terça-feira, 30 de maio de 2017

CARDOSO

Fazia tempos que não nos víamos. Quando crianças, o Cardoso e eu não éramos grandes amigos. Ele morava próximo ao Renovação, num barraco com telhas de amianto e paredes sem reboco. Filho de mãe separada, com mais quatro irmãos mais novos para cuidar, desde cedo se dispusera ao trabalho. Na escola era um fracasso, tendo repetido algumas séries por vários anos, até abandonar de vez os bancos escolares.

Não me lembro ao certo de como nos conhecemos, pois nunca fomos colegas de escola. Recordo-me de quando vendíamos picolés e nos encontrávamos na sorveteria do Seu Tião; mas, certamente, eu já o tinha conhecido antes. Chegávamos depois do almoço; conversávamos um pouco, enquanto o homem punha os picolés no carrinho e, depois, saíamos cada um para o seu lado.

Das tardes no campinho de Menom, ou nos jogos detrás do parque, não me lembro do Cardoso. Apenas uma vez o vi brincando, com os seus irmãos, na porta da sua casa. E mesmo durante a brincadeira seus olhos eram tristes, cansados, sempre pedindo socorro, ainda que silenciosamente.  As conversas que tínhamos eram rápidas e sem qualquer coisa de importante, assim como são as conversas de criança. O Cardoso não era, de fato, um meu amigo, éramos conhecidos e isso já nos bastava.

Quando a mãe do Cardoso morrera, vieram alguns parentes e levaram as crianças. Aquele, já sendo um rapazinho, ficara no barraco, sozinho, trabalhando e não conversando com ninguém; até que, num dia qualquer, ninguém mais teve notícias sua. Alguns disseram que ele havia endoidecido e fugido mato a dentro e que, àquela hora, já devia ter sido comido por alguma onça; outros afirmavam que ele tinha sido visto pela última vez à beira do asfalto, pegando carona para Montes Claros.

Ontem revi o Cardoso. Ainda cultivava a mesma tristeza nos olhos. Estava ainda mais magro e encurvado; vestia-se pobremente e a sujeira parecia arraigar-se no seu espírito. Estava assentado sobre alguns papelões numa esquina, bem no centro da cidade, pedindo esmolas, silenciosamente gritando por socorro.

Parei-me do outro lado da rua e fiquei a observá-lo. Nunca fôramos grandes amigos, mas me doía vê-lo daquele jeito. Enfiei-me em meio aos carros e chamei pelo seu nome. Cardoso se levantou, olhou-me nos olhos e sorriu. Com toda a tristeza que sempre lhe fora comum, deu-me um abraço, perguntou pelos velhos conhecidos, disse da saudade que sentia da nossa cidade e dos tempos em que éramos crianças; falou da vontade que tinha de voltar, mas, resignado, disse que não lhe era possível, pois não tinha mais os seus, não haveria por que voltar.

Eu quis dar a ele algum dinheiro, mas, veementemente, fui forçado a recuar. Disse-me que já lhe bastavam as lembranças de quando era feliz, junto da sua mãe e dos seus irmãos. Alegou que já era tarde e que tinha de ir embora. Pegou uma velha coberta, um bocado de papelões e, afastando-se, pediu:


- Por favor, meu amigo, não diga aos outros que me viu assim.

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