, tenho
rareado as minhas idas ao Pitinha. Quando a ida se torna inadiável, procuro
alternar os caminhos e as horas de transitar. Faz tempo que não paro à beira da
lagoa para sentir o vento que mais parece beijar a face dos transeuntes,
enquanto brinca com as águas cristalinas, formando pequenas ondas que passeiam
de um lado para outro. Também não me assento mais nos bancos da praça nas
manhãs de domingo, quando a feirinha ainda dá os seus suspiros matinais.
Por estes dias, um
compadre veio me falar dos bancos da praça, que davam um ar de modernidade ao
lugar, enquanto a feirinha continuava com a sua tradicional cara de domingo
interiorano, como deveriam ser todas as feirinhas, na visão do pobre homem. Eu não
quisera render conversa e, antes que houvesse mais delongas, desculpei-me por
algum mentiroso compromisso e fi-lo partir dali. Depois, lembrei-me do Arnaldo
e deduzi todo o seu pensamento sobre os tais bancos.
Era comum que o meu
amigo chegasse sempre cabisbaixo, segurando a mão da sua esposa. Ela vinha de
cabeça erguida, caminhando sobre o quintal gramado como se desfilasse por uma
passarela, os cabelos dançando de um lado a outro, enquanto os seios pareciam
querer saltar de dentro da blusa e a saia querer subir pela cintura.
Assentavam-se, ambos, à minha frente e, enquanto ela ajeitava-se, cruzando as
pernas de um lado para outro, ele começava a falar sobre os vários assuntos de
que ouvira na cidade.
A verdade é que eu sempre
teimava em não concordar com o amigo, embora sempre soubesse, secretamente,
que, em toda a sua simplicidade, ele sempre estivesse com a razão. A esposa não
dizia nada, apenas sorria timidamente, com seus olhos de ressaca, enquanto eu
vislumbrava toda a sua beleza ao lado daquele mísero sujeito. E ele falava
sobre a falta de chuva, sobre os políticos, as politicagens e as politicalhas,
até que chegássemos às pequenas coisas e às insignificâncias do lugar.
Certamente que o
Arnaldo teria um parecer sobre os banquinhos, sobre o qual discorreria após
pedir desculpas pela ousadia da palavra. Antes ainda, beberia mais uma talagada
de cachaça, tiraria o pigarro da garganta, fumaria uma puxada do cigarro de
palha e concluiria que “se fosse para modernizar que se modernizasse tudo”. O
mais incrível do meu velho amigo é que com ele ou era oito ou oitenta. Talvez
por isso nunca fora capaz de tomar qualquer decisão na vida, de dar qualquer
opinião em meio às grandes autoridades, de seguir qualquer caminho por suas próprias
pernas.
O Arnaldo era um
sujeito inteligente, embora fosse rude e sempre trouxesse consigo um ar de inferioridade
que, muitas vezes, não me causavam pena, mas, repulsa daquele homem. Eu gostava
do amigo, embora às vezes tivesse raiva dele. Parece estranho, mas era um
sentimento dúbio, que fazia com que eu esperasse a sua chegada, junto da sua
esposa e as suas filosofias catrumanas.
Algumas vezes fui à
casa do amigo, procurando por vestígios seus. Não tenho encontrado nada que
valha a pena; mas também não tenho encontrado nada que comprove a sua morte.
Por isso, tenho me precavido e andado menos pela cidade ou pelos matos. Prefiro
ficar em casa com a sua minha esposa, tomando as minhas cachaças, fumando o meu
roleiro, enquanto ela prepara o café da tarde, com broa e beiju. Mas as
lembranças do amigo Arnaldo ainda teimam em ficar.
Eita confrade, deu-me vontade de participar, tenho um amigo Arnaldo na minha fileira de compadres...
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