quarta-feira, 20 de julho de 2011

DIÁRIO DE BORDO (2º Fragmento)

As duas ainda dormem. Beatriz está abraçada ao ursinho. Um velho urso de pelúcia que sua avó lhe deu de presente num dos seus primeiros aniversários. Agora já conta cinco anos e dorme como um anjinho, embora uma tosse recorrente faça com que ela mexa-se quase que a toda hora.
O seu quarto é colado ao nosso. Tem uma caminha revestida por um lençol com desenhos de uma menininha; uma cômoda com alguns brinquedos em cima e uma caixa de papelão a um canto, com outros brinquedos a cair pelo chão.
As lembranças me vêm como enxurrada. De quando nasceu; quando brincava pelo quintal de terra batida; quando foi à escola pela primeira vez. Por mim, nunca haveria de ter ido à escola. Aprenderia em casa, sobre a minha batuta, com livros e lições.
Da primeira vez, foi toda feliz enquanto uma lágrima quente descia-me dos olhos. Das outras, ia a contragosto, por obrigação; não gostava mais dos livros, do quadro-negro, dos professores e seus ensinamentos. O seu aprendizado crescia a olhos vistos, assim como a sua insatisfação. É uma revolucionária.
A luz está apagada, mas a luz da lua passa pela janela de vidro e bate levemente na sua face. Os cabelos negros caindo parte sobre o rosto, deixando-o com uma aparência misteriosa, feito fosse uma poesia prestes a ser escrita numa folha de papel. Uma poesia forte, com traços de beleza e rebeldia, assim como devia ser toda ela. Não gosto de poesias melosas, cheias de soneto, de assonâncias e aliterações. A verdadeira poesia tem que ser dura, cruel, sem devaneios nem malemolências.
Paro por um tempo a contemplá-la, como se eu fosse embora. Não sei. Apenas uma sensação estranha me dói no peito. As lembranças da senhora presidenta; uns calafrios a subir pela minha espinha; o perturbador pressentimento de que ela me estava escondendo alguma coisa. Algo de muito duro, talvez uma revolução, uma traição, uma guerra talvez.
Beatriz, adormecida sobre a cama, deve sonhar sonhos bons. Talvez sonhe com o ursinho que também dorme no calor do seu abraço. Ou talvez nem sonhe; apenas dorme, desligando-se deste mundo louco e transviado.
Tenho anseios de ligar a TV. Talvez a senhora presidenta tenha voltado. Talvez dê alguma nova explicação; fale do que acontece; do que estar por acontecer. Não. Não ligo. Assento-me no sofá e fico a olhar a tela desligada à minha frente. É tarde e não tenho sono. Quero deitar; mas este sentimento me mantém acordado, como que em vigília, eterno estado de alerta. No nosso quarto, Teresa dorme solitária; a espera de um abraço que tarda em chegar.

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