sábado, 17 de dezembro de 2022

PEPÉIS E LEMBRANÇAS

 

Na velha maleta, um bauzinho bem antigo de cores mortas e cheio de vida, estão alguns papéis importantes, nem tanto pelos seus valores econômicos, mas, sobretudo, pelas suas forças emocionais e históricas. São alguns certificados, diplomas, fotografias, poesias, memórias, e até uma certificação de formatura no MOBRAL, de um tio já falecido.

 

Algumas vezes, quando o baú já está quase cheio, ou quando me sobra tempo e falta paciência, ponho-me a esvaziá-lo. E, sem me ater profundamente em cada lembrança, mando ao lixo aqueles papéis aos quais menos me apego, para, depois, já com o coração mais leve e a cabeça fria, arrepender-me de tamanhas atrocidades.

 

Nestes momentos quando bate o arrependimento, saio à rua; afinal, como talvez tenha dito algum importante filósofo ou poeta moderno, “as ruas são o desapego da alma”. É nela que nos libertamos de todos os pensamentos, sentimentos e lembranças que nos prendem em casa. E isso acontece enquanto olhamos os transeuntes, ouvimos os barulhos dos carros em alta velocidade ou, simplesmente, sentamos debaixo de uma velha árvore no meio de uma pracinha.

 

É verdade, as ruas, como que por magia, nos liberta dos pensamentos ainda enclausurados na alma; mas, irremediavelmente, também trazem outras lembranças, quase sempre de outrem, que há muito se encontravam adormecidas no fundo daquela maleta, em amarelecidos papéis. E entre cada mudança de cenário, elas vão se aflorando, com pensamentos, divagações e contemplações.

 

Terá sido sentada naquele rústico banco de madeira, na varanda do velho casarão, quase no meio da praça, ao lado de onde hoje está o Cristo, que ela escrevera seus melhores poemas? Fora mesmo debaixo daquela árvore que todos aqueles senhores se reuniram para decidirem qual seria o nosso futuro? Tudo aquilo que ele escrevera terá mesmo acontecido naquele sobrado, ou seriam apenas estórias sem qualquer veracidade, meticulosamente escritas para alimentar nossas ingênuas ilusões?

 

As perguntas se multiplicam, enquanto os papéis se revolvem na maleta e as lembranças forçam-na, numa tentativa vã de se libertarem. O melhor a se fazer é voltar para casa e, assim que o dia amanhecer, comprar um cadeado. Não é razoável deixar que todas aquelas lembranças se espalhem. Definitivamente, não seria de bom tom deixá-las fugir.

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