O grande Fernando Sabino, em
uma das suas inúmeras e magistrais Crônicas, disserta sobre a importância do
canivete à caracterização do homem, chegando-se ao ponto de quase se fazer
necessário o uso do instrumento para que o menino pudesse ser entendido, ou ao
menos se sentisse, como um adulto, sobretudo no seu tempo de rapazote.
De fato, não sou do tempo em
que adolescentes envergavam qualquer material cortante a tiracolo, mas, também
não serei leviano em dizer que nunca tive contato com um canivete. Tendo,
quando criança, grande parte dos parentes morando na roça e rodeado por
fumantes, nada mais comum que o canivete sempre estivesse ao alcance ao menos
dos meus olhos, embora este nunca me chamasse a atenção em demasia.
Os canivetes eram bonitos,
bem trabalhados e, para muitos donos, eram verdadeiras obras de arte; mas, eram
as bingas que mais me brilhavam aos olhos. Os isqueiros já existiam em sua
forma plástica e alguns ainda vinham com adesivos de mulheres seminuas que,
quando acendidos os instrumentos, despiam-se lentamente. Também existiam os
fósforos, com os quais, a propósito, ao embrulharmos com os papeis metálicos
dos maços de cigarro, fazíamos pequeninos foguetes que, se acendidos, saíam
voando desgovernados.
As bingas nada mais eram que
velhos isqueiros, com toda a sua rusticidade e elegância. Existiam em cores
douradas ou prateadas e traziam no seu bojo uma enorme linha de algodão que era
acesa pelas faíscas que saíam das pedrinhas friccionadas pelos polegares do seu
dono. E estes, na maioria das vezes, eram fumantes inveterados, que andavam
sempre com uma capanga dependurada com todos os apetrechos para uma “boca de
pito”.
Ainda me lembro do Tio Neco
assentado no banco do boteco do meu pai, ambos conversando amenidades, enquanto,
com as mãos hábeis, aquele alisava com o canivete uma palha seca de milho, para
depois picar o fumo e espalhá-lo calmamente. A binga tratava de acender o
roleiro, que parecendo uma Maria-Fumaça anuviava o ambiente, dificultando mesmo
a respiração de nós, pequenos fumantes passivos.
Nunca me interessei pelo
cigarro, embora achasse interessante todo o ritual que o Tio Neco sempre seguia
na confecção do seu pito. O canivete servia-me para descascar laranjas, quando
íamos à roça de Dindinha. A binga, por sua vez, era o que dava a luz a todas as
pueris sensações que ainda hoje permeiam as minhas lembranças. É a sua recordação
que me remonta às brincadeiras no velho pomar, enquanto catávamos jabuticaba, mangas
e laranjas; às manhãs em que, ainda bem cedo, descia para o curral, balançando
entre os dedos um pequeno copo de plástico, onde haveria de tomar o leite ao pé
da vaca; aos dois martelinhos de quebrar cristais, que ganhei de Tio Calixto e de
Tio Manel e até hoje procuro nos antigos guardados...
Às vezes me pego relembrando
a velha binga com a qual Tio Neco acendia o seu pito e, junto, relembro toda
uma infância que nunca quis me abandonar e sempre me inflama a ideia de que
antigamente tudo era melhor, embora eu saiba que isto não passe de mera
nostalgia de poeta.
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