quinta-feira, 11 de maio de 2017

ARNALDO


Ao compadre Cheloni


A canoa descia lenta pelo rio, enquanto alguns passarinhos gorjeavam nas árvores ribeirinhas. Alguns peixes tentavam subir a correnteza, o que faziam sem grandes dificuldades. As águas, àquela tarde, estavam mansas, dando-lhe a sensação de que a minúscula embarcação apenas escorregava pelo espelho cristalino.

Arnaldo sentia-se exausto. Deitara-se e, quase sem respirar, fazia tempo que apenas olhava o céu, que, vez ou outra, descortinava-se em meio às arvores nativas. Alguns micos acompanhavam-no, todos em silêncio, como que num cerimonioso cortejo.

Se forçasse um pouco o pescoço e virasse a cabeça para um dos lados, veria a superfície barrenta, com pequeninas pedras e velhos troncos de árvores centenárias cobertos de musgos esverdeados. Não o fizera. Se o fizesse, também veria o seu rosto deformado, todo inchado, cheio de hematomas.

Todo o corpo lhe doía; evitava se mexer, para que não lhe aumentassem as dores. Já não sabia ao certo onde estava ou aonde ia, deixava que o rio o conduzisse ao seu destino, resignado, quase feliz por não ter, ainda, morrido. Por isso, vinha-lhe uma vontade irritante de cantar. Doíam-lhe as costas, os pulmões, a cabeça, os braços, todo o corpo. O melhor seria continuar quieto, olhando os macaquinhos que velavam a sua dolorosa descida.

Por vezes, a canoa esbarrava em alguma pedra ou tronco, fazendo com que a dor lhe cortasse todo o corpo, feito uma faca a ferir o peito de algum pobre apaixonado. Ajeitava-se novamente e tentava descansar. Não se atrevia a qualquer tentativa de dormência; apenas procurava ausentar-se de todo aquele sofrimento. Tarefa ingrata e inconclusa.

As lembranças vinham como redemoinho em sua cabeça. Os sentimentos se confundiam em sua mente. Queria odiá-los, mas não conseguia. Laura era a sua grande paixão e Paulo o seu único amigo. Sempre soube da paixão que este nutria, embora tentasse esconder; mas nunca imaginara que tudo chegasse aonde chegou. Via-se obrigado a se vingar, mas não tinha forças para isso.

Os passarinhos já não cantavam. As folhas das árvores balançavam e os macaquinhos ficaram para trás. O único barulho era a canoa cortando a água, preguiçosa, esbarrando nas pedras e troncos. A tarde já ia findando. Começava a esfriar e as dores lhe aumentavam um pouco mais. Certamente, se a canoa não virasse, ou esbarrasse em algum barranco, chegaria ao São Francisco. Todos os rios dão no Velho Chico, este não haveria de ser diferente. Talvez ainda estivesse no Barro. Talvez já estivesse no grande rio. Não sabia. E talvez morresse mesmo antes de chegar em algum lugar.

As lembranças de Laura não saíam de sua cabeça. Não a via apenas, sentia o seu corpo no seu. Enfiava os dedos nos seus cabelos negros encaracolados e descia-os lentamente pelo pescoço. Ela eriçava-se toda e podia-se notar a sua face enrubescendo. Seus mamilos, durinhos, tocavam o seu peito e sua boca roçava a sua. Arnaldo sentia o hálito quente da esposa e descia as mãos pelas costas, até que lhe apertasse a bunda, durinha e quente.

Queria matar, dar um fim a todo aquele sentimento; mas, não tinha forças. Se a encontrasse agora, beijaria-lhe e pediria perdão, como se fosse ele o grande culpado de tudo. Amaria como se não houvesse amanhã e, se a coragem não lhe faltasse, mataria devagarzinho, só para sentir o fim de um amor.

Lembrava-se ainda da última vez em que fora na casa de Paulo. Era uma manhã de sol e o amigo tomava sua cachaça, enquanto olhava o gado pastando bem de frente a casa. Assentaram-se ambos, a esposa ao seu lado com suas pernas torneadas e os pelinhos descoloridos.  

Conversaram por muito tempo, enquanto bebiam. A esposa não falava, mas ele notara um sorriso ainda tímido brotando dos seus lábios. O amigo enamorava-se das pernas de Laura, enquanto ela parecia se deliciar com aquela situação.

A noite não lhe permitia visualizar o que acontecia a sua volta. Escutava o cricrilar dos grilos à beira do rio, enquanto a pequena embarcação seguia o seu rumo incerto. As dores aumentavam a cada instante, enquanto as lembranças cortavam ainda mais o seu peito.

Laura e Paulo se beijando na cozinha, enquanto ele bebia a sua pinga na varanda. Os gritos da esposa. O amigo com o dedo em riste. A raiva quase lhe sufocando a alma. De repente tudo escuro. As lembranças terminavam quando tudo escurecia, para recomeçarem dentro daquela minúscula canoa. O corpo todo dolorido, a face cheia de hematomas, as pedras e os troncos indicando o seu futuro.

Haveria de matá-los. Primeiro, tomaria alguns goles de cachaça com o amigo, enquanto conversariam amenidades, relembrando os tempos de farras, namoricos e insensatezes; beijaria a sua amada com todo o amor que ainda vive em seu peito e sentiria todos os prazeres do seu corpo. Depois, tudo se anuviaria e nada mais seria como antes.


A canoa descia lentamente o curso do rio. As estrelas mais pareciam olhos a piscarem por entre as folhas das árvores. O corpo ainda doía, o peito doía, a alma dilacerava-se. O cansaço tomava conta de todo o homem, que, num turbilhão de emoções, de repente, adormeceu.

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