PAPÉIS BRONZEADOS
O tempo passava depressa. Quase hora do almoço e a encomenda ainda não havia chegado. Camila começava a se preocupar; se não chegasse até às onze perderia o emprego. Chefe chato é um saco, tudo isso por causa de um engano. Se imaginasse que uma simples viagem fosse causar todo aquele problemão, não teria aceitado aquela droga de passagem. Já não estava nem aí pra nada, que se fodesse todo mundo.
Na verdade estava bastante preocupada. Era segunda-feira, o chefe chegaria apenas ao meio-dia. Ela e alguns amigos foram passar o final-de-semana na praia, um pequeno descanso para o corpo e para a sua mente. O convite feito à última hora nem deu tempo a um pouco de reflexão. Foi apenas o tempo de ir até a casa, arrumar as malas, tomar um banho e seguir para o aeroporto. Que cabeça mais amalucada a dela: ao fazer as malas, ainda com os papéis do escritório sobre a cama, pegou tudo o que encontrou pela frente e jogou dentro, inclusive a danada da papelada. Uma tremenda de uma caceteação. Na praia, bebida e diversão; diversão e muita bebida, esqueceu da mala, e os papéis ficaram juntos.
A primeira reação ao chegar em casa foi o desespero. Depois, uma pausa para pensar e veio a solução: o jeito era ligar para o hotel e pedir ao gerente que remetesse os danados via Sedex, que ele não se preocupasse com os gastos, tudo ficaria por sua conte (Que merda!). A propaganda ainda diz que a encomenda chega até as dez horas do outro dia; já eram dez e meia de uma segunda-feira fatídica. Doze anos naquele emprego; agora seria despedida por causa de uma papelada vagabunda!Não. Não seria. Não entregaria os pontos desta maneira.
Ligou para o hotel. Estava alterada, quase que espancava o pobre gerente pelo telefone. Ele havia mandado os papéis ainda no domingo à noite, já era para terem chegado ao escritório. Ligou para os Correios; uma eternidade para lhe atenderem. Enquanto não era atendida treinava algumas palavras cabeludas para oferecer àquele povinho vagabundo; Não era muito difícil lembrar, xingava mais de oito horas por dia, era uma expert no assunto. Uma mocinha muito educada lhe atendeu; pediu desculpas pela demora e prontificou-se a resolver qualquer que fosse o problema. Camila viu-se desarmada; não tinha coragem de dizer os palavrões que havia treinado a aquela menina tão educada. Sabia que ela era treinada para tratar aos clientes daquela forma, afinal também era uma secretária (Há mais de doze anos), mas parecia uma mocinha do outro lado; começou a imaginar a sua interlocutora: uma mocinha de uns dezoito anos, recém-chegada de alguma cidadezinha do interior, costumeiramente assediada pelo seu superior sem querer, ou poder delatá-lo, tinha que ganhar tempo no serviço. Um servicinho de merda! A moça disse que o Sedex já não estava na agência, com certeza já tinha sido levado para o escritório; talvez estivesse preso no trânsito, mas não se preocupasse, pois logo chegaria. Estava bastante nervosa, mas se conteve , agradeceu e desligou o telefone.
Sentia uma raiva tremenda. Não gostava daquele serviço, mas era tudo o que seus estudos lhe permitiam, tinha apenas o ensino médio; fizera um cursinho de inglês e algumas horas de um cursinho básico de informática; nada de importante para quem quisesse um emprego melhor. Sentia raiva de si mesma. Agora que as coisas se complicavam para o seu lado, tinha raiva de sua paralisia; nunca havia se preocupado com o desemprego, nunca quisera fazer um cursinho diferente, modernizar-se, inteirar-se com o mundo e suas evoluções. Era uma ultrapassada.
Já eram onze e meia da manhã e nada da papelada chegar. Pensou em deixar o escritório sozinho e correr atrás do papel; não sabia por onde ele deveria passar e, além do mais a cidade é imensa. Desistiu logo dessa idéia maluca. Deitou a cabeça sobre a mesa, sentia-se desconsolada; não sabia de que os papéis se tratavam, mas deviam ser coisas importantes para o chefe. Tinha certeza, restavam-lhe apenas mais meia-hora de serviço, após o meio-dia seria mais uma desempregada a inflamar as filas do Sine. Vida de cão! Por que não ter estudado mais um pouco, ter feito uma faculdade qualquer, existem tantas por aí, bastava pagar e teria um diploma em mãos. Não precisava tanto, bastava ter um pouco mais de juízo, cabeça oca! Tinha que ter olhado o que estava jogando na mala; por causa de um final-de-semana besta e uma cabeça de vento perdia doze anos de emprego, e o que é pior, por justa causa, sem direito a qualquer indenização.
Camila começou a sentir-se desesperada. Não sabia o que fazer; não conseguia pensar em forma alguma de se livrar daquela fria em que se metera. Estava perdida, de que forma iria explicar para os pais que havia sido demitida? Como iria ajudá-los nas despesas de casa? Logo agora que o pai fazia planos para comprar um carro novo. Ficariam decepcionados. Que bela filha que tinham! Uma ingrata. Tantos anos de luta para sustentá-la e ela fazia aquela besteira, tudo por um final-de-semana na praia. Uma merda!
A cabeça da secretária começou a rodar. Sentia-se zonza, tinha vontade de vomitar, derrubar tudo o que estava sobre a sua mesa de trabalho, chutar tudo o que encontrasse pela frente. Estava quase enlouquecendo. O escritório ficava no quinto andar de um prédio comercial no centro da cidade, a rua àquela hora estava bastante movimentada: carros buzinando; pessoas gritando, indo para casa almoçar ou voltando para o serviço; motoqueiros ziguezagueando em meio a toda aquela confusão, uma bagunça infernal. A cabeça de Camila doía. Ela sentia febre, começava a delirar, via o chefe preenchendo a sua carta de demissão, uma menina ao telefone avisando que sua papelada já havia saído da agência dos Correios, uma grande onda vindo em sua direção. Olhou para o relógio: meio-dia em ponto. O elevador estava subindo, podia ouvir o barulho, com certeza era o chefe que chegava para o trabalho. Estava na hora de ser despedida. A cabeça doía, continuava delirando: veio uma onda maior em sua direção; ela tentou correr, mas foi engolida pela onda, sentia o seu corpo sendo levada pela água, era uma sensação de leveza, quase um êxtase; o corpo parecia flutuar pelo ar; a cabeça ainda doía, mas era uma dor prazerosa que quase a levava ao gozo. De repente um bate forte, surdo, era como se a onda a tivesse jogado na praia. As pessoas olhavam para ela com uma cara assustada, mas estava tudo bem, não sentia o corpo doendo, apenas uma dormência tomava conta de si. A areia da praia parecia estar com uma cor avermelhada, como se estivesse suja de sangue, devia ser o sol forte do litoral que a deixava com aquela coloração. Olhou para o céu, estava um dia bonito. Do alto de um prédio um homem gritava desesperado, era seu chefe e estava com uma papelada nas mãos. Camila ainda tentou dizer a ele que estava tudo bem, que os papéis já estavam chegando , brincando ainda tentou dizer que deviam estar todos queimadinhos de sol. Não conseguiu dizer qualquer palavra; sentia-se bastante cansada. Fechou os olhos e adormeceu.
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