terça-feira, 12 de julho de 2011

LIBERDADE AINDA QUE TARDIA


LIBERDADE AINDA QUE TARDIA



                        A última reunião aconteceu às cinco horas da tarde. O assunto principal, como sempre, era a política e os seus problemas, mas ele participava mesmo era por causa da bebida que era de graça. Saiu meio cambaleante, tinha discutido com os comparsas e preferira seguir sozinho o seu caminho. Falavam muito de política; uma grande palhaçada, ele gostava mesmo era do tanto e da qualidade das bebidas que passavam pelo seu copo. Quase sempre brigavam, problemas comuns aos relacionamentos abertos e constantes, mas, no caso dele era diferente, não eram tão constantes as suas participações nas reuniões e, ainda que elas fossem estritamente secretas, depois de bêbado, ele entrava nos botecos e punha-se a delatar tudo que fora discutido, como se fosse um discurso político, a pauta do dia.
                        A briga tinha sido pior do que das outras vezes. Ele havia ficado bastante magoado, tomou um trago da bebida e proferiu a maior ameaça que um membro da irmandade poderia fazer: “todos saberiam das ações do grupo e as ações que eles planejavam”. Foi grande o alvoroço na reunião, alguns, mais exaltados, querendo esganá-lo, outros tentando persuadi-lo a desistir de tamanha insanidade, outros, ainda, alheios a tudo, sem qualquer posicionamento, esperavam pelo desfecho daquele embate. Foi quando o líder da turma sentenciou que “fizesse o que bem entendesse, pois não pertencia mais àquela irmandade”. Sentia-se triste, mas não conseguia esconder o alívio que tomava conta de si; tomou um outro trago da bebida, levantou-se com ar de superioridade e saiu a caminhar pelas ruas, mal se agüentando de pé.
                        As suas idéias começavam a embaralhar-se. Andava cambaleante pelas ruas estreitas. Do seu lado passavam várias mulheres bonitas, todas muito brancas e de pele extremamente fina, acompanhadas por negrinhas desarrumadas que carregavam na face o gosto doce do pecado; negros vestidos precariamente carregavam sacos de açúcar nos armazéns da cidade, enquanto homens brancos, com seus bigodes finos e afilados, faziam a corte  às mulheres brancas que se debruçavam nas janelas das grandes casas do centro, deixando, displicentemente,  que eles vissem os seus seios pequenos e durinhos feito pêras amadurecendo.
                        Ele não sentia pena daqueles negros. Nenhum membro da irmandade sentia pena dos negros, eles eram tidos apenas como animais de estimação, bichos sem alma, sem pensamentos, sem qualquer tipo de sentimento, não eram mais que bichos criados para servirem aos homens brancos, os verdadeiros filhos de Deus.
                        Nas reuniões das quais participava, não se falava em nome de negros. Lutavam pela queda do império, um sistema falido que não levaria o país a lugar algum, e, por esses e outros motivos, deveria ser derrubado; falavam em mudar a capital do país, mal situada e pessimamente construída, um ponto vulnerável a qualquer tipo de ataque inimigo, ademais, por direito e justiça, a capital do país deveria ser a região de maior acúmulo de riquezas em toda a nação.
                        Estivera parado por um longo tempo no meio da rua enquanto fazia suas observações. Não tinha mais qualquer tipo de ligação com a irmandade, um clube fechado, uma corja de poetas, padrecos, fazendeiros, funcionários reais que almejavam o poder, um bando de delinqüentes baratos. Não sabia verdadeiramente a sua posição dentro da irmandade, era um simples alferes que andava embriagado e o qual nunca deixavam que se pronunciasse uma verdadeira farsa. O mais justo era que denunciasse àqueles malditos, ajudasse a família real. O pobre homem, embriagado, delirava em meio aos seus próprios pensamentos.
                        Continuou a sua caminhada, contra a vontade de suas pernas, era como se ele quisesse andar e elas teimassem em dizer não; andava devagar, cambaleando, um bêbado no meio da rua equilibrando-se para não cair. Subia as ladeiras como se carregasse um grande fardo nas costas e, à medida que vencia aquela distância, aumentavam os seus ideais de liberdade, queria libertar-se da irmandade. Pensava em proclamar, sozinho, a independência do país, tornar-se-ia um soberano, com plenos poderes e um grande coração; não seria um déspota como tantos imperadores daquele tempo, seria justo e caridoso, honesto como o rei Salomão.
                        A adrenalina crescia dentro de si, o coração batia acelerado e uma grande confiança nascia no seu peito. Nascia ali um verdadeiro revolucionário: tornar-se-ia rei, faria todas as revoluções que a irmandade pregava sem pedir-lhe qualquer ajuda; conquistaria o poder unicamente pelas suas forças, com suas próprias mãos.
                        Entrou num boteco de grandes portas azuis, já era noite, pediu um trago de bebida; ao terminar o gole, subiu sobre uma grande mesa, passou ao balcão, pigarreou para limpar o catarro da garganta e chamar a atenção dos presentes; precisou ser segurado para que não despencasse de cara no chão e, com o ar de superioridade que tomara desde que saíra da irmandade, começou a discursar; pregou contra  as injustiças da justiça imperial, a cobrança abusiva dos impostos, os desmandos do rei, o alto preço dos alimentos, as más condições das estradas, a insegurança nas ruas e becos das grandes cidades, a falta de sonhos e iniciativa da sociedade; começou a pregar  sobre o direito de todo cidadão à saúde, alimentação, dignidade e, no ponto alto do seu pronunciamento, citou passagens bíblicas, deu uma nova roupagem à vida de Cristo  e conclamou o povo à revolução.
                        Passava da meia-noite quando a guarda real chegou para por fim a questão. Os revoltosos haviam quebrados todas as mesas e cadeiras do boteco, saquearam as bebidas e os tira-gostos; haviam entrado nas outras lojas, quebraram-nas por completo; roubaram tudo o que era possível carregar. Era grande a balbúrdia nas principais ruas da cidade. Puxando a multidão, levou-a até a sede da irmandade, quebraram todas as dependências do lugar, surraram os membros que encontravam pela frente e fugiram gritando palavras de ordem e gritos de guerra. Encontraram-se na porta da igreja com a guarda real; houve um grande quebra-quebra, mulheres gritando, cinco pessoas correndo desnorteadas, alguns fugindo da guarda, outros partindo para cima das autoridades, uma confusão generalizada.
                        Tivera a sua chance de fugir, protegeram-no, proclamaram-no o novo salvador da pátria. Preferiu ficar, não agüentaria correr, ademais, podia persuadir aos guardas quanto à justiça das suas idéias; sentou-se a um canto e pôs-se a meditar, pensava nas palavras que deveria usar para convencê-los dos seus ideais, enquanto os outros brigavam , matavam-se pela sua causa. Sua cabeça rodava, ainda estava muito bêbado, sentia vontade de vomitar, mal conseguia manter os olhos abertos; como se nada de mais estivesse acontecendo, deitou-se no meio-fio e adormeceu o sonho dos justos, com uma grande tranqüilidade na alma de quem tinha cumprido o seu dever.
                        Com um balde de água fria acordaram-no na manhã seguinte. Sentia-se tonto, um terrível gosto de guarda-chuva na boca; olhou desorientado sem saber onde estava; levantou-se cambaleante e foi até a janela, o dia estava muito bonito, uma maravilha divinal; foi até o banheiro, barbeou-se, tomou um banho quente, o corpo estava todo dolorido como se tivesse dormido mal, no meio da rua, bem no meio-fio; vestiu a roupa; perfumou-se e foi para o trabalho.
                        A rua estava uma bagunça, era como se uma grande guerra tivesse se passado naquela cidade; de frente à cadeia era grande o número de fotógrafos e repórteres em busca de novas informações a respeito dos arruaceiros. Na porta do edifício em que trabalhava tudo era uma grande bagunça: vidros quebrados, paus e pedras espalhados pelo chão, roupas rasgadas e jogadas no meio da rua, objetos perdidos, gente dormindo nas calçadas. Pegou o elevador e subiu ao escritório. Tudo estava quebrado: cadeiras, mesas, computador, uma verdadeira catástrofe. Voltou horrorizado; tentou o elevador, estava cheio; voltou correndo pela escada; o saguão do edifício estava tomado por repórteres e fotógrafos; tentou passar despercebido; avistaram-no e tentaram entrevistá-lo, abaixou a cabeça e fingiu não vê-los; foi interceptado por dois policiais, tentou fugir, mas logo foi dominado e, sob os flashes das máquinas fotográficas e as perguntas de repórteres, foi obrigado e entrar na viatura, estava preso.
                        Sua foto apareceu em todos os jornais escritos e na televisão; no rádio por muito tempo proclamaram o seu nome.

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