sábado, 11 de fevereiro de 2012

O LOUCO DE CADA UM


O LOUCO DE CADA UM



Levaram-no ao especialista e classificaram-no como louco. Pelas manhãs de sol perambulava pelas ruas do centro, pontualmente, como se fosse um relógio, sempre no mesmo horário em cada lugar. Carregava consigo todos os seus pertences. Dentro de um velho saco encardido encontravam-se uma calça velha, rasgada e suja; uma bermuda do Flamengo costurada com linha verde, suja; duas camisas, sendo uma social e outra esporte, ambas sujas, rasgadas e velhas.
Ele era velho. Devia contar uns cinquenta anos. Não sabia a sua idade e dizia ter cinquenta e sessenta e duzentos e cinco. Saía caminhando e falando sozinho. Falava coisas fúteis, conversava com amigos imaginários e contava dinheiro; eram milhões e milhões e trilhões o que ele contava. Sempre nas manhãs de sol.
Se chovia não andava. Aninhava-se no coreto da pracinha da prefeitura; acomodava-se e punha-se a cantar músicas antigas: “Pastoras vamos embora, que a madrugada já vem, em busca de nossas cabanas. E lá não ficou ninguém”; músicas de infância: “Dindin, dindin olá - lá, quem não gosta dela de quem gostará” e músicas religiosas: Pelas estradas da vida, nunca sozinho estas, contigo pelo caminho, Santa Maria vai...”. Cantava firme, sabia fazer os graves e agudos; tinha a voz limpa e a canção parecia sair do fundo de sua alma.
De suas casas, acomodadas em seus lençóis e edredons, as pessoas ouviam o seu cantar, misturando-se ao barulho melodioso da chuva. E, enquanto tomavam café e comiam requeijão, lembravam-se dos tempos de criança; das folias de reis, dos tempos do jardim de infância, das manhãs de domingo em que se vestiam com a mais bela roupa e marchavam para a igreja receber a hóstia e a bênção do Pai Eterno.
Vez ou outra, um mais emocionado vestia-se de um guarda-chuva; armava-se de um copo de café e alguma mistura e saía porta a fora. Ele agradecia, pedia que o Pai abençoasse o santo homem e punha-se a comer. A canção cessava e o que se ouviam eram apenas os pingos de chuva caindo sobre o asfalto duro e sem alma.
Num dia de sol ele desapareceu. Não perambulava mais pelas ruas do centro e, nos dias de chuva, não cantarolava mais as músicas de antigamente no coreto da pracinha. Alguns haviam perdido a esperança de reencontrá-lo, enquanto outros se aninhavam em seus sofás almofadados, silenciosos, esperançosos de que uma voz angelical se unisse ao som dos pingos caindo. Não vinha qualquer cântico, nem palavras, apenas suspiros.
Outros loucos apareceram, mas eram comuns; loucos de outras plagas que vinham em busca de migalhas, de piedades alheias. Aquele não. Não era pedinte, não necessitava de piedade, nem de esmolas. Queria apenas cantar, ser livre e caminhar tranqüilo por aquelas paragens. Os outros eram loucos de outros e não o seu louco, afinal, cada um tem um louco que merece. A tristeza tomava conta daquele povo; até que um, mais atento, sentenciou:
- Ele não era louco. Loucos somos nós, agarrados ao passado, preocupados com o futuro. Ele era puro. Puro de mais para nós.
Todos concordaram com o orador. Do seu cantinho, coberto de flores, sob os cânticos angelicais, ele reprovava aquele pensamento. Não queria se puro, desejava apenas ser louco; o louco daquele povo!

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