BOM DIA PARA
PESCAR.
Elismar Santos
- Bom dia para pescar?
- As minhas costas doem.
Depois de responder a senha pedida,
Cândido adentrou um grande corredor esfumaçado e lembrou-se de quando era
criança, quando brincava de polícia e ladrão com os outros moleques nas mangas
de Zé Lopes; de como corriam pelas ruas esburacadas do Buriti, levantando
poeira, cortando os dedos nas pedrinhas soltas, para depois se esconderem
debaixo das Camas de Gato, confabulando brigas com os meninos do Renovação.
O corredor era longo e ele não
conseguia ver nem um palmo à sua frente. Conforme as ordens do homem de terno e
olhos de peixe morto, que o atendera olhando antes por uma brecha que abrira já
com a pergunta na ponta da língua, apenas seguiu em frente, direto, para chegar
ao grande salão.
Aquele caminho parecia uma
eternidade. Um enorme silêncio tomava conta de tudo e Cândido repetia em sua
mente as palavras que o padre dizia nas aulas de Latim: Rosa, Rosé, Rosae...
Caro Date Vernibus... Carpe Diem... Rosa, Rosé, Rosae... Caro Date Vernibus...
Carpe Diem. Nada disso tinha qualquer motivo; talvez fosse um mote, talvez uma
muleta, quiçá uma fuga para os momentos de ansiedade. Quando menino, roía as
unhas até que descem na carne e o sangue escorresse. Vez ou outra, já adulto,
ainda entoava baixinho alguns mantras budistas que um colega o havia ensinado
na época da faculdade, mas eram grandes e quase sempre os deixava entremeados.
Uma luz aparecia no final do
corredor. Tinha vontade de correr e chegar logo; mas aquele lhe era um ambiente
desconhecido, tinha que agir com cuidados e reservas. Não havia reconhecido a
voz que o ligara na semana anterior, o número era privado e só fora atendido
depois de muita insistência:
- Cândido?
- É ele.
- Que bom que atendeu. Contamos com
a sua presença, em uma semana, às vinte e três horas e três minutos, no
seguinte endereço.
- Mas...
- Caso não apareça, não nos
responsabilizaremos pela sua vida. Não avise ninguém, não traga bolsas ou
quaisquer pertences. Deixaremos sua passagem sobre a sua televisão... E não se
esqueça da senha que lhe direi.
O telefone desligou sem que Cândido
pudesse dizer qualquer palavra. Tudo acontecera como o homem lhe havia dito. E,
depois do telefonema, ele tinha a certeza de que alguém sempre o acompanhava.
Já não andava solícito como em outros tempos; não sorria como sempre fizera e
sempre olhava de um lado para outro a todo instante. Durante uma semana evitara
sair de casa; cumpria as obrigações do trabalho, mas, nada além disso. Chegava ao
escritório e sentava-se à mesa; trabalhava sem as amenidades de outrora e
voltava rápido para casa, quando trancava as portas, fechava as cortinas e
procurava não fazer barulho.
No dia marcado na passagem, saíra
ainda de madrugada, sem que ninguém o visse; dirigiu até Montes Claros, onde
deixou o carro estacionado numa garagem; pegou o ônibus para São Paulo,
adormecendo assim que o mesmo se pôs em movimento; depois pegou um táxi que já
o esperava no estacionamento. O taxista não dissera qualquer palavra, assim
como Cândido não ousara fazer qualquer pergunta. Novamente adormeceu, e, exatamente
no horário, o táxi deixou-o na porta de uma grande casa, numa ruazinha escura,
em uma cidade que ele não conhecia.
Era um salão enorme e vazio. As
paredes eram de tijolinhos sem reboco, num estilo rústico e frio. Uma lareira
dormia a um canto, sem lenha, com teias de aranha, como se há muito não fizesse
fogo. Havia duas janelas grandes cobertas por grossas cortinas negras e a única
luz daquele lugar vinha de um lustre, que apesar de possuir diversas
lampadazinhas contava com apenas três funcionando, dando àquele lugar uma
aparência sombria tanto quanto nos filmes de terror. Bem no centro do salão,
uma mesa enorme, de aparência pesada e antiga, de cor desbotada e cheia de
poeira e cinzas. Contava com dez cadeiras, sendo oito de cada lado e uma em
cada extremidade. Estas eram bem feitas, com assentos almofadados, todas muito
sujas, mas bastante conservadas.
Cândido não sabia o que fazer e por
algum tempo ficara parado junto à mesa, sem querer tocá-la, com medo mesmo de
respirar. Um silêncio plúmbeo perturbava a sua mente, não ouvia passos ou
qualquer mínimo barulho, apenas o seu respirar ofegante e as batidas trêmulas
do seu coração. Não pensava em nada, apenas olhava a sua volta. Atrás de si o
túnel por onde chegara e à sua frente, um pouco para a direita, uma minúscula porta,
praticamente invisível em meio à quase escuridão daquele lugar, pois as duas
lampadazinhas não era capazes de iluminar àquele ponto.
Talvez tenha ficado ali por dois ou
três minutos, que lhe pareceram uma eternidade. Já pensava em voltar pelo túnel
por onde havia chegado, quando uma voz cavernosa conteve tranquilamente o seu
ímpeto:
- Cândido?
O coração ainda mais acelerado.
Tentou conter o nervosismo, pigarreou timidamente com medo de que a voz não
saísse e firmando-se nas pernas respondeu:
- Sou eu.
- Que bom que o senhor veio, meu amo
ficará feliz. Desculpe pela demora, havia outras coisas a serem resolvidas;
além disso, era preciso atender aos outros convidados. Acompanhe-me, por favor.
Cândido não conseguira ver o homem
que lhe falava, distinguindo apenas uma sombra que surgia do clarão da porta
que se abrira à sua frente. Estava curioso para saber quem seria o amo daquele
indivíduo, mas a sua voz e os seus modos deixaram-no reticente, tinha medo de
perguntar e, por isso, achara que o melhor fosse mesmo acompanhá-lo.
O homem sumiu em meio ao clarão,
resmungando palavras de ordem, como se precisasse memorizá-las. Cândido
seguia-o com as pernas ainda trêmulas, sem dizer qualquer palavra, apenas
repetindo mentalmente as palavras das aulas de Latim. Andaram por outro
corredor, agora cheio de luzes, que davam um choque nas vistas do visitante,
que procurava fechá-los alternadamente, como que para amenizar as consequências
da claridade.
Chegaram, por fim, num enorme
escritório, onde outros quatros homens, todos de meia idade, encontravam-se
assentados em volta de uma mesa com tampo de vidro, em cadeiras limpas e
almofadadas, todos com cara de assustados.
- Sente-se naquela cadeira, por
favor. Meu amo não demora.
O homem saíra por onde chegaram. Era
um sujeito com cara fechada, um grande bigode grosso e óculos de grau. Não se
vestia como mordomo. Trajava-se bem, mas sem qualquer fineza, com uma calça
jeans recém tingida, uma camisa branca de botões e um sapato social bastante
gasto. Parecia nunca sorrir e seus olhos, mesmo detrás dos fundos óculos,
pareciam distantes e tristes.
Cândido
assentou-se na cadeira que lhe fora reservada e, durante muito tempo, nenhum
daqueles homens dissera qualquer palavra. Ficaram todos cabisbaixos, evitando
olhar para o vizinho, cada um pensando no porquê de estarem ali. Certamente,
todos haviam recebido a mesma ligação, com o mesmo convite e a ameaça, por
isso, ninguém ousava puxar qualquer assunto.
O escritório, ao contrário dos
demais cômodos, era bastante iluminado. As luzes estavam acesas, agora num
lustre intacto, com todas as suas lampadazinhas majestosamente funcionando,
embora a janela estivesse aberta. Era uma janela enorme, com uma alva cortina
arrastada para o canto direito. Ninguém ousara se levantar e olhar para fora,
mas, o ar que chegava ao escritório era límpido, com cheiro de flores campestres.
Talvez estivessem à beira de alguma mata, bosque ou jardim cuidadosamente
zelado.
O dia raiava poeticamente do lado de
fora daquele ambiente, e isto deixava Cândido intrigado. Havia adentrado aquela
casa britanicamente às vinte e três horas e três minutos e, certamente, se não
estivesse louco, ainda não haveria de ter amanhecido. Como explicar tudo
aquilo?! O melhor era ficar mesmo quieto, tentando não encarar os outros
visitantes... Rosa, Rosé, Rosae... Caro Date Vernibus... Carpe Diem.
- Perdoem-me pela demora, senhores.
Não queria tê-los feito esperar tanto, mas, vocês sabem, existem coisas que são
imediatas, inadiáveis, urgindo que se faça de pronto. Mas, bem, aqui estamos
todos.
Cândido tentava divisar o dono
daquela voz, mas uma forte luz atrás do homem deixava vislumbrar apenas o vulto
de um sujeito forte, imponente. Era uma voz macia, aveludada, como as dos
locutores de outros tempos, transmitindo alguma paz aos presentes, embora todos
ainda mantivessem os olhos assustados, arregalados.
- Sei que os senhores devem estar
curiosos para saberem o porquê de estarem aqui, mas, desculpo-me novamente por
tudo isso, afinal, nem tudo o que fazemos pode ser sabido por todos. Vocês
sabem, têm coisas que apenas nós precisamos saber. Eu pensei em reunir um de
vocês de cada vez, mas, frente ao tantos contratempos e as imposições destas
nossas modernidades, achei por bem que nos reuníssemos todos de uma única vez.
E não se preocupem, podem olhar para o colega do lado, vocês logo se esquecerão
de todos.
Cândido já não tinha medo. Uma
enorme paz tomava o seu espírito e a voz daquele homem mais parecia uma canção
que penetrava os seus ouvidos.
- Tenho acompanhado tudo o que têm
feito e acredito que novos rumos precisam ser tomados. Não dá mais para andarem
tão estressados, para brigarem tanto, para quererem tantas coisas
desnecessárias. Assim, vocês cinco são os meus escolhidos. Vocês podem não
aceitar as proposições que farei, no entanto, não aqui, mas depois, em diversas
situações, que guiaram os seus rumos, e dos seus iguais.
Cândido sentia uma grande alegria
tomar conta da sua alma, ainda que imaginava um grande peso sendo colocado nas
suas costas. Não dizia qualquer palavra, embora já soubesse quem fosse aquele
homem.
- De hoje em diante, vocês haverão
de ser responsáveis, sem serem piegas; serão modernos, sem serem obsoletos;
serão honestos e razoáveis, sem serem idiotas. E, como numa grande sociedade
secreta, reuniremos de tempos em tempos, a fim de discutirmos os rumos a serem
seguidos. Mas, não se preocupem, eu avisarei quando for o tempo.
Todos os homens entreolharam-se e
sorriram. E Cândido viu que não eram apenas homens. Eram mulheres e crianças,
velhas, doentes, mendigos, ricos e pobres; toda uma sociedade que se ria ao
mesmo tempo. E isto o deixava embriagado de uma inconteste felicidade.
De repente, um estalar de dedo e
tudo se transformou numa intensa claridade. O despertador já tocava, era hora
de ir para o trabalho.
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