sexta-feira, 14 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 2)

    O rio corria manso por entre as cortinas de mato virgem e as plantações de milho e feijão, servindo de abrigo e fonte de alimento aos animais, muito poucos, que ainda restavam. Nunca nada se pensou sobre a sua criação, e às pessoas, nunca se soube de onde e quando chegaram àquele lugar; pode ser até que não chegaram, talvez tenham se criado junto com o rio, filhos de um mesmo solo. A terra não era muito boa para o plantio, não era tão ruim quanto a do Germano e nem tão boa quanto à do Riachão; era podre, além de faltar cálcio e quase não prover de carboidratos, e eram raros os anos em que chovia o necessário para satisfazer aos sertanejos, pobres necessitados que nem os céus eram capazes de agradar; era tudo um bando de mal-agradecidos: se chovia reclamavam e se fazia sol já se punham a resmungar; sempre tinha um com a língua coçando para maldizer o tempo e os santos do céu e da chuva.

       Os lugares nem sempre eram próximos uns dos outros, mas era grande o número de cavalos, burros e carros de bois, todos os animais tratados com muito capim e um outro tanto de impaciência, e eram eles que faziam tudo parecer bem mais perto do que assim o eram.

          Era muito custoso viver enfurnado naquele fim de mundo, não se tinha quase nada de estrutura e apenas os grandes fazendeiros, que eram em pequeno número, é que possuíam veículo motorizado, os quais, em sua maioria, se resumiam a um velho jipe “willis” de três marchas ou um caminhão Ford “Cara-chata” movido a óleo e muito barulhento. Os pequenos agricultores quando necessitassem de consulta médica ou de fazer feira na cidade, eram obrigados a pagar absurdos por uma viagem perigosa e desconfortável ou, como sempre acontecia com os menos prevenidos, se humilhar até onde a vergonha lhes permitisse.

       Coração de Jesus era o destino daqueles sertanejos, uma cidadezinha muito mal equipada, distante uns quarenta quilômetros e interligada àquele “cu-de-judas” por estradas esburacadas e, dependendo do tempo, cheias de poeira ou muita lama. Para os casos mais importantes recorria-se à cidade, e, para outros assuntos - Caprichos do sertanejo- recorria-se aos pequenos lugarejos, como: Pitinha, Pitão, Água-Boa, Barro, São Caetano, Riachão, entre outros tantos recantos.

         Não é possível afirmar que existisse alguma lei naquele lugar, mas, de qualquer forma, os homens se faziam respeitar pelo fino do bigode e pelo poder indiscutível dos revólveres, facas e espingardas. No que tange às mulheres, haviam aquelas que eram prendadas e se criavam para casarem e dar à luz um monte de filhos, estas eram treinadas desde criança nos afazeres domésticos e, em falta de mãos fortes para a lavoura, partiam logo para a enxada, sem nunca reclamar. “E existiam ainda aquelas que, por motivos esdrúxulos, perdiam-se na vida, passando a ser chamadas de “raparigas”“ ou “mulheres de vida fácil”. Elas eram expulsas de casa e mandadas para bem longe daquele lugar, como se a distância fosse o melhor remédio para o crime que haviam cometido, passando a viver, na sua maioria, de prazeres incultos e amores incertos. Algumas dessas “perdidas” desapareciam pelas entranhas do mundo e, em sua grande parte, não davam mais sinal algum de existência, a não ser por boca de alheios como sinal de mau-agouro. Um desses casos foi a filha dos Ferreira, que se perdeu na vida pelas mãos de um agregado do pai; o velho, sabedor do acontecido, expulsou a filha, que, vendo-se sem um rumo a seguir, saiu pelo mundo desembestada. Passados alguns anos, um vizinho do velho, que viajara pelo estado de Goiás, chegou à casa da família Ferreira com a triste notícia de que sua filha perdida estivera morando numa cidadezinha no interior daquele estado, disse ainda que vivia dos lucros do seu corpo, tendo ela falecido de doença da vida pouco antes de ele voltar para a sua região. Outras mulheres , porém, voltavam gozando riquezas e talentos adquiridos nas suas experiências de vida fácil, como se fossem elas as donas do mundo. Altivez efêmera, pois, logo se ajuntavam com qualquer um jagunço vagabundo e, num piscar de olhos, se encontravam, novamente, com a cara na lama. Fazendo jus àquele velho dizer de que Deus nunca dá asas para cobra.

      Todos aqueles homens e mulheres eram de extremadas rudeza e ferocidade; escrúpulo é uma palavra que nunca se ousara proferir; até mesmo porque ninguém sabia de que assunto se tratava. Não havia ali, alguém que houvesse cursado ao menos o ensino básico; em sua maioria, estudavam até a terceira série do primeiro grau, às vezes pelo antigo Mobral, e depois largavam as mesas e bancos escolares para se embrenharem nos sofrimentos da labuta diária, pois era mais importante estar com a barriga cheia do que saber ler e escrever corretamente. Eram professores aqueles que soubessem fazer as quatro orações básicas de matemática e fossem capazes de soletrar algumas frases em português.

     Faz parte da cultura de cada um tudo aquilo que se fala, e, principalmente o que se faz; em alguns casos, também aquilo que se deixa de fazer. Como parte da cultura daquele povo, os banhos, para os que ousavam Tomá-los, eram realizados aos sábados e dias de festa, ainda assim quando elas fossem ,de alguma forma , bastante especiais; os cabelos eram cortados semestralmente, ou, como na maioria dos casos, por exigência dos piolhos e lêndeas. As distrações eram poucas, não obstante, todas as noites se contavam causos sentados à beira de uma fogueira, tomando alguns goles de cachaça ou se tocava sanfona, viola e triângulo – a orquestra do sertanejo – e, durante a madrugada, pouco antes de ir para a roça ou nos momentos de descanso, ouvia-se pelas ondas da rádio Capital as vozes potentes de Zé Bétio, Eli Corrêa e outros poucos radialistas.


      A realidade que se vivia na cidade grande dificilmente chegaria àquele lugar recolhido e escondido do resto do mundo, mas, como acontece em todo recanto, por menor e mais atrasado que possa parecer, o sonho de um futuro melhor também tinha espaço naqueles corações, e se projetava em cada descida da enxada do sertanejo ao arar ou revolver aquela terra dura e seca, nas vozes roucas das mulheres cantadeiras que lavavam roupas na beira do rio e nas brincadeiras das pequenas crianças que corriam o dia inteiro: ora de pega- pega, outras de pega- esconde, abóbora podre, cabra-cega, caiu no poço, anelzinho e outras tantas que ainda ali existiam naquele tempo; era o futuro que plantava a sua sementinha naquela terra, mas era um futuro estranho, diferente e maravilhoso de tudo o que eles um dia puderam imaginar.

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