terça-feira, 22 de julho de 2014

MARIA-DA-FACA

Dizem que Maria-da-Faca existiu de verdade. Morava no Sanharó e – isto era o que lhe dava o vulgo- andava sempre com dois facões na cintura. De praxe, era uma pessoa tranquila, mulher de hábitos simples e andar cabisbaixo. Muito respeitosa, não gastava de brincadeiras ou chacotas; mas, aceitava de bom grado algumas doses de conversa e um trago de pinga para esquentar o frio de mês de Julho, que sempre se fazia para ela.

Namorado, pelo que se sabe, nunca tivera. Se bem que naqueles tempos, no meio do mato, longe dos progressos urbanos, alguns viviam ainda como bichos e quase tudo era válido, sem que os outros tomassem conhecimento. Mas, é fato que Maria-das-Facas não gostasse de conversar sobre homens, nem com homens. Daí é que surgiram várias das muitas lendas sobre ela.

Dizem que certa feita, enquanto andava pela capoeira, a procura de garranchos para atiçar o fogo, Maria defrontou-se com um vaqueiro que, bêbado, cambaleava sobre um cavalo magricelo. De certo, estaria ele vindo de Zé de Cristino ou de Paulão. Era domingo, dia de missa, de jogo, de bebedeira. Ela havia ido à missa de manhã. Não quisera ver o jogo, nunca gostara de multidões. Preferira ir embora, cuidar dos bichos que ficaram no rancho.

O homem veio para o seu lado. Dera um cumprimento preguiçoso e começara a descer do cavalo. Maria, que o conhecia de uma fazenda próxima, não fizera qualquer menção de correr, mas, segurara firmemente uma das facas. O bêbado, cambaleante, com os olhos quase fechados, caminhava torto para o seu lado, conversando uma língua embolada, tropeçando nos tocos, fedendo a pinga com limão.

O sol já estava se pondo e Maria não havia achado muita coisa por ali. Antes tivesse ido embora, procuraria os garranchos mais perto do rancho e não teria que aguentar àquela aporrinhação. Com cara de nenhum amigo, ordenou que o abusado se afastasse, que pegasse o seu cavalo e partisse; mas o homem fizera-se de desentendido. Chegou-se junto dela e pôs a mão em seu ombro, já quase beijando a sua boca.

Maria sentiu um arrepio tomar todo o seu corpo. Nunca sentira um homem tão de perto, com todo aquele calor, aquele cheiro, aquele suor. Suas pernas tremeram, as mãos começaram a suar e um frio intenso começava a tomar conta da sua barriga. Mas, antes que se apaixonasse, quando ele já encostava o seu corpo no dela, com um abraço desajeitado, eis que a faca de Maria perfurou o seu bucho. E tudo começou a fazer sentido para ambos.


Maria guardou a faca, pegou o pouquinho de gravetos que achara e voltou para casa, enquanto o bêbado, estatelado no chão, rezava as orações que o padre havia ensinado de manhã. Dizem que o acharam, ainda vivo, na manhã seguinte, já com as formigas  passeando pelo corpo, enquanto Maria-da-Faca, banhava-se em água fria, só pra ver se abaixava o fogo.

2 comentários:

  1. Elismar
    Bela crônica. E o bêbado se ferrou, tropeçou nas próprias pernas. Maria-da-Faca ficou com o fogo e com a faca, mas depois deve ter-se deliciado n]ao com um bêbado, mas sim alguém que lhe acolhesse com mais dignidade.
    Abraços
    Adalbertpo Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

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  2. É um barato ler suas crônicas Elismar. Meus parabéns mestre!

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