As duas ainda dormem. Beatriz está abraçada ao ursinho. Um velho urso de pelúcia que sua avó lhe deu de presente num dos seus primeiros aniversários. Agora já conta cinco anos e dorme como um anjinho, embora uma tosse recorrente faça com que ela mexa-se quase que a toda hora.
O seu quarto é colado ao nosso. Tem uma caminha revestida por um lençol com desenhos de uma menininha; uma cômoda com alguns brinquedos em cima e uma caixa de papelão a um canto, com outros brinquedos a cair pelo chão.
As lembranças me vêm como enxurrada. De quando nasceu; quando brincava pelo quintal de terra batida; quando foi à escola pela primeira vez. Por mim, nunca haveria de ter ido à escola. Aprenderia em casa, sobre a minha batuta, com livros e lições.
Da primeira vez, foi toda feliz enquanto uma lágrima quente descia-me dos olhos. Das outras, ia a contragosto, por obrigação; não gostava mais dos livros, do quadro-negro, dos professores e seus ensinamentos. O seu aprendizado crescia a olhos vistos, assim como a sua insatisfação. É uma revolucionária.
A luz está apagada, mas a luz da lua passa pela janela de vidro e bate levemente na sua face. Os cabelos negros caindo parte sobre o rosto, deixando-o com uma aparência misteriosa, feito fosse uma poesia prestes a ser escrita numa folha de papel. Uma poesia forte, com traços de beleza e rebeldia, assim como devia ser toda ela. Não gosto de poesias melosas, cheias de soneto, de assonâncias e aliterações. A verdadeira poesia tem que ser dura, cruel, sem devaneios nem malemolências.
Paro por um tempo a contemplá-la, como se eu fosse embora. Não sei. Apenas uma sensação estranha me dói no peito. As lembranças da senhora presidenta; uns calafrios a subir pela minha espinha; o perturbador pressentimento de que ela me estava escondendo alguma coisa. Algo de muito duro, talvez uma revolução, uma traição, uma guerra talvez.
Beatriz, adormecida sobre a cama, deve sonhar sonhos bons. Talvez sonhe com o ursinho que também dorme no calor do seu abraço. Ou talvez nem sonhe; apenas dorme, desligando-se deste mundo louco e transviado.
Tenho anseios de ligar a TV. Talvez a senhora presidenta tenha voltado. Talvez dê alguma nova explicação; fale do que acontece; do que estar por acontecer. Não. Não ligo. Assento-me no sofá e fico a olhar a tela desligada à minha frente. É tarde e não tenho sono. Quero deitar; mas este sentimento me mantém acordado, como que em vigília, eterno estado de alerta. No nosso quarto, Teresa dorme solitária; a espera de um abraço que tarda em chegar.
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