terça-feira, 20 de dezembro de 2022

GRITOS

 

No interior, desde há muito, o povo grita. E não é como forma de protesto, nem para brigar ou se fazer ouvir. O povo grita historicamente, culturalmente, comumente. Se por aqui passasse João Cabral de Melo Neto, o poeta engenheiro haveria de dizer que os gritos interioranos tecem a manhã, pois, um a um, eles se juntam, para, em uníssono, despertar o sertanejo.

 

Lembro-me de quando ainda era adolescente, perambulando pelas ruas de pedras em Lagoa dos Patos. O silêncio daquela manhã de domingo era cortado pelo canto dos pássaros que despertavam nas copas das árvores cuidadosamente podadas em círculos pelos jardineiros locais. As pessoas, muitas delas, ainda dormiam e um ou outro desavisado descia à padaria para comprar pão ou seguia para alguma fazenda, buscar o leite das crianças.

 

Dobrando uma esquina em alta velocidade, de repente, surgia um “Ôôôôuu! ”, que era rapidamente respondido por outro “Ihuuuu” e depois um “Iiiuuu” e um monte de outras onomatopeias que se multiplicavam vindas das diferentes poucas ruas da cidadezinha. E, como que num passe de mágica, toda a cidade já havia acordado e os homens conversavam nas calçadas enquanto as mulheres tomavam café escoradas nos portões das casas.

 

Não havia um código prescrito, assim como não haviam horários predefinidos; bastando que algum mais afoito gritasse para que todos continuassem, até que, ao longe, se ouvissem os gritos ecoando, ecoando, até desaparecer completamente pelos lados da lagoa. Talvez esses mesmos gritos continuassem se espalhando rapidamente entre os sitiantes, passando pelas grandes fazendas, até chegarem às cidades vizinhas.

 

Talvez os gritos que ainda hoje se proliferam pelas cidades do interior sejam os mesmos de quando eu ainda era adolescente. E talvez nem mesmo aqueles gritos fossem inéditos. Certamente eram ecos de gritos longínquos, vindos de outras paragens, de outras plagas, de outras épocas distantes, que passaram por aquela cidade e continuaram os seus caminhos, tecendo não a manhã, como sempre fazem os galos poetizados pelo poeta, mas a vida; mantendo acordados todos os sertanejos que, diariamente, seguem o seu caminho em busca de uma vida melhor.

sábado, 17 de dezembro de 2022

PEPÉIS E LEMBRANÇAS

 

Na velha maleta, um bauzinho bem antigo de cores mortas e cheio de vida, estão alguns papéis importantes, nem tanto pelos seus valores econômicos, mas, sobretudo, pelas suas forças emocionais e históricas. São alguns certificados, diplomas, fotografias, poesias, memórias, e até uma certificação de formatura no MOBRAL, de um tio já falecido.

 

Algumas vezes, quando o baú já está quase cheio, ou quando me sobra tempo e falta paciência, ponho-me a esvaziá-lo. E, sem me ater profundamente em cada lembrança, mando ao lixo aqueles papéis aos quais menos me apego, para, depois, já com o coração mais leve e a cabeça fria, arrepender-me de tamanhas atrocidades.

 

Nestes momentos quando bate o arrependimento, saio à rua; afinal, como talvez tenha dito algum importante filósofo ou poeta moderno, “as ruas são o desapego da alma”. É nela que nos libertamos de todos os pensamentos, sentimentos e lembranças que nos prendem em casa. E isso acontece enquanto olhamos os transeuntes, ouvimos os barulhos dos carros em alta velocidade ou, simplesmente, sentamos debaixo de uma velha árvore no meio de uma pracinha.

 

É verdade, as ruas, como que por magia, nos liberta dos pensamentos ainda enclausurados na alma; mas, irremediavelmente, também trazem outras lembranças, quase sempre de outrem, que há muito se encontravam adormecidas no fundo daquela maleta, em amarelecidos papéis. E entre cada mudança de cenário, elas vão se aflorando, com pensamentos, divagações e contemplações.

 

Terá sido sentada naquele rústico banco de madeira, na varanda do velho casarão, quase no meio da praça, ao lado de onde hoje está o Cristo, que ela escrevera seus melhores poemas? Fora mesmo debaixo daquela árvore que todos aqueles senhores se reuniram para decidirem qual seria o nosso futuro? Tudo aquilo que ele escrevera terá mesmo acontecido naquele sobrado, ou seriam apenas estórias sem qualquer veracidade, meticulosamente escritas para alimentar nossas ingênuas ilusões?

 

As perguntas se multiplicam, enquanto os papéis se revolvem na maleta e as lembranças forçam-na, numa tentativa vã de se libertarem. O melhor a se fazer é voltar para casa e, assim que o dia amanhecer, comprar um cadeado. Não é razoável deixar que todas aquelas lembranças se espalhem. Definitivamente, não seria de bom tom deixá-las fugir.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O LADRÃO ARREPENDIDO

 

Uma televisão que deu o maior trabalho para carregar, um relógio parecido com ouro, que depois teria de levar em algum relojoeiro para confirmar, um notebook Acer velho, que, se vendido na boca, talvez desse cento e cinquenta ou duzentos, e duas correntinhas banhadas a ouro, que, com certeza, foram compradas na Hermes ou na Avon.

 

Deitado na cama, com a televisão ligada, num pequeno barraco nos fundos de uma casa com um monte de crianças que gritavam o dia todo, a televisão ligada com os chuviscos aumentando sempre que o ventilador soprava a tela; a imagem de tudo aquilo parecia até uma miragem. Se não desse muito na cara, pregaria a tv na parede, colocaria o relógio no pulso, a correntinha no pescoço, com uma camisa aberta até os peitos, e iria para o pagode, onde pagaria de bichão a noite toda.

 

Mal pensara tudo aquilo e o repórter noticiou o roubo. Não fora nada extravagante, nenhuma casa de rico, nenhum caso de famoso. A notícia não teria importância se não fosse a vítima um policial; mais ainda: um policial com as costas largas, talvez um detetive a ponto de se aposentar, se não um delegado ou sargento, quiçá um amigo de algum político. Pela veemência com que o repórter frisara cada palavra, uma coisa era certa: o homem era peixe grande!

 

Já fazia um tempo que exercia a profissão e nunca tinha dado uma mancada tão grande. Sempre estudava as suas vítimas, geralmente pessoas de classe média, nem tão ricos, para não dar B.O. e nem tão pobres, para não ficar com remorso. Também não roubava professores, pois, assim como dizia seu velho pai “são eles os verdadeiros construtores dessa nossa Nação”, e Nação é uma coisa com a qual não se deve brincar!

 

Sobre policiais, nunca chegara a cogitar. Apesar de tudo era um “sujeito homem”, tinha escrúpulos e, além disso, tinha amor à sua vida. Por três vezes tinha ido a delegacias e, definitivamente, aquele ambiente não lhe era agradável. A primeira, ainda criança, fora com a mãe, numa visita ao pai, que tinha sido preso por um assalto mal sucedido; a segunda, depois de uma briga por causa de uma ex-namorada, e a última, talvez a mais traumática, quando colocaram um pacote na sua bolsa, enquanto comia um PF num restaurante meia-boca do centro.

 

Se voltasse à cadeia, com as coisas de um policial, dificilmente sairia de lá. Já tinha sofrido bastante da última vez, com as ameaças e o medo de ficar encarcerado. Tinha mesmo prometido se endireitar, arranjar um serviço e ir para a igreja; mas, convenhamos, roubar não exige grandes habilidades, estudos e inteligência; basta que o cara seja esperto e corajoso, e, modéstia à parte, tudo isso ele era de sobra.

 

Era esperto e corajoso, mas tinha amor à sua vida. Por isso, as pernas tremiam, a mão suava e o coração batia forte no peito. Da última vez em que sentira tudo isso foi quando quase o pegaram com um dinheiro que roubara de um velho chato que bebia todos os dias no bar da esquina e sempre ficava arrotando riquezas. Bem que ele tinha merecido ser roubado, e tudo teria dado certo se os polícias não tivessem chegado, por acaso, bem na hora, com ele tendo que jogar toda a grana num lote vago. Depois, já de madrugada, quando voltara para recuperar o dinheiro, alguém já o tinha levado.

 

Agora só tinha um jeito, devolver tudo aquilo. E era isso que faria, ainda naquela noite, se o pobre homem não estivesse em casa. Junto haveria de deixar também um bilhete, para que não restasse dúvida sobre a sua hombridade, como num pedido veemente de desculpas, que, esperava ele, seria prontamente aceito, afinal, aquele era um caso excepcional, um descuido de um pobre sujeito arrependido. Levantou-se prontamente e pôs-se a redigir, com a letra caprichada, sobre a mesinha que ainda nem terminara de pagar, o bilhete ao policial...

 

“Estou devolvendo tudo que foi levado, não quero problemas. Por isso, estou devolvendo. Se eu soubesse que era casa de polícia, não teria entrado. Me desculpa. Sou sujeito homem, por isso, estou devolvendo”.