quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O CHAMADO


O CHAMADO


Parecia estranho, mas, sem sombra de dúvidas, era muito bonita. Tratava-se de uma voz que ele nunca tinha ouvido e que o chamava assim:
            - Luís, Venha. Está na hora de irmos... – Não tinha a mínima idéia do que se tratava. Ficava a cada dia mais assustado.
            De noite, estava dormindo e a voz o acordava. Sempre com aquele timbre gostoso de ouvir:
            - Luís, venha. Está na hora de irmos. Primeiro, pensou que era alguma brincadeira de mau gosto. Xingou, rogou pragas , ameaçou cortar fora o saco daquele infeliz que não tinha o que fazer; depois se amedrontou, não sabia quem era; apenas ouvia aquela voz que não cessava de chamá-lo. Não se atrevia a responder àqueles chamados. Um dia, quando ainda era pequeno, a mãe o havia dito que quando escutasse uma voz e não conhecesse o seu dono não deveria respondê-la, pois poderia ser a morte que vinha buscá-lo. E agora? E se fosse a própria dama de negro que viesse para levá-lo para os confins do além. Não. Ainda que fosse algum desempregado apenas, não responderia àquele chamado.
            Passou a ouvir calado àquela voz. Não respondia. Não falava com ninguém sobre aqueles acontecimentos. Guardava todo o seu incômodo para si mesmo. Evitara, agora, sair de casa, a não ser que fosse pra ir à missa; fazia mais de vinte anos que não ouvia um sermão, não usava ir às missas, era quase um ateu; ou, então, saía para algum caso inadiável.
            Em casa, ouvia àquela voz durante todo o dia. Era como se ela o perseguisse. Fosse à cozinha, à sala, quarto ou banheiro, lá estava ela atrás dele a importuná-lo, querendo enlouquecê-lo, atrapalhando a sua vida. Fazia mais de mês que não aparecia no serviço (era contador numa firma na Pampulha, próximo a lagoa); o telefone tocava diariamente e ele não atendia; a porta estava quase ao ponto de ser derrubada, os colegas procuravam-no o dia inteiro, não atendia, tinha medo de abrir a porta. Tinha medo de que fosse ela quem estivesse a bater. Por fim, fora despedido do emprego; recebera a informação por carta, não teria coragem de abrir a porta para escutá-la.
            O único lugar em que a voz não ousava importuná-lo era dentro da igreja. Talvez ela respeitasse aquele ambiente sacro, ou quem sabe fosse uma voz maléfica, daquelas a quem não é permitido entrar em ambientes onde o bem prevaleça. Não se sabia o motivo, mas ali, de fato, ele sentia-se protegido, assegurado por todas aquelas imagens que, mais do que isso, eram representações do bem sobre a face da terra. Com o tempo, porém, a sua liberdade dentro da igreja foi sendo cerceada; a voz começava a adentrar também às portas da casa de Deus. Luís tinha medo daquela voz, mas, ao mesmo tempo, sentia-se atraído por ela. Talvez ela o tivesse enfeitiçado. Resolveu, então, procurar o padre e contá-lo sobre o que lhe estava acontecendo.
O padre não conseguira resolver o seu problema, mesmo assim, deixou-o mais aliviado. Agora não guardava para si somente aquele acontecimento sobrenatural; ainda que superficialmente, tinha agora alguém com quem pudesse confessar, contar o que sentia. O padre não parecia acreditar muito na sua história, mas tentava acalmá-lo, punha-o para rezar dez Ave-Marias e dez Padre-nossos. Enquanto se ocupava nas orações, não tinha tempo para escutar a voz incômoda. Por isso sentia-se aliviado.
            Agora não tinha mais descanso, escutava-a a todo o momento. Estava quase enlouquecendo, não sabia mais o que fazer. Já não adiantava rezar, xingar ou mesmo calar-se. Era sempre perseguido e aquilo o transtornava. Pensava já em ceder; perguntar o que é, o que queria, por que o atrasava daquela forma. Sentia-se nervoso; já não dormia à noite; não conseguia viver uma vida normal; estava morto, preso em sua própria casa; não tinha mais amigos; perdera a namorada, que já devia estar junto de outro, fazia mais de um mês que não a procurava, não telefonava, não lhe mandava uma carta sequer. Suava a todo o momento; sentia calafrios; estava ficando alucinado; tinha mania de doenças, estava com medo de morrer. Estava na hora, tinha que procurar um psicólogo. Somente um especialista poderia resolver o seu problema.
            Foram várias seções com um médico gordo, meio doido, que muito pouco resolvia o seu problema. Tentou-se uma regressão e nada; tentaram-se alguns medicamentos, dopava-se com tanta droga que nem conhecia o nome, nada. Talvez estivesse enlouquecido, devia ser um caso perdido. O psicólogo desistiu. Disse que não sabia mais o que fazer, talvez tivesse mesmo alguma alma penada a persegui-lo, ou poderia ser mesmo a dona morte que viesse para buscá-lo. O médico era louco, de fato era um louco.
            Viu-se de frente a um terreiro. Não pensou duas vezes, entrou. Há tempo pensava em procurar um pai-de-santo, nunca havia acreditado nessas coisas, mas agora não tinha mais jeito, fora obrigado a aceitar o fato, tinha que recorrer àquele socorro. Era um lugar inóspito, muito sujo, com porcos, cachorros e galinhas andando à solta por toda parte. Sentia-se enojado de estar ali, mas era preciso.
            - Chega mais, meu filho. - disse um homem negro com um olhar branco, um trejeito de quem nunca foi parte de umbanda.
            - Sarava. Cê ta com problema, logo se vê. Mais num há de se preocupar, tudo são coisas futuras. Um dia, mais cedo ou mais tarde tudo há de se resolver. - Não cria muito naquilo que o preto dizia, afinal, todos deviam dizer a mesma coisa. Deixou que o homem lhe fizesse uma oração; comprou-lhe uma garrafada de remédios do mato e foi-se embora, sem muita convicção, mas um pouco mais aliviado.
            Durante três dias Não ouviu mais a voz. No quarto dia, porém, acordou no meio da noite. Estivera sonhando. Uma pessoa muito querida vinha até o pé de sua cama e puxava-lhe o cobertor, sempre com aquela mesma voz. Era uma voz severa, mas, ao mesmo tempo, era uma voz repleta de afeição. Talvez a morte não fosse assim tão má como se diz por aí.
            Nessa noite encheu-se de coragem. Não podia mais fugir, deveria agir como homem que era; seja lá o que fosse tinha que enfrentar de frente, sem medo, assumindo os riscos que a vida, ou seja lá o quer for, lhe impunha. Não perguntou de supetão. Sentou-se na cama e, com as luzes apagadas, ficou em silêncio escutando a voz que lhe falava sempre a mesma coisa.
            -Luís, venha, está na hora de irmos... - Aquela voz não lhe era estranha; pelo contrário, tratava-se de alguém muito conhecido, mas não conseguia se lembrar, era incapaz de ligar aquela voz a qualquer pessoa. Lembrou-se de todos os amigos falecidos; de todos os parentes que haviam partido desta para melhor (ou pior?); não. Não era compatível com a voz de nenhum conhecido morto. Passou então para os vivos. Primeiro os amigos. Nenhum era possuidor daquela voz. Depois, as antigas namoradas; nada. Os parentes distantes; os próximos; nem pensar. Estava quase desistindo, mas a voz não lhe permitia. Ela parecia impacientar-se; talvez não conseguisse dizer nada além daquelas palavras; talvez fosse alguma regra dos mortos. Tentou resistir, mas não foi capaz:
            - De quem é esta voz, pelo amor de Deus? Já estou ficando louco... – A voz repetiu-se de forma transloucada, algo parecido com um eco que pouco a pouco vai se afastando até desaparecer na escuridão do desconhecido. Uma grande dor tomou conta do seu peito. Tentou gritar, mas faltou-lhe voz, não teve forças para pedir por socorro. Caiu sobre uma cadeira de balanço, jogou os braços por sobre o peito e adormeceu.
            Fazia quarenta dias quando resolveram invadir a casa de Luís. Os amigos que arrebentaram a porta nada encontraram no minúsculo apartamento. Nenhum corpo, nenhuma mensagem, nenhuma gravação na secretária eletrônica. Um amigo, ao sair daquele lugar, tratou logo de apagar a luz; ao fechar a porta sentiu que uma mão lhe tocava o ombro; acendeu a luz novamente, não havia ninguém ali. Apagou a luz novamente e se foi. Ainda na escadaria, uma voz lhe falou:
            -Ricardo, venha, está na hora de irmos...

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