terça-feira, 23 de maio de 2017

A BINGA

O grande Fernando Sabino, em uma das suas inúmeras e magistrais Crônicas, disserta sobre a importância do canivete à caracterização do homem, chegando-se ao ponto de quase se fazer necessário o uso do instrumento para que o menino pudesse ser entendido, ou ao menos se sentisse, como um adulto, sobretudo no seu tempo de rapazote.

De fato, não sou do tempo em que adolescentes envergavam qualquer material cortante a tiracolo, mas, também não serei leviano em dizer que nunca tive contato com um canivete. Tendo, quando criança, grande parte dos parentes morando na roça e rodeado por fumantes, nada mais comum que o canivete sempre estivesse ao alcance ao menos dos meus olhos, embora este nunca me chamasse a atenção em demasia.

Os canivetes eram bonitos, bem trabalhados e, para muitos donos, eram verdadeiras obras de arte; mas, eram as bingas que mais me brilhavam aos olhos. Os isqueiros já existiam em sua forma plástica e alguns ainda vinham com adesivos de mulheres seminuas que, quando acendidos os instrumentos, despiam-se lentamente. Também existiam os fósforos, com os quais, a propósito, ao embrulharmos com os papeis metálicos dos maços de cigarro, fazíamos pequeninos foguetes que, se acendidos, saíam voando desgovernados.

As bingas nada mais eram que velhos isqueiros, com toda a sua rusticidade e elegância. Existiam em cores douradas ou prateadas e traziam no seu bojo uma enorme linha de algodão que era acesa pelas faíscas que saíam das pedrinhas friccionadas pelos polegares do seu dono. E estes, na maioria das vezes, eram fumantes inveterados, que andavam sempre com uma capanga dependurada com todos os apetrechos para uma “boca de pito”.

Ainda me lembro do Tio Neco assentado no banco do boteco do meu pai, ambos conversando amenidades, enquanto, com as mãos hábeis, aquele alisava com o canivete uma palha seca de milho, para depois picar o fumo e espalhá-lo calmamente. A binga tratava de acender o roleiro, que parecendo uma Maria-Fumaça anuviava o ambiente, dificultando mesmo a respiração de nós, pequenos fumantes passivos.

Nunca me interessei pelo cigarro, embora achasse interessante todo o ritual que o Tio Neco sempre seguia na confecção do seu pito. O canivete servia-me para descascar laranjas, quando íamos à roça de Dindinha. A binga, por sua vez, era o que dava a luz a todas as pueris sensações que ainda hoje permeiam as minhas lembranças. É a sua recordação que me remonta às brincadeiras no velho pomar, enquanto catávamos jabuticaba, mangas e laranjas; às manhãs em que, ainda bem cedo, descia para o curral, balançando entre os dedos um pequeno copo de plástico, onde haveria de tomar o leite ao pé da vaca; aos dois martelinhos de quebrar cristais, que ganhei de Tio Calixto e de Tio Manel e até hoje procuro nos antigos guardados...


Às vezes me pego relembrando a velha binga com a qual Tio Neco acendia o seu pito e, junto, relembro toda uma infância que nunca quis me abandonar e sempre me inflama a ideia de que antigamente tudo era melhor, embora eu saiba que isto não passe de mera nostalgia de poeta.

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