Mal Willian dera o boa noite, ele desligou
a televisão. Não estava com sono, mas, desde os tempos da roça, tinha o costume
de dormir mais ou menos àquela hora. Quando criança não conhecia televisão e,
em casa, dormia enquanto o pai ouvia as conversas de Carlos Alberto com os
ouvintes da Nacional.
Agora, já velho, não tinha rádio nem
aprendera a manusear o celular e, como trabalhasse todo o dia, dormia cedo para
acordar ainda de madrugada. Tinha saído
de casa ao completar a maioridade, para servir o exército, e, depois de um ano
de soldo, resolveu que o melhor seria mesmo ficar na capital, onde teria
maiores chances de ser alguém e um dia poder buscar os pais para junto de si.
Desta vez o sono não veio e ele pôs-se a
relembrar os tempos na velha casa. O que teria acontecido com os pais, será se
estavam vivos e, se ainda existissem, reconheceriam-no? Dizem que as mães
reconhecem os filhos pelo cheiro; mas será que ele ainda tinha o cheiro daquele
tempo? A verdade é que mal se lembrava das suas feições; além disso, os pais já
deviam estar bem diferentes.
O peito apertava à medida que as lembranças
iam se aflorando e uma enorme tristeza doía frente ao esquecimento dos velhos.
Sentiu um vazio tomar conta da sua alma, sem saber o que fazer. Queria uma
esposa para chorar nos ombros, mas a única mulher a quem tinha amado havia
fugido numa noite sem estrelas, na garupa de uma moto, enquanto ele voltava da
obra onde trabalhava. Talvez por isso não tivesse lágrimas para chorar, pois
tinha gasto todas naquela noite.
Através das frestas da cortina, luzes
adentravam o quarto, enquanto os carros buzinavam lá fora. Na roça os barulhos
eram diferentes e, enquanto Carlos Alberto conversava com seus ouvintes, os
cachorros latiam as raposas que corriam pelo mato, enquanto as galinhas se
esgoelavam no terreiro; alguns sapos coaxavam na beira da barragem e uma Coã
cantava seus maus agouros nalgum pau ali por perto. A mãe se benzia: Valha,
minha Nossa Senhora!, enquanto ele sorria já quase adormecendo.
A voz que chegava aos seus ouvidos não era
a voz da mãe. Era uma voz estridente, metalizada, como a voz que o encarregado
escutava na obra, sempre cobrando prazos e cuidados. A voz da mãe era macia e apascentadora, embora ele não se lembrasse do seu timbre, mas somente das
sensações que sempre lhe causava. Era diferente do pai. A voz do velho era
forte e sempre exigia respeito; um respeito que se aproximava de um medo bom e
carinhoso.
O sono não chegava e o peito apertava cada
vez mais. Ele queria se levantar e caminhar pelas ruas; talvez parasse nalgum
boteco e pedisse uma pinga para se acalmar. Não tinha forças e, talvez, nem
mesmo vontade tivesse de fato. Queria mesmo era não ter saído da roça, não ter
ido para o exército, não ter conhecido mulher alguma; ter ficado junto dos
pais.
Um turbilhão de pensamentos se emaranhava
na sua cabeça. O barulho dos carros na rua penetravam os seus ouvidos e as
luzes que entravam pelas frestas da cortina agora batiam de encontro aos seus
olhos. Uma névoa estranha formou-se à sua frente e, de repente, todo o barulho
cessou. Uma voz macia acalentou o seu peito, enquanto uma mão pesada lhe tocava
o ombro. Ele se levantou quase flutuando e, segurando nas mãos dos velhos, como
quando era criança, saiu pela porta da rua.
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