sábado, 5 de agosto de 2017

AS LEMBRANÇAS DO POBRE ARNALDO

O Arnaldo é uma lembrança sobre quem não gostamos de lembrar, mas que a todo tempo nos assola. De vez em quando, vejo a minha sua esposa choramingando pelos cantos. Ela nunca me diz qualquer palavra sobre o marido, mas, sinto que a tristeza, ou algum sentimento obscuro, por vezes, toma a sua alma. E eu a entendo. Também eu sinto saudades do amigo.

Nesta manhã, enquanto tomava o meu café com pães de queijo, requeijão e alguns pedaços de bolo de fubá, observando as vacas que pastavam e os pássaros que cantavam na mangueira bem de frente a minha casa, eis que a lembrança do amigo me viera à mente. Senti que ele assentava-se ao meu lado, talvez querendo um trago de cachaça, como sempre tomávamos em quando vinha à minha casa. Meus olhos quase lacrimejaram e, por precaução, tratei de segurar firme o revólver que trazia debaixo do blusão.

É verdade que sinto falta do amigo, das nossas conversas, das discussões filosóficas e dos tragos de pinga, mas, e se tudo isso não fosse apenas a saudade trazendo as velhas recordações?! Ouvi, certa feita, pelos lados de Ibiaí, da boca de uma rezadeira, que somos capazes de sentir a presença de um inimigo, quando ele se aproxima, assim como também sentimos a presença da morte, assim que ela nos bate à porta.

O Arnaldo nunca fora um inimigo meu, mas, ninguém conhece o coração alheio. Ademais, entre o saber se vive ou se está morto, o melhor é ficar precavido. Espero ainda a vinda do amigo. Que venha num dia de chuva, quando eu tomar o meu café da manhã, e beberemos juntos, faremos uma “boca de pito” e colocaremos em dia todas as prosas que deixamos de versar durante todo este tempo.

Por enquanto, tenho rareado as minhas idas ao Pitinha. Quando a ida se torna inadiável, procuro alternar os caminhos e as horas de transitar. Faz tempo que não paro à beira da lagoa para sentir o vento que mais parece beijar a face dos transeuntes, enquanto brinca com as águas cristalinas, formando pequenas ondas que passeiam de um lado para outro. Também não me assento mais nos bancos da praça nas manhãs de domingo, quando a feirinha ainda dá os seus suspiros matinais.

Por estes dias, um compadre veio me falar dos bancos da praça, que davam um ar de modernidade ao lugar, enquanto a feirinha continuava com a sua tradicional cara de domingo interiorano, como deveriam ser todas as feirinhas, na visão do pobre homem. Eu não quisera render conversa e, antes que houvesse mais delongas, desculpei-me por algum mentiroso compromisso e fi-lo partir dali. Depois, lembrei-me do Arnaldo e deduzi todo o seu pensamento sobre os tais bancos.

Era comum que o meu amigo chegasse sempre cabisbaixo, segurando a mão da sua esposa. Ela vinha de cabeça erguida, caminhando sobre o quintal gramado como se desfilasse por uma passarela, os cabelos dançando de um lado a outro, enquanto os seios pareciam querer saltar de dentro da blusa e a saia querer subir pela cintura. Assentavam-se, ambos, à minha frente e, enquanto ela ajeitava-se, cruzando as pernas de um lado para outro, ele começava a falar sobre os vários assuntos de que ouvira na cidade.

A verdade é que eu sempre teimava em não concordar com o amigo, embora sempre soubesse, secretamente, que, em toda a sua simplicidade, ele sempre estivesse com a razão. A esposa não dizia nada, apenas sorria timidamente, com seus olhos de ressaca, enquanto eu vislumbrava toda a sua beleza ao lado daquele mísero sujeito. E ele falava sobre a falta de chuva, sobre os políticos, as politicagens e as politicalhas, até que chegássemos às pequenas coisas e às insignificâncias do lugar.

Certamente que o Arnaldo teria um parecer sobre os banquinhos, sobre o qual discorreria após pedir desculpas pela ousadia da palavra. Antes ainda, beberia mais uma talagada de cachaça, tiraria o pigarro da garganta, fumaria uma puxada do cigarro de palha e concluiria que “se fosse para modernizar que se modernizasse tudo”. O mais incrível do meu velho amigo é que com ele ou era oito ou oitenta. Talvez por isso nunca fora capaz de tomar qualquer decisão na vida, de dar qualquer opinião em meio às grandes autoridades, de seguir qualquer caminho por suas próprias pernas.

O Arnaldo era um sujeito inteligente, embora fosse rude e sempre trouxesse consigo um ar de inferioridade que, muitas vezes, não me causavam pena, mas, repulsa daquele homem. Eu gostava do amigo, embora às vezes tivesse raiva dele. Parece estranho, mas era um sentimento dúbio, que fazia com que eu esperasse a sua chegada, junto da sua esposa e as suas filosofias catrumanas.


Algumas vezes fui à casa do amigo, procurando por vestígios seus. Não tenho encontrado nada que valha a pena; mas também não tenho encontrado nada que comprove a sua morte. Por isso, tenho me precavido e andado menos pela cidade ou pelos matos. Prefiro ficar em casa com a sua minha esposa, tomando as minhas cachaças, fumando o meu roleiro, enquanto ela prepara o café da tarde, com broa e beiju. Mas as lembranças do amigo Arnaldo ainda teimam em ficar.

Um comentário:

  1. Eita confrade, deu-me vontade de participar, tenho um amigo Arnaldo na minha fileira de compadres...

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