quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O VELHO LORDE


Todas as quartas e sextas, o homenzinho chegava ao boteco sempre à mesma hora, como se fosse um lorde inglês do século XIX. Não dispunha de roupas bonitas. Ao contrário, vestia-se quase sempre com uma velha calça jeans surrada e uma camisa social encardida; calçava uma botina gasta e trazia sobre a cabeça um chapéu de massa, metodicamente inclinado para a esquerda, como que para compensar a sua tendência direitista. Mas agia sempre como os lordes de outrora.

Da minha janela, eu o avistava subindo a rua lentamente. Vinha do lado da lagoa. Não sei da sua origem, mas, talvez viesse do Riacho da Areia, do Riacho Fundo, quiçá do Cercado. Não vinha de muito perto, mas, também não devia ser de muito longe. Não ofegava, embora o suor lhe descesse pela testa. As botinas estavam sempre sujas de terra, ou lama, de acordo com o tempo. Cumprimentava a todos que passavam, sutilmente, com um balançar de cabeça. Eram sempre os mesmos atos.

Chegava por volta das dezesseis e trinta; batia os pés três vezes, ainda no asfalto; olhava a rua de cima a baixo e entrava no boteco, cumprimentando, placidamente, com um balançar de cabeça, aos que se encontravam no recinto. Sentava-se sempre à beira da porta; tirava o chapéu e punha a um canto da mesa, próximo ao seu braço direito; cruzava a perna direita sobre a esquerda e ficava balançando os pés num único ritmo, como se cantasse com os pés uma música há tempos aprendida.

Com o habito adquirido, o dono do boteco trazia-lhe sempre uma dose generosa de conhaque com licor de pequi, a qual o velho bebia num único gole. Depois, já descansado, estalava os dedos e pedia uma folha e uma caneta. O homem trazia junto do pedido mais uma dose de bebida, que, agora, era degustada lentamente, como se clareasse os seus pensamentos. Escrevia por um longo tempo e, quando já eram dezessete e quinze, sem que consultasse o relógio ou perguntasse as horas a alguém, deixava o dinheiro sobre a mesa; pegava o chapéu e punha na cabeça; despedia-se dos presentes e saía.

Faz algum tempo que o velho não aparece.   Por curiosidade, tenho perguntado sobre o seu paradeiro ao dono do boteco, que também não tem notícias. Á propósito, o mesmo diz não saber de onde é, ninguém sabe; surge sempre do mesmo lado, mas, ninguém nunca o viu em lugar algum. O homem também não sabe o que ele escreve, pois o faz com uma letra estranha, numa escrita quase indecifrável; ademais, conforme vaticinou, afastando minha curiosidade de cronista, não costuma bisbilhotar escritos alheios.

Continuarei à janela, pode ser que apareça uma hora destas; assente-se na mesma cadeira e, se a coragem não faltar, pode ser que eu vá ao boteco, peça um conhaque com licor de pequi e converse algumas amenidades com o velho. Talvez até leia os seus escritos, onde ele fale de um homem que fica sempre à janela, olhando os transeuntes, inventando personagens e que, numa tarde de céu anuviado, escreveu, por acaso, sobre um lorde inglês que nunca existiu, só pra inglês ler.  

5 comentários:

  1. Não sei por em palavras o que senti, só posso dizer que gostei muito. Parabéns autor pela boa percepção em captar o que o leitor gosta de ler.

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  2. Meu caro confrade, uma pena que, intelectuais aqui, no nosso sertão, são valorizado qui nem jornal veio usado... merecíamos mais apoio, mas, que fazer, confrade...

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  3. Gostei muito! Se ele reaparecer não vá encontrá-lo. Às vezes há mais poesia no que imaginamos e a realidade nos desencantaria.

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  4. Gostei muito! Se ele reaparecer não vá encontrá-lo. Às vezes há mais poesia no que imaginamos e a realidade nos desencantaria.

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  5. Parabéns!!
    Gostei muito.
    Gosto qdo o escritor ñ termina sua história,deixando que o leitor com sua imaginação finalize o texto.


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