terça-feira, 29 de outubro de 2019

CÂNDIDA, A ESPOSA DO ARNALDO



Antes de ser a esposa do Arnaldo, era Cândida. Sem o pai desde pequena, acostumara-se a trabalhar na roça para ajudar a mãe no sustento da casa. Eram apenas as duas numa casinha simples, próximo ao velho Chico, quase aos pés do cruzeiro, cerca de alguma distância do Santuário de Bom Jesus da Lapa.


Orlinda, a mãe, plantava feijão, milho e, nos tempos de menos chuva, espinhentos pés de Palma, com os quais a menina se cortava enquanto lavrava a terra. Era um sítio minúsculo, herança do velho Tobias, que morrera afogado no rio, numa noite quente, numa pescaria com os amigos. Dizem que também havia mulheres e que uma delas tinha sido a causa do assassinato, pois muitos não acreditaram no processo da polícia, pois o velho era exímio nadador acostumado a atravessar o Chico de um lado a outro por horas à fio. A mãe creditava toda culpa ao filho do Coronel Calixto; mas calara-se e guardava toda a mágoa para si, afinal, não existiam provas. Apenas certezas, e nada mais.

O que as duas colhiam mal dava para o de comer. A mãe não reclamava; rezava todos os dias com Cândida para que Deus provesse o sustento, para que chovesse e que não faltasse o básico em casa. A água a menina buscava no rio, trazendo o balde na cabeça, controlando o caminhar para que nada fosse desperdiçado. Por uns vinte minutos caminhava sem descansar, enchia o pote, duas vasilhas e voltava para mais uma remessa de água.

A casa não tinha energia elétrica e pelas frestas das velhas telhas comuns, a menina observava os fachos de luz entrecortados pelas folhas do coqueiro que balançavam nas noites de vento, até que  sono chegasse com todos os sonhos de menina-moça.

Durante algum tempo, a mãe entretera-se com a roça e a rezas. Sempre tomada por um olhar triste, falava pouco e quase nunca sorria para a filha. Às vezes quase não comia e deixava que Candinha repetisse o prato de feijão, arroz e palma; saía para debaixo do coqueiro e, assentada junto à porta, a menina via que ela chorava baixinho, com a cabeça entre os joelhos.

Já fazia quase um ano da morte de Tobias quando a mãe saíra pela primeira vez. Já era quase noite e a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro. Disse à filha que talvez demorasse, que dormisse e não abrisse a porta para ninguém. Cândida ainda quis perguntar aonde ia, mas calou-se e ficou olhando para a mãe que sumia depois do passadiço, vestindo um vestido de domingo, mal e sustentando sobre as gastas sandálias de salto.

As saídas maternas tornaram-se rotineiras, enquanto a fartura aumentava naquela casa. Durante o dia nada tinha mudado, ambas trabalhavam na arduamente na roça e rezavam pedindo as mesmas coisas de outroras. A mãe ainda não sorria, não olhava nos olhos de Cândida e sempre que a menina se via distraída, punha-se a chorar debaixo do coqueiro, com a cabeça entre os joelhos. Numa noite de calor, quando a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro, deu um beijo na filha – fazia tempo que não a beijava – disse que não tardasse a dormir e não esperasse por ela. Virou-se, atravessou o passadiço e nunca mais voltou.

Por alguns dias Cândida procurou pela mãe. Depois resignou-se e continuou a trabalhar na roça. A chuva quase não vinha e mesmo a Palma já não era tão vistosa como nos tempos de Orlinda. O arroz e o feijão estavam minguando nas vasilhas do velho armário de madeira e dinheiro já não havia para comprar qualquer mantimento. A menina, forçada a ser dona de casa, assentava-se debaixo do coqueiro e, como fazia a mãe, punha-se a chorar.

Novamente a lua nascia cheia. A fome fazia com que a barriga doesse. O calor era quase insuportável. Cândida estava deitada, quase nua, sobre o jirau onde dormia. O suor descendo pelo corpo. Notou que os seios eram durinhos, as pernas grossas e os cabelinhos da coxa brilhavam com o suor à luz da lua. Levantou-se de súbito, vestiu um surrado vestido de chita, em sutiã, e saiu. Trancou a porta e, sem olhar para trás, atravessou o passadiço. Lembrava-se da mãe e tinha vontade de chorar.

A mocinha caminhou por entre os trilhos até que chegasse à Lapa. Não sabia o que fazer, se pedia esmolas, se oferecia o seu corpo. Assentou-se nas escadarias do Santuário e pôs-se a rezar silenciosamente, depois levantou-se e caminhou lentamente pelas ruas cheias de esgoto, entre os mendigos, rumo ao cais do Velho Chico. Não haveria de ser como a Mãe, que certamente tinha vendido o seu corpo aos turistas para dar o de comer a ela. Não tinha qualquer boca para sustentar e, por isso, não precisava se sujar nos corpos de homens embriagados, porcos sem coração, sedentos de sexo em meio à sudorese daquela noite, enquanto as muriçocas zuniam nos seus ouvidos. Entregaria sua alma ao rio, acabando com o seu sofrimento, matando sua fome, juntando-se ao seu pai e, quem sabe, também à Orlinda que, decerto, haveria de não ter aguentado tamanha humilhação de vender-se e se jogara ao peixes. Seria aquele o seu fim.

A água estava fria, embora fizesse calor àquela noite. Cândida ia entrando devagar, deixando que a água engolisse cada parte do seu corpo virginal. Os pés iam se afundando na lama e um estranho prazer tomava conta do seu corpo. O rio a abraçava, assim como devia ser o abraço de um amor, e ela ia se afundando: as pernas, os joelhos, as intimidades, o umbigo, os seios, a boca, até que apenas o cabelo sobrasse por sobre as águas. A mocinha ia caminhando lentamente, sentindo-se consumida por um gozo intenso.

De repente, tudo escureceu, faltou-lhe o ar, faltaram-lhe as forças. Sentiu um bate forte na cabeça, como se alguém lhe puxasse pelos cabelos. Seria a morte que já lhe encaminhava para junto dos pais, ou seria o rio que a arrastava para o profundo do seu âmago? Sentiu a escuridão penetrar-lhe na alma e deixou que aquela força a arrastasse para junto de si. A cabeça doía, mas era bom. Aquilo lhe causava sofrimento, mas também lhe dava prazer; por isso, não resistia. Somente por isto.

Ainda era noite quando abrira os olhos. A cabeça doía, todo o corpo doía. Já não estava mais com o vestido. Estava toda nua, deitada sobre uma pequena cama, coberta por um lençol encardido. Não tinha morrido, ainda não era a sua vez. Uma lamparina acesa permitia que vislumbrasse o ambiente. Devia ser um velho barraco ou algum quartinho mais afastado; quase não havia móveis, apenas a cama, um pote de água e uma mesa, onde um homem tomava alguma coisa numa surrada caneca de alumínio. Ele olhou para ela e sorriu. Não era bonito. Ela tentou se levantar, mas tudo ficou escuro e, depois, apenas o silêncio.



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