Acompanhe aqui no Blog a cada capítulo do meu primeiro Romance: SANHARÓ. Escrito em 2010.
- Vige Maria. Corre danada. Anda logo que o menino tá é quase nascendo!... Benza Deus... Nossa Senhora do bom parto e todos os anjinho do céu deve de interceder nesse momento pra nós conseguir tirá esse menino daí... Reza menina. Pára de chorá e reza, vai! Reza e pode gritar que uma hora dessas ele tem que deixá parir!
- Vige Maria. Corre danada. Anda logo que o menino tá é quase nascendo!... Benza Deus... Nossa Senhora do bom parto e todos os anjinho do céu deve de interceder nesse momento pra nós conseguir tirá esse menino daí... Reza menina. Pára de chorá e reza, vai! Reza e pode gritar que uma hora dessas ele tem que deixá parir!
A chuva caía forte fazendo um barulho
estridente sobre o velho telhado, parecendo querer pô-lo abaixo. A casa era
toda feita de adobe e dava a sensação de que não agüentaria toda aquela
tempestade, pode-se dizer que já estava quase ao ponto de desabar nos ombros
daquela gente. Loriano foi quem saiu primeiro naquele dia. Ainda de manhã havia
saído à procura de alguém para ajudá-los e ainda não havia voltado. Aquele
coitado era doido de fazer a gente morrer de dó; e, quando dava de virar a lua,
saía correndo desembestado pelos matos e só voltava para casa quando lhe desse
na veneta, ou quando já fosse muito escuro, pois esse era o seu único medo,
mesmo nos momentos de loucura mais pesada temia a escuridão da noite.
Era mesmo uma casa bastante pequena.
Bem apertadinha. Mas, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e as muitas
orações de Margarida, cabiam todos os quatro e quantos mais ainda pudessem
chegar, sempre havia espaço para dar pouso ou mesmo moradia a quem precisasse. Aquilo
parecia um verdadeiro milagre, como assim o parece em toda roça que nestes
tempos o leitor tiver o prazer de tomar conhecimento; aquela casa, apesar de
muito pequena, era grande o bastante para que todos se sentissem bem e
estivessem felizes, até onde a situação pudesse permitir.
Justino era daquele tipo rude que não
gosta de ver criança nascer; era como se fosse um bicho do mato, criado solto
nas ribanceiras e pé-de-pau com muita rapadura e um punhado de farinha de
mandioca, mas era bem capaz de correr os matos por todo um dia só para ver um
bezerro forte e truculento saltar das entranhas de uma vaca parideira.
Ele tinha saído antes que o sol
raiasse e, apesar de a lua já estar bem alta no céu, ainda não tinha voltado.
Provavelmente, naquele instante devia estar bebendo todo o seu cansaço e jogando
conversa fora com as raparigas da vendinha do Cristino; senão já havia
embebedado no meio do caminho e, não aguentando prosseguir, adormeceu na velha
palhoça, à beira do Sanharó.
Margarida era uma mulher forte e
procurava não reclamar daquela ausência. Sentia falta da presença do marido;
sabia que era dever dele estar ao seu lado naquele momento tão importante para ambos;
mas era uma boa mulher e não conseguia, ainda que tentasse, desejar o mal
àquele homem, ao custo de ser obrigada a suportar todas aquelas dores e
sofrimentos sozinha, sem que ele lhe viesse acariciar.
Era imensa a vontade de gritar. Ela queria
chutar tudo o que tivesse pela frente, xingar todos os palavrões que soubesse,
livrar-se, ainda que verbalmente, daquela dor que a afligia. Margarida queria
chutar o jirau, bater forte nas janelas e sair correndo pelos matos, como fazia
Loriano quando endoidecia, mas ela continha-se e gemia baixinho, só para si,
quase como em quando fazia amor com Justino e, não querendo, envergonhada, que
ele ouvisse o seu gozo de prazer, fazia baixinho sem que ele pudesse ouvi-la,
mas agora era diferente, não era gemido de gozo e sim um resmungo de dor, e era
uma dor forte que ela já estava quase para não aguentar; demorasse a criança
mais um pouquinho para nascer e talvez ela pedisse arrego, talvez morressem ela
e o bebê.
Geraldinho dormia tranquilo ao seu lado,
não queria acordá-lo. Era um menino mirrado, desnutrido, mais um para sofrer na
face da terra; ele dormia como se fosse um anjo, alheio a tudo aquilo que se
passava, vivendo o seu mundinho onírico como se a vida fosse apenas um
passatempo. Margarida olhava para o pequeno com os olhos rasos d’água e quase
não conseguia se segurar; numa certa hora pensou em desistir de todo aquele sofrimento
e morrer, mas olhou novamente para o menino, que dormia sossegado no jirau;
olhou com os olhos que apenas as mães têm o poder de possuir; pensou naquela
criança que estava para nascer e, com um grande arrependimento em Ter possuído aquele
ignóbil pensamento pôs-se a chorar. Concretizava-se naquele momento o maior dom
concebido na face da terra: o amor entre mãe e filho.
D. Joaquina era uma “velha
parteira”, mas suava frio como se aquele fosse o seu primeiro parto. Pelas suas
retinas, castigadas pelo sofrimento e pelo tempo grande de vivência, passavam
todas as boas e más lembranças da sua vida, reminiscências de uma caminhada
pesada e solitária. A velha olhava para Geraldinho deitado no jirau, recostado
naquela parede grossa e toda avermelhada, respingada com gordura de porco e
mais próxima ao chão de terra batida cheio de buracos e desníveis, uma
enormidade de titica de galinha; padecia de uma terrível vontade de chorar,
sentia-se penalizada com aquelas pobres vidas, com aquele futuro incerto. D.
Joaquina morava lá pelos lados do Riachão, próximo Às terras de Zé Roxão e às
de Zito Caldeira; vivia, além das poucas plantações de arroz, milho e feijão,
cultivados para fins de subsistência, de alguns agrados pelos serviços de
benzição e partos, ofícios que aprendeu com sua mãe, que aprendera com a mãe
dela, sua avó, e que agora não tinha para quem ensinar, pois era solteira e em momento
alguma de sua vida pôde conhecer os prazeres da carne, concretizar o ato divino
de dar a luz a um fruto de suas entranhas. Era, na verdade, uma triste
moça-velha, tinha plena consciência da sua situação e, sabedora que tudo aquilo
era obra do criador, resignava-se a fazer nascer às crias alheias. Sobre as
benzições e partos ela nunca havia cobrado, pois diziam já os mais velhos que,
caso cobrasse por um Dom divino, isto poderia lhe trazer algum tipo de mau
agouro, pois de nada que venha de cima pode-se cobrar para passar a quem
precisa. Não cobrava, mas a situação estava quase insustentável e, por isso,
nunca negara qualquer agrado que lhe viessem a oferecer.
Todos os partos tinham a sua
peculiaridade, mas aquele era o mais emocionante, causava uma sensação
estranha, algo de muito mais especial dentro de si. Aquele era o segundo parto
de Margarida que tinha apenas treze anos de idade e, depois de terminados os
afazeres domésticos, costumava ainda brincar com suas velhas bonecas de pano. Era
apenas uma menina, tomada pelas responsabilidades da vida adulta, privada de
sua infância, mas não de sua infantilidade.
Justino era um homem de meia idade;
filho de Seu Malaquias, homem de viver acasalado, que tendo uma vez enviuvado
havia desposado dona Joaquina, que era mãe de Margarida e viúva de tempo ainda
fresco. A parteira, que era mulher de grande discrição, nunca ousara tocar
naquele assunto, ainda que isso lhe viesse sempre á garganta. Não cria que o
pequeno casal pudesse suportar por muito tempo o peso de um casamento como
aquele; ambos eram tidos com irmãos e, seguindo o seu pensamento católico, de
acordo com as suas compreensões quanto às divindades das coisas, era justo e
muito correto que Deus os quisesse castigar.
A dor aumentava sempre um pouco mais,
e eram apenas aquelas duas mulheres para dar a luz a uma nova vida. A bolsa já
havia rompido e, no terreiro, uma chuvinha enjoada continuava caindo; agora, enfatizada
por relâmpagos e trovões. As galinhas já haviam recolhido seus pintinhos para
um lugar seguro e a cadela Faísca comia a um canto da casa, de olhos
esbugalhados para a janela, um grosso angu de fubá que Loriano fizera antes de sair.
Naqueles tempos não se usava relógio;
as horas eram calculadas de acordo com a direção do sol; seguindo a direção da
lua, ou pelo instinto do sertanejo, não sendo possível afirmar nada além do fato
de que já era noite no sertão; uma escuridão silenciosa em que se ouviam apenas
os barulhos celestiais. Os gritos de Margarida eram longos e estridentes e
misturavam-se aos riscos dos relâmpagos e ao barulho dos trovões. De repente,
foi grande o silêncio no meio de todo aquele vazio, e dona Joaquina, com toda a
sua rude sapiência, sentenciou:
- Benza Deus, é um menino Margarida!
Cê é boa; pariu mais um menino, gordo e bonito por demais. Parece até que tá
rindo de felicidade.
Passado todo o sofrimento daquelas
mulheres, não tardou para que Justino e Loriano voltassem. Era o mês de Outubro,
quase o dia das crianças e de Nossa Senhora Aparecida; eles não sabiam, mesmo
assim cortaram o umbigo do menino e passaram azeite e álcool, para que ele
caísse com maior rapidez; rezaram um terço e o ofício em ação de graças a Nossa
Senhora do Bom Parto e deram–lhe o nome de José Queiroz de Oliveira. Havia
cessado a chuva e o céu se enchia de estrelas brilhantes, como se toda aquela
escuridão tivesse sido apenas um prenúncio de muita felicidade e luz na vida
daquela família humilde.
Há em todo o texto uma riqueza de descrições.As personagens tomam vida mediante o nascimento que está por vir,o autor é detalhista,há um conhecimento muito grande do ambiente que cerca as personagens,são pessoas simples e fortes.Um desfecho surpreendente com a vinda do rebento que recebe um nome.
ResponderExcluirConheço o autor pode se dizer, centenas de anos, maravilhoso, seu início do romance, que, não considero um romance, é a vida cotadiana qui no nosso sertão, principalmente na zoma rural onde bem conhecemos não de hoje, mas desde ante ontem. Parabéns confrade, estou lutando pelo seu pedido, mas este ano tou achando difícil, sabe os motivos. Mas luto em prol de vencer esta para o senhor...
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