quinta-feira, 13 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 1)

Acompanhe aqui no Blog a cada capítulo do meu primeiro Romance: SANHARÓ. Escrito em 2010.


- Vige Maria. Corre danada. Anda logo que o menino tá é quase nascendo!... Benza Deus... Nossa Senhora do bom parto e todos os anjinho do céu deve de interceder nesse momento pra nós conseguir tirá esse menino daí... Reza menina. Pára de chorá e reza, vai! Reza e pode gritar que uma hora dessas ele tem que deixá parir!

            A chuva caía forte fazendo um barulho estridente sobre o velho telhado, parecendo querer pô-lo abaixo. A casa era toda feita de adobe e dava a sensação de que não agüentaria toda aquela tempestade, pode-se dizer que já estava quase ao ponto de desabar nos ombros daquela gente. Loriano foi quem saiu primeiro naquele dia. Ainda de manhã havia saído à procura de alguém para ajudá-los e ainda não havia voltado. Aquele coitado era doido de fazer a gente morrer de dó; e, quando dava de virar a lua, saía correndo desembestado pelos matos e só voltava para casa quando lhe desse na veneta, ou quando já fosse muito escuro, pois esse era o seu único medo, mesmo nos momentos de loucura mais pesada temia a escuridão da noite.

           Era mesmo uma casa bastante pequena. Bem apertadinha. Mas, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e as muitas orações de Margarida, cabiam todos os quatro e quantos mais ainda pudessem chegar, sempre havia espaço para dar pouso ou mesmo moradia a quem precisasse. Aquilo parecia um verdadeiro milagre, como assim o parece em toda roça que nestes tempos o leitor tiver o prazer de tomar conhecimento; aquela casa, apesar de muito pequena, era grande o bastante para que todos se sentissem bem e estivessem felizes, até onde a situação pudesse permitir.


           
Justino era daquele tipo rude que não gosta de ver criança nascer; era como se fosse um bicho do mato, criado solto nas ribanceiras e pé-de-pau com muita rapadura e um punhado de farinha de mandioca, mas era bem capaz de correr os matos por todo um dia só para ver um bezerro forte e truculento saltar das entranhas de uma vaca parideira.

          Ele tinha saído antes que o sol raiasse e, apesar de a lua já estar bem alta no céu, ainda não tinha voltado. Provavelmente, naquele instante devia estar bebendo todo o seu cansaço e jogando conversa fora com as raparigas da vendinha do Cristino; senão já havia embebedado no meio do caminho e, não aguentando prosseguir, adormeceu na velha palhoça, à beira do Sanharó.

          Margarida era uma mulher forte e procurava não reclamar daquela ausência. Sentia falta da presença do marido; sabia que era dever dele estar ao seu lado naquele momento tão importante para ambos; mas era uma boa mulher e não conseguia, ainda que tentasse, desejar o mal àquele homem, ao custo de ser obrigada a suportar todas aquelas dores e sofrimentos sozinha, sem que ele lhe viesse acariciar.

         Era imensa a vontade de gritar. Ela queria chutar tudo o que tivesse pela frente, xingar todos os palavrões que soubesse, livrar-se, ainda que verbalmente, daquela dor que a afligia. Margarida queria chutar o jirau, bater forte nas janelas e sair correndo pelos matos, como fazia Loriano quando endoidecia, mas ela continha-se e gemia baixinho, só para si, quase como em quando fazia amor com Justino e, não querendo, envergonhada, que ele ouvisse o seu gozo de prazer, fazia baixinho sem que ele pudesse ouvi-la, mas agora era diferente, não era gemido de gozo e sim um resmungo de dor, e era uma dor forte que ela já estava quase para não aguentar; demorasse a criança mais um pouquinho para nascer e talvez ela pedisse arrego, talvez morressem ela e o bebê.

         Geraldinho dormia tranquilo ao seu lado, não queria acordá-lo. Era um menino mirrado, desnutrido, mais um para sofrer na face da terra; ele dormia como se fosse um anjo, alheio a tudo aquilo que se passava, vivendo o seu mundinho onírico como se a vida fosse apenas um passatempo. Margarida olhava para o pequeno com os olhos rasos d’água e quase não conseguia se segurar; numa certa hora pensou em desistir de todo aquele sofrimento e morrer, mas olhou novamente para o menino, que dormia sossegado no jirau; olhou com os olhos que apenas as mães têm o poder de possuir; pensou naquela criança que estava para nascer e, com um grande arrependimento em Ter possuído aquele ignóbil pensamento pôs-se a chorar. Concretizava-se naquele momento o maior dom concebido na face da terra: o amor entre mãe e filho.


           D. Joaquina era uma “velha parteira”, mas suava frio como se aquele fosse o seu primeiro parto. Pelas suas retinas, castigadas pelo sofrimento e pelo tempo grande de vivência, passavam todas as boas e más lembranças da sua vida, reminiscências de uma caminhada pesada e solitária. A velha olhava para Geraldinho deitado no jirau, recostado naquela parede grossa e toda avermelhada, respingada com gordura de porco e mais próxima ao chão de terra batida cheio de buracos e desníveis, uma enormidade de titica de galinha; padecia de uma terrível vontade de chorar, sentia-se penalizada com aquelas pobres vidas, com aquele futuro incerto. D. Joaquina morava lá pelos lados do Riachão, próximo Às terras de Zé Roxão e às de Zito Caldeira; vivia, além das poucas plantações de arroz, milho e feijão, cultivados para fins de subsistência, de alguns agrados pelos serviços de benzição e partos, ofícios que aprendeu com sua mãe, que aprendera com a mãe dela, sua avó, e que agora não tinha para quem ensinar, pois era solteira e em momento alguma de sua vida pôde conhecer os prazeres da carne, concretizar o ato divino de dar a luz a um fruto de suas entranhas. Era, na verdade, uma triste moça-velha, tinha plena consciência da sua situação e, sabedora que tudo aquilo era obra do criador, resignava-se a fazer nascer às crias alheias. Sobre as benzições e partos ela nunca havia cobrado, pois diziam já os mais velhos que, caso cobrasse por um Dom divino, isto poderia lhe trazer algum tipo de mau agouro, pois de nada que venha de cima pode-se cobrar para passar a quem precisa. Não cobrava, mas a situação estava quase insustentável e, por isso, nunca negara qualquer agrado que lhe viessem a oferecer.

           Todos os partos tinham a sua peculiaridade, mas aquele era o mais emocionante, causava uma sensação estranha, algo de muito mais especial dentro de si. Aquele era o segundo parto de Margarida que tinha apenas treze anos de idade e, depois de terminados os afazeres domésticos, costumava ainda brincar com suas velhas bonecas de pano. Era apenas uma menina, tomada pelas responsabilidades da vida adulta, privada de sua infância, mas não de sua infantilidade.


Justino era um homem de meia idade; filho de Seu Malaquias, homem de viver acasalado, que tendo uma vez enviuvado havia desposado dona Joaquina, que era mãe de Margarida e viúva de tempo ainda fresco. A parteira, que era mulher de grande discrição, nunca ousara tocar naquele assunto, ainda que isso lhe viesse sempre á garganta. Não cria que o pequeno casal pudesse suportar por muito tempo o peso de um casamento como aquele; ambos eram tidos com irmãos e, seguindo o seu pensamento católico, de acordo com as suas compreensões quanto às divindades das coisas, era justo e muito correto que Deus os quisesse castigar.

          A dor aumentava sempre um pouco mais, e eram apenas aquelas duas mulheres para dar a luz a uma nova vida. A bolsa já havia rompido e, no terreiro, uma chuvinha enjoada continuava caindo; agora, enfatizada por relâmpagos e trovões. As galinhas já haviam recolhido seus pintinhos para um lugar seguro e a cadela Faísca comia a um canto da casa, de olhos esbugalhados para a janela, um grosso angu de fubá que Loriano fizera antes de sair.
         Naqueles tempos não se usava relógio; as horas eram calculadas de acordo com a direção do sol; seguindo a direção da lua, ou pelo instinto do sertanejo, não sendo possível afirmar nada além do fato de que já era noite no sertão; uma escuridão silenciosa em que se ouviam apenas os barulhos celestiais. Os gritos de Margarida eram longos e estridentes e misturavam-se aos riscos dos relâmpagos e ao barulho dos trovões. De repente, foi grande o silêncio no meio de todo aquele vazio, e dona Joaquina, com toda a sua rude sapiência, sentenciou:

- Benza Deus, é um menino Margarida! Cê é boa; pariu mais um menino, gordo e bonito por demais. Parece até que tá rindo de felicidade.


      Passado todo o sofrimento daquelas mulheres, não tardou para que Justino e Loriano voltassem. Era o mês de Outubro, quase o dia das crianças e de Nossa Senhora Aparecida; eles não sabiam, mesmo assim cortaram o umbigo do menino e passaram azeite e álcool, para que ele caísse com maior rapidez; rezaram um terço e o ofício em ação de graças a Nossa Senhora do Bom Parto e deram–lhe o nome de José Queiroz de Oliveira. Havia cessado a chuva e o céu se enchia de estrelas brilhantes, como se toda aquela escuridão tivesse sido apenas um prenúncio de muita felicidade e luz na vida daquela família humilde.

2 comentários:

  1. Há em todo o texto uma riqueza de descrições.As personagens tomam vida mediante o nascimento que está por vir,o autor é detalhista,há um conhecimento muito grande do ambiente que cerca as personagens,são pessoas simples e fortes.Um desfecho surpreendente com a vinda do rebento que recebe um nome.

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  2. Conheço o autor pode se dizer, centenas de anos, maravilhoso, seu início do romance, que, não considero um romance, é a vida cotadiana qui no nosso sertão, principalmente na zoma rural onde bem conhecemos não de hoje, mas desde ante ontem. Parabéns confrade, estou lutando pelo seu pedido, mas este ano tou achando difícil, sabe os motivos. Mas luto em prol de vencer esta para o senhor...

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