O MENINO VOADOR
A história não conta. Não é interessante falar de uma história que não esteja situada num ponto da própria história. Mas, de fato, aconteceu. Não existia televisão. Ninguém nas redondezas do Sanharó conhecia o pai do avião; nenhum dos sertanejos, homens rudes e incultos, tinha namorado o vôo de um avião. Avistassem-no e preveriam o fim do mundo. Não se pode afirmar uma data, nada é possível que se prove, mas os pássaros, com toda certeza, já sobrevoavam o lugar. A vida do homem do sertão era difícil, os tempos eram cruéis, os sonhos eram escassos; a miséria era a companheira do homem do campo.
A avó, já beirando o rio da morte, dormia num quarto perto da cozinha; parecia gozar um sono tranqüilo, mas ele sabia do seu sofrimento, da sua angústia profunda, da sua imensa vontade de adormecer numa noite estrelada e nunca mais se levantar. O pai, que era um homem bom e trabalhador, alçou vôos maiores e foi morar com Deus, junto dos anjos e São Pedro, o seu santo de devoção. A mãe era uma mulher forte; às vezes ele parava e ficava olhando firme a sua face: parecia velha, cansada, um verdadeiro trapo; eram os restos de uma vida de sofrimento e desencantos. Ela trabalhava na roça, cuidava da casa, cuidava da velha adoentada e, todos os dias, ao sair para o trabalho e quando chegava de tardezinha, abençoava-o com um carinhoso beijo na testa.
A casa era velha, pequena e um tanto apertada: dois quartos pequenos, uma sala e uma cozinha; as portas eram escoradas com tocos ou lascas de lenha; o chão de terra batida era sempre coberto de folhas, fumo que a velha quentava na cinza para limpar as dentaduras e titica das galinhas que invadiam a casa em busca de restos de alimento. Desde a morte do velho nunca mais puderam comer um naco que fosse de carne; passavam por sérias necessidades e a mãe já estava por desistir da vida.
Geraldo era muito pequeno, mirrado, tinha os cabelos negros e uns olhos grandes que transmitiam uma imensa tristeza. Passava todo o dia sentado junto à porta da cozinha observando os pássaros que voavam nas árvores do quintal; eram pardais, papa-capins, pássaros pretos, canários e outros tantos cujos nomes ele desconhecia. Os papa-capins eram de extraordinária beleza, mas eram os canários que mais lhe chamavam a atenção, gostava de vê-los voando, era como se desfilassem no ar. O menino não era capaz de pensar tamanha comparação, mas, à sua maneira singela de refletir, os canários eram como uns bailarinos a dançarem numa pista de gelo; com leveza, graciosidade; uma arte inimitável.
A mãe acordava antes de raiar o dia, preparava o café, arrumava a casa e seguia para o trabalho na roça. Assim que os pássaros começavam a tocar a sinfonia musical da manhã, o menino se levantava, tomava o seu café e sentava-se junto à porta, onde permanecia até que a mãe retornasse para preparar o almoço. A avó passava o todo o dia deitada, ora desfiando as contas de um velho rosário, ora conversando com os espíritos, contando casos de muito tempo passados.
Ele gostava de observar o vôo das aves, achava-o muito bonito. No começo, quando se entendeu por gente, observava-lhes apenas a beleza dos vôos, não pensava, não imaginava, apenas olhava àquela cena como um mero espectador. De uns tempos, porém, uma idéia andava martelando a sua cabeça: por que os pássaros voam? Daí surgiam várias outras questões: Para quê ? Para onde? Como... Como é que um bichinho daqueles podia voar tão rápido e numa altura tão grande? Às vezes parecia que ia enlouquecer, começava a matutar aquelas perguntas e não conseguia mais parar de pensar, até que sua cabeça doía e ele começava a chorar. Uma grande agonia tomava conta do seu coração, um vazio fazia a barriga doer; o menino sofria então ele corria e pulava dentro do rio para poder se refrescar.
Geraldo não tinha coragem de contar o que sentia para a sua mãe; quase nunca conversavam de verdade, a não ser quando ela o quisesse reclamar ou passar alguma orientação. Um dia, quando a mãe estava para a roça, foi até o quarto da avó; a velha parecia dormir, tinha os olhos fechados e a boca estava semi-aberta, como se quisesse roncar mas não tivesse ar para completar o movimento, não lhe saía barulho algum além do habitual ronronar sôfrego que mais parecia um último suspiro. Chegou bem junto da cama, balançou um pouco o abdome da velha e, vendo que estava acordada, perguntou:
-Vovó, por que os pássaros voam?
A avó parecia pensar um pouco antes de responder, se bem que nem mesmo ela sabia. O menino gostava muito da velhinha e a via como a pessoa de maior sabedoria na face da terra, talvez pelos cabelos embranquecidos, talvez por seu rosto enrugado. Ele era muito pequeno e não era, ainda, capaz de distinguir velhice e sabedoria.
– Ora, meu filho, é porque os pássaros têm pena.
O menino tinha pensado nessa hipótese, mas achava simples demais, ademais, as emas também têm penas e nem por isso são capazes de voar. Mas a avó era muito inteligente e, com certeza, tinha toda a razão.
- Quer dizer, então, que se eu pegar umas penas e colar no meu corpo eu também posso voar?
A velha não tinha idéia de como responder àquela pergunta do neto. Nunca tinha pensado no assunto. Talvez pudesse dar certo; mas por que, então, as galinhas não voavam? Quem sabe pudesse haver uma técnica especial, senão, só servissem penas de passarinho voador...
- Olha, meu filho, qualquer um pode voar. É a coisa mais fácil que existe, basta ter técnica e usar asas de passarinho, que são mais leves e tão forte quanto às penas de galinha.
- Será que palha de arroz serve vovó?
Mais uma vez a velha não sabia o que responder. Virou a cabeça para o lado e começou a pensar; nunca tinha pensado nesta hipótese, nunca tinha pensado em gente voando como passarinho. Tentou imaginar duas asas de palhas de arroz; uma armação de arame; um saco de estopa; linhas fortes.
-Pode ser. Eu acho que agüenta...
Antes que ela pudesse terminar, o menino saiu em disparada para o quintal. Tinha de começar os preparativos; logo, se conseguisse todo o material que precisava, faria o seu primeiro vôo e poderia sentir a mesma liberdade que os pássaros sentem.
A mãe estranhou quando, ao chegar da roça, não avistou o menino sentado junto à porta; perguntou à avó sobre o seu paradeiro, ela disse não saber de nada, a cabeça andava fraca e nem mesmo o que havia se passado a cinco minutos a velha seria capaz de recordar. Já era noite quando o menino apareceu em casa. Ao ser indagado pela mãe sobre o seu desaparecimento, disse que tinha passado todo o dia na beira do rio inventando e que no outro dia teria que voltar para que ele lhe ensinasse algumas técnicas. A mulher não entendeu nada do que o filho queria dizer, mas despreocupou-se, eram apenas maluquices de criança.
Durante os dois dias seguintes os fatos se sucederam: o menino saía de casa pouco depois que a mãe seguia para o trabalho. No primeiro dia tratou da construção das asas; nos outros, repetia a mesma cena: corria batendo os braços, como se fossem asas e pulava no rio. Era uma tarefa árdua, mas ele sabia que a recompensa logo chegaria.
Finalmente o grande dia havia chegado. Pegou as asas e com elas sobre os ombros seguiu para casa. Era domingo e a mãe não trabalhava, queria fazer-lhe uma surpresa. Chegou na ponta dos pés, escondeu as asas a um canto da parede , sentou-se junto à porta e pôs-se a observar a paisagem. Não dava para pular de nenhum lugar, a não ser que saltasse da mangueira, mas de lá não poderia correr, tomar impulso. Geraldo ficou algum tempo pensando, até que chegou à conclusão: “É de lá que os pássaros voam, sem correr, sem ter qualquer força para impulsioná-los”. Pegou novamente as suas asas, vestiu-as e com toda a dificuldade subiu a mangueira até o galho mais alto da árvore. Sentiu um friozinho na barriga, estava com medo, mas pensou na alegria que a sua mãe sentiria ao vê-lo voar, pensou na liberdade que, até aquele momento, somente os pássaros desfrutavam.
Antes de pular, com as asas nas costas, gritou por sua mãe, que estava na cozinha e pediu:
-Bença, mãe!
A mãe não teve nem tempo de abençoar o filho.
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