Ao compadre Cheloni
A canoa descia lenta pelo
rio, enquanto alguns passarinhos gorjeavam nas árvores ribeirinhas. Alguns
peixes tentavam subir a correnteza, o que faziam sem grandes dificuldades. As
águas, àquela tarde, estavam mansas, dando-lhe a sensação de que a minúscula embarcação
apenas escorregava pelo espelho cristalino.
Arnaldo sentia-se exausto.
Deitara-se e, quase sem respirar, fazia tempo que apenas olhava o céu, que, vez
ou outra, descortinava-se em meio às arvores nativas. Alguns micos
acompanhavam-no, todos em silêncio, como que num cerimonioso cortejo.
Se forçasse um pouco o
pescoço e virasse a cabeça para um dos lados, veria a superfície barrenta, com
pequeninas pedras e velhos troncos de árvores centenárias cobertos de musgos
esverdeados. Não o fizera. Se o fizesse, também veria o seu rosto deformado,
todo inchado, cheio de hematomas.
Todo o corpo lhe doía;
evitava se mexer, para que não lhe aumentassem as dores. Já não sabia ao certo
onde estava ou aonde ia, deixava que o rio o conduzisse ao seu destino,
resignado, quase feliz por não ter, ainda, morrido. Por isso, vinha-lhe uma vontade
irritante de cantar. Doíam-lhe as costas, os pulmões, a cabeça, os braços, todo
o corpo. O melhor seria continuar quieto, olhando os macaquinhos que velavam a
sua dolorosa descida.
Por vezes, a canoa esbarrava
em alguma pedra ou tronco, fazendo com que a dor lhe cortasse todo o corpo,
feito uma faca a ferir o peito de algum pobre apaixonado. Ajeitava-se novamente
e tentava descansar. Não se atrevia a qualquer tentativa de dormência; apenas
procurava ausentar-se de todo aquele sofrimento. Tarefa ingrata e inconclusa.
As lembranças vinham como
redemoinho em sua cabeça. Os sentimentos se confundiam em sua mente. Queria
odiá-los, mas não conseguia. Laura era a sua grande paixão e Paulo o seu único
amigo. Sempre soube da paixão que este nutria, embora tentasse esconder; mas
nunca imaginara que tudo chegasse aonde chegou. Via-se obrigado a se vingar,
mas não tinha forças para isso.
Os passarinhos já não
cantavam. As folhas das árvores balançavam e os macaquinhos ficaram para trás.
O único barulho era a canoa cortando a água, preguiçosa, esbarrando nas pedras
e troncos. A tarde já ia findando. Começava a esfriar e as dores lhe aumentavam
um pouco mais. Certamente, se a canoa não virasse, ou esbarrasse em algum
barranco, chegaria ao São Francisco. Todos os rios dão no Velho Chico, este não
haveria de ser diferente. Talvez ainda estivesse no Barro. Talvez já estivesse
no grande rio. Não sabia. E talvez morresse mesmo antes de chegar em algum
lugar.
As lembranças de Laura não
saíam de sua cabeça. Não a via apenas, sentia o seu corpo no seu. Enfiava os
dedos nos seus cabelos negros encaracolados e descia-os lentamente pelo
pescoço. Ela eriçava-se toda e podia-se notar a sua face enrubescendo. Seus
mamilos, durinhos, tocavam o seu peito e sua boca roçava a sua. Arnaldo sentia
o hálito quente da esposa e descia as mãos pelas costas, até que lhe apertasse
a bunda, durinha e quente.
Queria matar, dar um fim a
todo aquele sentimento; mas, não tinha forças. Se a encontrasse agora,
beijaria-lhe e pediria perdão, como se fosse ele o grande culpado de tudo.
Amaria como se não houvesse amanhã e, se a coragem não lhe faltasse, mataria devagarzinho,
só para sentir o fim de um amor.
Lembrava-se ainda da última
vez em que fora na casa de Paulo. Era uma manhã de sol e o amigo tomava sua
cachaça, enquanto olhava o gado pastando bem de frente a casa. Assentaram-se
ambos, a esposa ao seu lado com suas pernas torneadas e os pelinhos
descoloridos.
Conversaram por muito tempo,
enquanto bebiam. A esposa não falava, mas ele notara um sorriso ainda tímido
brotando dos seus lábios. O amigo enamorava-se das pernas de Laura, enquanto
ela parecia se deliciar com aquela situação.
A noite não lhe permitia
visualizar o que acontecia a sua volta. Escutava o cricrilar dos grilos à beira
do rio, enquanto a pequena embarcação seguia o seu rumo incerto. As dores
aumentavam a cada instante, enquanto as lembranças cortavam ainda mais o seu
peito.
Laura e Paulo se beijando na
cozinha, enquanto ele bebia a sua pinga na varanda. Os gritos da esposa. O
amigo com o dedo em riste. A raiva quase lhe sufocando a alma. De repente tudo
escuro. As lembranças terminavam quando tudo escurecia, para recomeçarem dentro
daquela minúscula canoa. O corpo todo dolorido, a face cheia de hematomas, as
pedras e os troncos indicando o seu futuro.
Haveria de matá-los.
Primeiro, tomaria alguns goles de cachaça com o amigo, enquanto conversariam
amenidades, relembrando os tempos de farras, namoricos e insensatezes; beijaria
a sua amada com todo o amor que ainda vive em seu peito e sentiria todos os
prazeres do seu corpo. Depois, tudo se anuviaria e nada mais seria como antes.
A canoa descia lentamente o
curso do rio. As estrelas mais pareciam olhos a piscarem por entre as folhas
das árvores. O corpo ainda doía, o peito doía, a alma dilacerava-se. O cansaço
tomava conta de todo o homem, que, num turbilhão de emoções, de repente,
adormeceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário