sábado, 29 de julho de 2017

O RUSTICÃO



- Catarina nunca haveria de me compreender.

E enquanto caminhava, à beira do asfalto, André ia relembrando os tantos anos que havia vivido ao lado dela. Catarina tinha sido a primeira paixão da sua vida. Filha de um desembargador, ela crescera passando as férias na Europa, comendo escargot, andando de iate e frequentando as melhores festas da high Society. Desde criança, acostumara-se a aparecer nas Colunas Sociais, sempre com o ar de superioridade e a falsa modéstia que caracterizavam os nobres das grandes cidades.

André não era de família rica. Seus pais, no máximo, eram “bem de vida”. Ele nunca havia passado fome, mas também nunca havia ganhado do pai um autorama ou um videogame de aniversário. Nas férias, ia ao sítio do avô, onde ficava isolado durante um mês, andando a cavalo, tomando banho de rio, comendo abóbora com quiabo e carne de porco.  Os pais nunca passavam as férias na roça. O velho era dono de uma pequena loja de baterias para veículos, enquanto a mãe trabalhava no fórum, revisando arquivos e enviando cartas. A mãe, embora tirasse férias ao mesmo tempo em que André, sempre tivera que ficar com o pai, ajudando na loja, cuidando da casa.

Ele nunca reclamara a falta dos velhos. Era melhor assim: tinha a liberdade para andar de um lado a outro sempre que quisesse. Os avós não reclamavam e até incentivavam aquela vida. O avô dizia que a liberdade e os tocos far-no-iam um homem, enquanto a avó dizia que criança tinha mesmo era que brincar. Que os pais ficassem na cidade, ele gostava mesmo era da roça.

 Na escola, nunca fora um nerd, embora sempre passasse com notas consideráveis. Estudava menos do que devia, mas, talvez pela facilidade em escrever, sempre alcançava as notas que lhe garantissem a manutenção da bolsa. Os pais não tinham condição de pagar a escola particular em que estudava, mas, graças a uma prova que fizera ainda nos anos iniciais, já no último ano, adentrara o sexto ano como bolsista e ia caminhando devagar.

Todos os dias, acordava às cinco e trinta, banhava-se, vestia-se e, com o cabelo besuntado de gel, seguia para a escola. Já adolescente, com as barbas começando a crescer, via-se obrigado a passar a Gilete na cara e ir, feito uma criança, todo engomado, para junto dos outros mauricinhos. A maioria dos alunos eram filhos de juízes, desembargadores, políticos e grandes empresários. Apenas dez por cento, seguindo às novas regras sociais, eram advindos de classes inferiores. Nada mais justo que estes se unissem contra a maioria.

André havia frequentado os dois lados da trincheira. De início, andara se enturmando com os bolsistas. Pelos corredores da escola, era possível vislumbrar um pequeno grupo que se juntava e começava a tagarelar, em alto e bom som, contra as políticas vigentes. Em sua maioria, aquele grupo era composto por negros, indígenas e pobres.  O uniforme era doado pela escola, mas, ainda assim, muitos conseguiam destruí-los. Alguns rasgavam as calças e andavam sempre com as camisas para fora, amarrotados e com as roupas enxovalhadas. Ainda havia aqueles que vestiam o uniforme, com a gravata arrumadinha e a camisa por dentro da calça, mas, só para subverter a ordem, conforme dizia o diretor, calçavam uma velha alpercata feita com borracha de pneu.

A verdade é que aquele grupo tinha feito um pacto. A união deles não deveria ser um mero ajuntamento de classe, mais que isso, eles deveriam ser uma família, ou algo parecido. Resolveram chamar, então, o grupo de Irmandade; de fato, uma irmandade secreta, com regras e objetivos certos, a serem cumpridos a seu tempo, como forma de solidificar os pensamentos em que acreditavam.

E durante muito tempo André seguiu todos os preceitos da irmandade. As notas nunca poderiam passar dos setenta e cinco pontos, também não podendo ser menor do que sessenta e cinco, para que nenhum deles perdesse a bolsa. Assim, era preciso que houvesse um controle nos estudos e nos distúrbios, mostrando que eram eles quem mandava no seu próprio destino. A barba, antes sempre raspada, como ordenavam os pais, agora era deixada por fazer, como sinal de rebeldia e maturidade. E dentre as tantas regras a serem seguidas, uma satisfazia plenamente os anseios de André: “Todos somos frutos da terra e, por isso, como ela sempre devemos ser”. Portanto, a rusticidade deveria prevalecer no âmago daquele grupo.

André era feliz com a irmandade, as suas regras e as férias na roça. Mas, eis que numa festa de fim de ano, quando todos os alunos deveriam se confraternizar, Catarina floresceu à sua frente. É verdade que já a tinha visto muitas vezes pelos corredores da escola. Era aluna do primeiro ano azul, enquanto ele era do verde. Nunca haviam conversado, apenas respiravam o mesmo ar, independentes um do outro.

Ele estava encostado na parede, coçando a barba, conversando com dois colegas. Alguns alunos dançavam no salão, enquanto algumas meninas conversavam assentadas no sofá e uns professores tomavam ponche à beira da janela. A festa não tinha graça alguma, mas todos tinham que estar ali, sob a ameaça de não passarem de ano. Ele não tinha reparado quando ela aproximou, mas com um sorriso aberto e solícito, com a voz firme, Catarina convocou:

- Vamos dançar!

Por um tempo, meio estupefato, André não soube o que dizer. Quando ia negar, ela já o puxava pelo braço. Dançaram durante um bom tempo sem que qualquer palavra fosse dita; depois, como que num sobressalto, Catarina parou de dançar e, antes de se afastar, cochichou no seu ouvido:

- Estou te esperando no jardim.

André e Catarina namoraram durante seis anos e meio. A Irmandade tinha sido deixada de lado e, embora os amigos sempre reclamassem a sua falta, preferia ficar junto da amada. Deixara de ir ao sítio nas férias e até mesmo o gosto da abóbora já não sabia mais qual era. Aparecia nas Colunas Sociais junto de Catarina, mas, nunca de mãos dadas, sempre a um passo atrás, como se fosse um passante que estivesse por ali na hora da fotografia. Sempre frequentava a casa dos sogros, mas nunca era convidado para as reuniões de família.

Ele não se sentia excluído ou inferiorizado por isso. Até entendia os motivos daquela família: Ele não era da Alta Sociedade e, por isso, deveria saber o seu lugar. Contrariamente, agradecia sempre ao sogro pela ajudava que lhe havia dado, afinal de contas, fora uma indicação sua que o permitira um estágio remunerado num dos maiores escritórios de advocacia do estado. Se havia se formado em Direito, devia ao sogro e sua influência.

Catarina também se formara em direito e, graças ao pai, já estava convocada para trabalhar na Noruega, no consulado brasileiro, como adjunta, já com as pretensas oportunidades para que, logo, galgasse ao posto máximo da diplomacia internacional. Ele ainda não sabia bem o que faria, talvez estudasse para promotor ou juiz, quiçá, montasse o seu próprio escritório de advocacia. Se bem que, bem no fundo de sua alma, uma centelha ainda nutria a vontade de voltar ao sítio.

O convite de casamento viera faltando apenas seis meses para a viagem de Catarina, num jantar em família, enquanto o sogro abria o vinho chileno, que havia anos descansava na adega:

- André, meu querido. Faz tempo que namoramos e acho que já é tempo de nos casarmos. Estive conversando com o papai e acho que é plausível fazermos a cerimônia daqui a seis meses. Casamos num dia e no outro viajamos à Noruega. O que acha?

Ele pensara em negar. Lembrara-se da Irmandade, do sítio e dos avós. Aquela seria a oportunidade de realizar o sonho dos seus pais. Seria alguém na vida, embora sempre à sombra da sua esposa. Teria o amor que Catarina tanto sentia e sempre lhe demonstrava, mas, ainda assim, seria sempre o menino solitário, querendo andar a cavalo e tomar banho de rio. Resignou-se e aceitou as ordens de Catarina. Marcaram, enfim, o casamento.

Os seis meses passaram rápido. A notícia da cerimônia estava estampada nos jornais e vários colunistas afirmavam ser aquele o casamento do mês, a maior realização pessoal na vida da filha do desembargador, que, em breve, haveria de ser uma influente consulesa. Alguns ainda diziam que aquela também seria a virada na vida de André, um plebeu que tirava a sorte grande, ao se casar com uma mulher bonita, inteligente e rica. Ele lia tudo aquilo em silencio, mas, seus olhos demonstravam toda a sua insatisfação.

O casamento haveria de acontecer no sábado à tarde. Durante a semana, os noivos ficaram isolados, Catarina numa clínica particular, descansando, cuidando da beleza, fazendo os planos para o futuro de ambos. André não quisera ir para o hotel sugerido pelo sogro. Durante toda a semana ficara em casa, trancafiado no seu quarto. Não quisera falar com os pais, falar ao telefone ou ler jornais e revistas. Durante todos os dias, o som permanecia ligado todo o tempo, sempre tocando música caipira, reavivando as lembranças dos velhos tempos.

No dia do casamento, ainda de madrugada, André olhara-se no espelho. Fazia uma semana que não se barbeava. A barba estava grande e já com alguns brancos. A roupa, há muito não trocada, estava enxovalhada e amassada. O cabelo estava emaranhado e precisando de uma boa lavada. Não tinha como fugir daquelas lembranças; a sua imagem no espelho fazia-o relembrar da Irmandade e dos tempos no sítio. E junto das lembranças, viera também a recordação de que no dia em que criaram o grupo, numa das tantas regras propostas, prometeram todos, independente do que acontecesse, reunirem-se novamente, a fim de garantir a fidelidade do grupo.

É bem verdade que já não se achava no direito de frequentar a Irmandade. Mas, como na Parábola do Filho Pródigo, haveria de ser ainda recebido pelos seus irmãos. Depois, haveria de seguir para o sítio. Os pais não entenderiam, assim como nunca o tentaram entender, mas, embora ele amasse Catarina, aquela não era a sua vida. Sempre fora um membro da Irmandade, embora corrompido pelo amor, e a roça era a sua liberdade. Queria, de novo, tomar banho de rio, andar a cavalo, comer abóbora com quiabo e carne de porco.

Antes que os pais acordassem, André pegou a sua mochila e saiu porta à fora. A reunião da Irmandade aconteceria no sítio dos seus avós. Os velhos já não existiam e os pais há tempos não o frequentavam. Chegaria ainda durante o dia, arrumaria tudo e esperaria pelo resto do grupo. Depois haveria de ficar por lá, solitário, liberto de tudo aquilo, como se fosse um rústico de verdade, um fruto da terra que como ela deveria ser. E, enquanto caminhava à beira do asfalto, repetia:

- Catarina nunca haveria de me compreender.

   
    

   

sexta-feira, 28 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO FINAL)

O vento estava ainda fraco e trazia nuvens, até então, brancas e muito pouco densas, no entanto, à medida que este aumentava a sua força, apareciam algodoais de nuvens escurecidas, de um acinzentado grosso e raios faiscantes que cortavam todo o seu interior como se fossem onças, animais febris, em noite de lua cheia e tempos de cio. Era a hora da Ave Maria e o tempo, que antes era claro e brincalhão, escurecia paulatinamente e tornava toda a estrada sombria, pouco habitada e quase intransitável. Os bichos corriam desesperados para as suas tocas e ninhos, enquanto as árvores tentavam se equilibrar sobre seus próprios troncos. Era o mês de março, em meados da quaresma, tempos em que a religiosidade era o guia do sertanejo e o medo dos demônios e espíritos do mal encolhia a coragem dos jagunços e homens de força, fazendo destes, nada mais que simples mortais. Eram poucos os que se atreviam a sair da segurança de suas casas após o cair a noite e, não obstante, os que se diziam destemidos precaviam-se com terços e rezas milagrosas - como aquelas de afastar maus-agouros e as de se manter o corpo fechado. Era ainda o tempo prestoso para macumbas e os serviços de pouca-fé, e as estradas, quase todas elas, enchiam-se de velas vermelhas, orações fortes, galinhas pretas e outros objetos de porcarias e pensamentos ruins.

     O cavalo andava a trote manso, como se nem uma rédea ou estribo o guiasse pelo caminho. Uma voz desafinada tentava entoar um cântico triste, a qual, vez ou outra, era interrompida para um pigarro ou uma reclamação. José tentava se equilibrar sobre o selote do cavalo, mas sentia que alguma coisa o tentava puxar para junto do chão. Sustentava-se com muita dificuldade e quase não podia enxergar o que havia à sua frente. Fiava-se no cavalo que conhecia todo o caminho a ser percorrido como se fosse uma parte da sua pata. Sentia cabeça rodando e o corpo cansado, como se estivesse quase por adormecer, tentava manter-se acordado, no que sempre se via traído pelo cansaço; algumas vezes se esquecia das pernas e, outroras, não tinha mais o tato dos dedos e das mãos, então soltava as rédeas e se deixava cair deitado sobre a crina do seu cavalo, o único amigo que lhe havia resistido a todos os problemas e tempestades.
     Primeiro foi uma luz intensa que quase o pôs cego; depois foi um estrondo forte e virulento que quase o ensurdeceu. O cavalo, num átimo de medo e espanto, saltou de costas e dando solavancos para frente e para trás, saiu em disparada pelos lados de onde vinha vindo; José, que quase não tinha mais segurança dos seus sentidos, no primeiro solavanco do animal, despencou da montaria, sendo jogado fortemente com as costas contra o chão. O bate foi forte, causando um grande estardalhaço entre os animais que presenciaram aquela cena, no entanto, não foi o suficiente para que ele perdesse de todo os sentidos. Uma lágrima caiu dos seus olhos e, enquanto a chuva começava a desmoronar, não sentindo mais as pernas, buscou forças para se arrastar até debaixo de um pequizeiro, onde, chorando copiosamente, adormeceu sob os raios e os trovões que cortavam os céus em grande velocidade, enquanto chamava pelo nome de madalena.


     Ela olhava pela janela a tempestade que começava a cair. Sentia saudades do Sanharó e, o que mais fazia sofrer o seu coração, tinha saudade de sentir o corpo, de ver o rosto, tinha saudade de ouvir a voz bonita de José. Sentia o peito apertado e um frio estranho e envolvente cismava em lhe subir pelo corpo; sentiu-se estontear e, para que não caísse de encontro ao chão, segurou-se à janela para que pudesse se manter de pé. Eleovaldo, que estava numa das ante-salas da casa, veio chamá-la para que fosse descansar:

     - Meu amor, já é tarde, vem dormir; vem descansar e se esconder deste frio, que isso pode lhe deixar febril.

       Vendo que a esposa não respondia ao seu chamado, chegou mais para perto dela e envolvendo-a pela cintura afilada, abraçou-a calorosamente. Madalena refutou aquele abraço com uma palavra carinhosa, mas, dentro de si, sentia uma grande ojeriza por aquele homem que a envolvera e tinha vontade de vomitar. Logo que ele saiu para o seu quarto, ela deixou que uma lágrima brotasse dos seus olhos, se lembrava do seu casamento, das lembranças que tivera de José naquela noite e a vontade que tinha de fugir daquele momento. Tinha sido uma cerimônia bonita e todos puderam notar que o noivo fizera todos os esforços para quer tudo fosse do bom e do melhor, ele era um homem repleto de felicidade. Eleovaldo era quem, de fato, havia se casado, mas Madalena tinha a sincera convicção que era a outro que ela pertencia; Nunca havia gostado daquele homem com quem contraíra matrimônio, deixara-se levar pelas suas palavras bonitas e sedutoras e não quisera acreditar nas verdades do seu amor; as circunstâncias a haviam traído. Temia que já fosse tarde para se arrepender, pagava um alto preço por não ter acreditado na verdade. Deitara-se com outro homem, mas tinha a certeza de que a criança que gerava em seu ventre era daquele homem há quem um dia, quando criança, fora prometida pelas águas do Sanharó.

      Os pensamentos vinham como se fossem cascatas em sua mente, enquanto, do lado de fora, por entre as árvores e mato fechado, a chuva, a cada minuto que passava, aumentava ainda muito mais. Lembrava-se de Bento, e suas palavras vinham-lhe à mente de uma forma mansa e previam todo o seu futuro: “Sabe, Madalena, o futuro é do rio, e ele diz que ocê há de pertencer somente pra o Zé. Cê foi prometida pelo rio e ele diz que ele é quem vai guiar ocês. E ele é quem faz o futuro d’ocês”.

     Talvez, outra pessoa pudesse não crê naquelas palavras infantis, mas ela, Madalena, sabia, de muita verdade em si, que todas as profecias do irmão ainda haviam de se realizar um dia. Não sabia, nem podia imaginar por quais bandas o irmão andava, mas estava com a certeza no coração de que ele já tinha completado o seu destino e, agora, era chegada a sua vez, tinha de se fazer realizar a profecia.

     Madalena foi até o quarto em que o marido dormia como se fosse uma pedra, trocou-se do pijama - roupa que aprendera a usar após o casamento - por uma roupa qualquer e, de pont-pé, sem que ninguém desse por sua falta, saiu vagando na noite escura, debaixo da chuva forte, para cumprir o seu destino e encontrar a sua felicidade.


     Talvez ao leitor possa causar estranhamento, ou mesmo incredulidade, no entanto, faço sabê-lo que tudo o que nestas linhas está escrito é a única e mais pura das verdades. Antes que possa causar a alguém alguma dificuldade, cabe o esclarecimento de que nem sempre o que me é tido como verdade, de fato, o é para quem possa parecer, logo, me abstenho das discussões prolongadas e procuro me ater somente àquilo pelo qual pude me convencer.

      Não quis abrir nenhum capítulo especial para uma observação tão desprovida de relevância e, não obstante, continuo a relatar os fatos a que me prendo e digo que... Naquela noite de chuva, enquanto Madalena, desesperada, corria pelos matos em busca do seu amor, sofrendo arranhões, rasgões e escoriações por todas as partes do seu corpo, alguma coisa de muito estranha acontecia na estrada deserta em que José adormecera e, agora, já se punha a mercê do fino fio que liga o sonho e a realidade. Digo, e repito que era tempo de quaresma; de acordo com a religiosidade cristã, época em que sofreu o filho de Deus em momento véspero da alegria pascal; logo, reafirmo, ainda, que era também o tempo em que muita coisa, estranha, e até fantástica, medonha, ou esquisita, poderia, de fato e procedência, acontecer.


     Uma mão pesada e muito macia tocava o seu rosto; um cheiro de rosas tomava conta do ar; pássaros cantavam em coro os cânticos que embalavam os seus sonhos de criança; uma chuva mansa e lenitiva caía sobre a sua cabeça, como se fossem pétalas de rosas jogadas pelos anjos, do ponto mais alto dos céus; e podia-se sentir que eram anjos maravilhosos, despidos de todas as suas vestes, eram homens e mulheres e tinham os corpos esbeltos e bem tosados pela natureza; eram anjos límpidos de qualquer pecado e ninguém se envergonhava de sua nudez; sentiam-nos todos nus, mas não tinha qualquer desejo, estava feliz e sentia-se em paz consigo e com todos que o rodeavam.
     Notava-se que o tempo inexistia e todas as coisas eram, em um só tempo, o tudo e o nada. As árvores tinham as copas com um verde vívido e os campos eram tão bonitos quantos aqueles de que sua mãe contava quando ainda era bem pequeno; as cores pareciam fortes, mas eram carregadas de muita paz e felicidade. Conseguia sentir os bons fluidos que subiam do chão e das gramas verdes à beira do rio; e o rio era de um verde quase em tom de azul e corria manso, e tinha um sorriso fácil nas suas margens, como se se tratasse do velho Sanharó.

     A mão acariciava o seu rosto e ele sentia que pingos de chuva desciam por sua face, que estava quente como se em estado de febre; tentou ouvir alguma coisa, mas o silêncio era profundo e acalentava a sua alma; tentou abrir os olhos, no entanto, suas pálpebras não seguiam as suas ordens; quedou–se no seu íntimo e tentou descansar um pouco mais. Já estava quase adormecendo, mas ouviu uma voz que o chamava. Não que tenha se prestado ao menor esforço, mas sentia que os seus olhos se abriam e, ao desaparecer-lhe o véu de nuvem branca que o cegava, pôde ver, em sua frente, um homem forte e elegante que – sentiu de si para si - era com se fosse uma sua figura num espelho de cristal.

     José nunca tinha sido homem de muitos medos nas idéias e nem o sentia naquele instante, mas tinha o coração acelerado e todo o corpo lhe tremia em desmantelo. Tentou se levantar e foi logo ajudado por aquele estranho, e ele tinha as mãos macias, sem calos nem judiações da vida no roçado. Pôde sentir um cheiro bom que exalava daquele corpo, e era um cheiro suave de rosas e água doce dos rios; uma coisa estranha rodeava aquele homem e era como se luzes brotassem de dentro dele e clareassem todas aquelas árvores e os bichos que ali viviam e ele logo pôde perceber que todo aquele mundo parecia girar em torno daquele ser.

      Sentaram-se os dois sobre uma pedra coberta por flores e rosas avermelhadas, e anjos e borboletas douradas traziam muitas pétalas e entoavam cânticos de harmonia enquanto jogavam-nas sobre ambos; eles se olhavam bem no fundo dos olhos e um sentimento profundo brotava no coração de José, era como se e já se conhecessem, ou , quem sabe, fossem irmãos desencontrados pela vida; sentia vontade de chorar e o corpo tremia como se fizesse frio, sentia vontade de abraçar o amigo – já o tinha como se de muito conhecido - , queria tê-lo como se fosse um grande amigo seu. Queria fazer várias perguntas ao desconhecido, no entanto, sua voz faltava e, se a voz não lhe faltasse, faltar-lhe-ia coragem para tanto. Ficou calado e ouviu atentamente, quando o outro lhe falava sobre coisas de que só com ele, José, havia acontecido. A voz do estranho saía firme da sua boca, mas era suave como se fosse a própria voz da natureza; fosse um dia de grande tempestade em alto mar e aquela voz seria o cântico de uma sereia que viria para apaziguar todas aquelas águas; fosse uma noite de turvação e aquela seria a voz de uma mãe que acalentaria o seu bebê. E ele disse:
      - José, meu caro amigo, não se assuste comigo. Talvez ainda não me reconheça, mas sabe que somos feito dois irmãos, carne e unha, pedaços de um no outro. Sinto uma grande felicidade em poder colocar a minha voz nos seus ouvidos. Já nos falamos muito, mas você nunca foi de me escutar._ Ele tentava recordar aquela voz, mas irritava-se, pois cria que sua memória teimava em lhe trair. Queria sentir muita raiva de si e daquele outro, mas era impossível que se irritasse; tentou perguntar pelo seu nome, quem era de onde vinha e o que queria naquele lugar... Mas calou-se novamente e ouviu tudo aquilo que o outro tinha a lhe dizer:

     - Sei que são muitas as suas dúvidas, mas penso que em tudo posso lhe explicar... Como já lhe disse, somos velhos amigos, muito embora você ainda não me reconheça. Mas lembre-se que, ainda hoje, se banhou nas minhas águas, era ainda de manhã e pude ver que uma grande tristeza tomava conta do seu coração, estava triste e muito pouco prazeroso... Sinto feliz quando também você está e me entristeço quando você padece de tristeza ou mazela. – José não conseguia acreditar que conversasse com a própria essência do rio; sabia que Bento, em seu tempo de criança conversava com ele, mas não cria que também pudesse ter tamanha alegria; ajeitou-se melhor na pedra em que descansava o seu corpo e já não sentia mais o gosto de álcool na boca, teve saudades de Madalena e quis chorar, sentiu um bolo formar-se em sua garganta, mas segurou-se, se recompôs e tornou a voltar toda a sua atenção para a voz do locutor, que dizia:

     - Consigo sentir em mim tudo aquilo que causa a sua dor, mas digo-lhe que não se avexe, pois é findada a questão. Tudo começa um dia e noutro tem que se ter um fim, e com a sua história não há de ser diferente. Lembre-se de que escolhi você para me seguir e sei que não pude mais me arrepender, você é um homem de brio e sei que a força nunca foi de lhe faltar. Sei de todo o seu sofrimento e posso lhe afiançar que nada do que fez foi um serviço perdido... Tem a minha bênção e só isso já lhe é um porto seguro. Não fui capaz de deixar que andasse sozinho, no entanto, fiz com que soubesse que tinha um caminho já previsto a seguir; lembra-se do que Bento lhe disse? Pois bem, eis que é chegada a hora, deve ser cumprido o prometido e os destinos haverão de se cruzarem. - As palavras dele entravam no coração de José, fazendo com que várias lembranças passassem em sua mente, como se fossem filmes de recordações felizes, eram recordações da sua meninice em que estavam presentes Bento, os meninos e, principalmente, Madalena, o seu grande amor. Ele sentia uma grande saudade do menino e suas profecias, sabia que ele tinha cumprido o seu destino e sentia-se feliz por ele; mas com Madalena era diferente, sentia-se estranho e sempre havia uma grande vontade de estar ao lado dela, não gostava apenas, sabia ele - porque Bento o havia dito - que tinham sido feitos um para o outro. Sentia-se feliz em saber que tudo estava para ter um fim , mas temia, tinha medo de que ela não viesse, que não quisesse vir.

     José permanecia estático em seu canto e, de acordo com os relatos do Sanharó – ele falava de fatos há tempo acontecidos- as lembranças ressurgiam em sua mente e ora eram lembranças boas, outras eram lembranças más e que ele pensava estarem há muito tempo esquecidas. Prestava bastante atenção no que o outro dizia, crendo cada vez mais no que ele dizia ser; não tinha olhos para qualquer coisa que pudesse acontecer ao seu redor, não tinha preocupações e apenas remoía-lhe, ainda, no peito a esperança de que Madalena lhe viesse encontrar.

     Ele ouvia os relatos de como os sonhos lhe vinham à mente em noites de lua cheia e, agora, sabia que todos os pesadelos que não o deixavam dormir eram apenas o rio que o avisava para que nunca pudesse esquecê-lo. Conversaram, ou melhor, o rio conversou por um longo tempo, no entanto, o tempo ainda parecia ser o mesmo; estavam em lugar que parecia um espaço distante e, de uma forma estranha, bem dentro de tudo aquilo que ele já conhecia.

     O rio calou-se um instante, olhou para dentro de si e, consultando uma borboleta que colhia algumas flores ao seu lado, apontou o dedo para José, sorriu e sentou-se numa pedra recolhida do lugar em que se encontrava. Ele, José, não entendia nada do que se estava passando, mas sentia uma grande alegria brotar do seu peito; uma luz verde surgiu por entre umas folhagens que estavam à sua frente, como se fosse uma lanterna que guiava algum andante; tentou ver por entre a luz, mas era impossível; limpou a turvação que lhe tomava a vista e sentiu uma tonteira tomar a sua cabeça, quase caía, mas, logo foi amparado por uma mão que o segurava, e era uma mão macia e pequena que julgava, há muito, conhecer, estava quente e dela subia um delicioso cheiro de jasmim. Pensou querer desfalecer de alegria, mas recompôs-se e abriu os olhos. Madalena estava com os olhos rasos d’água e dos seus lábios nascia um maravilhoso e puro sorriso, o coração de José batia acelerado e suas mãos e pernas punham-se a tremer; tentou dizer qualquer palavra, mas calou-se e sentiu-se comprazido em abraçá-la, sentiu o calor do corpo da mulher amada penetrando a sua alma e sorriu maravilhado.
     Ambos se olharam por longo tempo sem que conseguissem proferir qualquer palavra que fosse. Uma chuva de rosas verdes, amarelas e azuis começou a cair sobre eles e os pássaros, anjos e borboletas voltaram a entoar, em alto e bom som, os belos cânticos da mãe natureza. Nem José ou Madalena disseram coisa alguma, pois estavam certos de que, muitas vezes, o silêncio é o melhor remédio para todos os problemas. Digo, leitor, que não mais naquele casal existiam resquícios de dor ou desilusão, pois, somente um verdadeiro amor é capaz de sanar todo e qualquer sofrimento.

     O rio continuava em seu assento, um trono para o seu reinado, e era iluminado por vaga-lumes e adorado pelas borboletas e anjos; e dos seus olhos saltavam luzes que eram flashes de  prazer e alegria. A luz que os envolvia foi se tornando cada vez mais fraca, até que pudesse, bem no meio do rio, desaparecer na água por completo. Eram altas horas de uma noite fria e chuvosa e um menino que, por tessitura do destino, sonhava um sonho de amor, passava por ali e ouviu para transmiti-los, nestas folhas, o exato momento em que ambos proferiram juntos as suas últimas palavras:
- Eu nasci só pra amar ocê!


     “Queria dizer que todos viveram felizes para sempre, como sempre se espera de um romance feliz, no entanto, o personagem principal da nossa história teve um fim trágico e melancólico, morreu nas mãos do seu maior inimigo: o homem, com os desmatamentos, o uso indevido de suas águas e o assoreamento de todo o seu leito. O rio Sanharó não existe mais, contudo continuam vivas as suas lendas e as suas mais belas histórias; histórias vivas do sertão.”


FIM!!!





LUÍS PIRES DE MINAS 06-05-2006

quinta-feira, 27 de julho de 2017

SANHARÓ (2ª PARTE)


Quem não o tivesse visto esticado no jirau, só a muito custo poderia acreditar no fato da sua morte. Não é que fosse um homem imortal, no entanto, muitos descriam de que um dia ele pudesse desencarnar. Gumercindo Torres era, de fato, um homem morto. Muito morto de verdade. Apenas um corpo velho e cansado estendido bem no meio da grande sala de visitas. Vestia um terno preto, todo de um linho velho, mas de muito boa conservação, uma gravata vermelha com bolinhas pretas e algumas linhas pretas em diagonal. Verdade seja dita, mas quem parasse para fitá-lo naquele velho jirau, se lhe olhasse bem, na sua feição, bem seria capaz de dizer que o velho não estava ainda morto, pois bem nas extremidades de sua boca, alguma coisa estranha não deixava de acontecer, era como se um sorriso, de desdém ou, quem sabe, de alegria, começava a ser esboçado; não se podia discernir se ele de fato sorria para a morte que o recebia ou se galhofava daqueles que, falsamente choravam a sua morte, enquanto, no seu âmago, desejavam a sua riqueza.

Não havia mais de três horas que o “Seu” Torres tinha morrido e, mal a notícia se espalhou, a casa já estava cheia de visitas, eram homens, mulheres – parentes ou não-, uns chorando pelos cantos da casa, outros contando, com lágrimas enchendo os olhos, as tantas bondades do falecido. É bem verdade que nem todos, ou quase ninguém, era da família do coronel, no entanto, em sua grande parte, eram todos afilhados ou protegidos do homem, pessoas que deviam tudo que tinham e, até mesmo, a própria vida à boa vontade dele. Não que o coronel fosse algum santo – e, ele tinha muito dos chamados pecados escabrosos – mas era, para aqueles descamisados, o pai que muitos nunca um dia puderam ter, e era ele quem os protegia e ajudava em troca de serviços e lealdade.

O coronel Torres não era lá um homem de muita conversa e à força de muita braveza e vários homens ao seu dispor para serviços mais sujos fez a sua fama percorrer todo o Sanharó, o que o fazia, por força de fama e armas, era dono de todas aquelas terras e todos que nelas vivessem. Não havia aquele que ousasse contrariar uma palavra sua e o seu pedido era mais que uma ordem para quem tivesse a mínima quantidade de juízo.
José foi quem primeiro o encontrou, e, de fato, o coronel Gumercindo Torres já estava bem morto, deitado no jirau, com os braços abertos, enquanto da sua boca descia uma gosma branca e fedorenta. Era depois do almoço – mais ou menos na hora da sesta - e José saíra do quarto em que estava cochilando, a fim de tomar um banho para refrescar o sufocante calor que fazia àquela hora. A porta do quarto estava aberta e quem passasse por ali, logo, o veria jazente no seu jirau; o suor descia pelo seu rosto, realçando ainda mais as rugas que já tomavam toda a face, e apenas um velho calção de banho era o que lhe cobria a nudez. Fora grande a correria dentro da casa e até que tudo pudesse voltar a sua aparente normalidade, numa casa de defunto, e até que todos pudessem tomar conhecimento do trágico acontecido, José não se fez de rogado e tomou frente em todos os afazeres necessários naquele dia.

A fazenda ficava ainda nos territórios do Sanharó, mas, mais para os lados do Pitão, já bem próximo à casa de Zé Roxão e a de Zé de Ana Grande. O cerrado era a riqueza daquele lugar, pois eram as suas muitas árvores que faziam movimentar a todo vapor às carvoarias que por ali se instalavam, renda maior de toda região e a mais nova esperança de riqueza do sofrido sertanejo. A lavoura definhava a olhos vistos e com as, cada vez mais escassas, chuvas, que teimavam em não cair, aqueles que não partiam com as suas famílias para um lugar distante e incerto, em busca de um futuro melhor, aventuravam-se em outros tipos de trabalhos para sobreviverem. O destino daqueles que não queriam enfrentar a dureza do machado era sempre o mesmo, fugir de casa em busca de algum eldorado perdido, e foi desta forma que a pequena população daquele recanto foi, ainda mais, se rareando. Menos da metade foram os que ficaram no Sanharó e na casa de Justino e Gentil, sobraram apenas Luzia, Madalena e José.


Inicialmente, cabe explicar a você, amigo leitor, que, desde o sumiço do pequeno Bento, há mais de dez anos, a chuva foi ficando sempre mais escassa até que, por fim, não choveu nem uma gotícula sequer. As roças morreram de sede e de tantos animais apenas alguns, mais resistentes, conseguiram, com muito custo, sobreviver. O rio, que antes era taludo e brincalhão, diminuíra a sua quantidade de água e apenas na presença de José mostrava um pouco de felicidade e começava atinar a algum tipo de brincadeira. Dos viventes que havia na casa de Justino, Geraldo foi quem primeiro seguiu seu rumo, saiu numa madrugada, antes que alguém pudesse acordar, arrumou as suas coisas e partiu , atravessou a pinguela e desapareceu, talvez para nunca mais voltar. Depois foi Gentil, que, começou a sentir dores fortes no peito e , por mais que os outros pedissem , negava-se a procurar um médico; um dia, amanheceu reclamando dores e, antes que o dia findasse, morreu nos braços de Luzia, que quase não aguenta de tamanho sofrimento.

De todos aqueles, Justino foi quem mais sofreu; primeiro viu a mulher perder o juízo, pouco depois da partida de Geraldo, momentos em que ela saía correndo nua pelos matos, sempre gritando pelo nome do filho fugidio; depois, veio a morte dolorosa da velha, que desfaleceu em seus braços após jurar-lhe amor eterno. Ele foi quem mais resistira a tantos sofrimentos, trabalhava como se fosse um condenado, nas lavouras mortas, e, todas as noites, dormia bêbado, na velha palhoça perto do rio, chamando, aos prantos, pelo nome de Margarida; um dia, quando José ia para o serviço , encontrou-o jazente à beira do rio Sanharó, estava todo emagrecido pela dor da perda e o álcool havia tirado toda a sua alegria de viver. Restaram apenas aqueles três, sozinhos naquele velho e rude sertão.


O coronel Gumercindo Torres tinha se enviuvado desde muito moço e vivia, desde então, naquela fazenda com o filho, Eleovaldo, que criara sozinho e a quem tinha como se fosse o grande tesouro da sua vida. O rapaz que crescera correndo por aqueles matagais, foi para a cidade grande, fez-se doutor advogado, mas, como tinha as suas raízes na roça e fosse muito apegado ao pai, resolvera então voltar para o Sanharó e ir levando a sua vidinha do jeito que Deus quisesse. Ao contrário do velho, ele tinha um bom coração e prezava sempre pela justiça e os direitos iguais para todos, herança da vida acadêmica; tinha uma grande fraqueza por festas e cachaçadas e foi por uma destas que se tornou no grande amigo de José. Ambos andavam sempre juntos, como se fossem unha e carne, e gostavam quase sempre das mesmas coisas, e, não é de se estranhar que, por ironia do destino, gostassem também da mesma mulher, a doce e meiga Madalena. Eleovaldo sabia do amor que o amigo cultivava por Madalena, respeitava-o como a um irmão e nunca ousava tocar no assunto do seu amor por ela, no entanto, guardava num cantinho do peito uma pitada mínima de esperança.

         O filho do coronel sabia das dificuldades pelas quais o amigo estava passando e, como prova verdadeira de sua grande amizade, resolveu convidá-lo para uma parceria: José produziria o carvão nas terras do coronel e todo o lucro que obtivessem  seria dividido entre eles. O rapaz sempre negaceava da proposta, mas, a situação estava a cada dia pior e ele já não sabia mais o que fazer; tinha dúvidas e um grande medo de errar na hora de escolher. Eleovaldo, vendo que o amigo cambaleava na resposta, convidou para um final de semana na fazenda, conheceria todo o lugar e os que ali trabalhavam e só depois é que daria a sua resposta final. E foi então que se deu a inesperada morte do Coronel Gumercindo Torres.

         José sentia-se cansado e resolveu sair para o jardim a fim de tomar um pouco de ar fresco. O corpo do coronel começa a exalar um cheiro forte, já quase insuportável, e o hálito dos presentes já cheios de álcool o estava deixando tonto. O céu estava coberto de estrelas e a lua cheia fazia-o lembrar os olhos de Madalena. Lembrou-se da proposta feita por Eleovaldo; ele, José, bem queria mudar de vida, transformar-se num homem rico e ser o maior carvoeiro de toda aquela região, mas ele tinha medo. José era um homem que tinha medo de mudanças. Nascera na beira do rio e foi ali que se criou, correndo, pulando e brincando com ele, achava injusto abandoná-lo num momento tão difícil como aquele. Pensava em Madalena e tinha a certeza, como apenas os sábios podem ter, que naquele lugar, vivendo das bondades da terra, nunca poderia dar a Madalena a vida que ela sempre mereceu.

         Bento um dia havia dito que Madalena um dia seria sua e que o rio os havia apadrinhado; mas agora a sua cabeça estava cheia de dúvidas e ele não queria mais acreditar nas palavras do amigo. Pensou em Bento e quis que ele estivesse ali para aconselhá-lo; não havia tido mais nenhuma notícia dele, talvez estivesse feliz em algum lugar distante ou, então, poderia estar morto, como um indigente, por aí. Lembrou-se do coronel morto, estendido no jirau no meio da sala, sob os olhares curiosos de todas aquelas pessoas. Já era bem tarde e um dos empregados o viera chamar, pois precisavam dele para que pudesse despachar as últimas ordens daquela noite e fazer companhia ao amigo desconsolado. Benzeu-se com fervor enquanto pensava em Madalena; e, naquele mesmo instante, sem qualquer motivo de grande relevância, pois as coisas eram monótonas e constantes naquele lugar, não contando as coisas do coração que era o que mais se transformava e fazia girar as coisas ali, há algumas poucas léguas daquela grande fazenda, uma pobre moça chorava sozinha, sentada à beira do Sanharó, enquanto o rio, mansamente, vinha molhar os seus pés, parecendo os acariciar.

         O rio descia mansamente enquanto suas águas claras banhavam os pés macios de Madalena. Apesar das águas quase paradas, podia-se notar certa intranquilidade naquele ambiente árcade, era como se alguma coisa incerta estivesse por acontecer, algo que ninguém sabia, mas que o rio sabia que não era bom.

         O céu estava limpo de nuvens e as estrelas estavam todas reluzentes e abriam caminho para uma lua cheia e toda coberta de formosura. Bem sabe o leitor que seria redundante afirmar aqui que o céu estava lindo e que se acaso algum dos famosos poetas o vissem naquele instante, na certa, fariam uma das mais belas poesias de que se poderia ter notícia. No entanto, a vida é toda feita de contradições e contrariedades, e, junto ao rio se encontrava a mais triste dentre todas as mulheres da beira do Sanharó.

         Mesmo que não tivesse motivos, a pobre moça chorava. Sentara-se à beira do rio enquanto entardecia e, agora, punha-se a desabafar. Lembrava dos irmãos, Jeremias e Luisinho, que tinham ido embora para o Maranhão e nunca mais tinham dado qualquer notícia; lembrava-se deles, mas não era por eles que chorava. Estava em prantos por si mesma e pelo que já estava por acontecer; não tinha certeza do que poderia ser, mas sentia, como sentem todas as mulheres, e sabia que não podia ser nada que viesse para o bem . Madalena pensava em José e gostava de estar com ele; sabia que o amava e, como lhe disse Bento, certa feita, guardava em seu coração a esperança de que um dia seria a sua esposa. É certo que ela o queria como homem, ás vezes sonhava com ele e sentia um intenso calor subir-lhe por baixo do vestido, outras vezes, ainda, quando ele estava por perto , sentia uma vontade imensa de possuí-lo entre as suas coxas e afogá-lo nos seus seios pequenos e duros, sentia o seu calor quando estava perto e, quando ele estava longe, sentia uma grande saudade de vê-lo, tinha certeza de que ele era o seu verdadeiro amor. Mas o destino é o inimigo de todas as coisas bonitas e certas e parecia sempre estar contra aqueles dois, pois sempre que estavam próximos um do outro sempre tinha algo para atrapalhá-los.

         Madalena sentiu um fogo estranho tomar todo o seu corpo. Fechou os olhos e começou a pensar em José; sentiu que a sua mão grossa acariciava o corpo dela e, por um momento, pôde sentir o grande prazer daquele corpo penetrando no seu. O coração batia rápido e as pernas pareciam tremer de emoção, sentia que o tempo estava frio, no entanto, um enorme calor a cada instante que passava penetrava ainda mais pelo seu corpo. Ela ainda chorava, mas não se sabe se era um choro de tristeza ou se tudo não era mais que sussurros prazerosos de amor. José estava longe, mas ela o sentia dentro de si, ao seu lado e, como nunca, no seu coração. O suor descia pelo seu corpo moreno e, à medida que o calor tomava o seu corpo, sentiu uma grande vontade de banhar-se nas águas do rio. Tirou toda a sua roupa e, nua em todo o seu pudor e sentimento, entrou pelas águas claras e mansas e deixou que o rio abraçasse o seu corpo, o acariciasse e o embebesse do mel das suas entranhas; e ela se fez em mel, mel de moça virgem, como se fosse um botão de rosa pronta para desabrochar nas águas daquele rio.

         Fazia já muito tempo que Madalena estava fora de casa e Luzia começou a se preocupar, olhou pela janela da cozinha e, não a vendo por perto, resolveu sair para procurá-la. Foi direto para a beira do rio, como se fosse guiada para aquele lugar; chegou devagar, talvez temendo que pudesse assustar a pobre moça que continuava sentada no barranco com os pés encobertos pela água do rio.

         - Quê que ocê tem que chora desse jeito, Madalena, minha filha?

         Os olhos da moça estavam com um tom avermelhado, de quem chorara por muitas horas a fio, mas, entre soluços, que fazia grande força para controlar, e um sorriso que forçava para sair dos cantos de sua boca, respondeu:

         - Não sei por que não, minha mãe. Parece que me deu vontade, é como se tivesse alguma coisa aqui dentro de mim, doido para saltar pra fora, sempre querendo sair de mim.         

         A velha ainda tentou dizer alguma coisa que pudesse consolar a sua filha, mas, entendendo que aquela não era hora para se dizer o que quer que fosse, calou-se, e, sentando-se junto à filha, abraçou-a, e, ambas, ficaram paradas olhando concentradas para o rio que descia mansamente pelo seu curso. Luzia sentiu que a filha estava molhada e, ainda, que um calor intenso subia do seu corpo; não perguntou nada, apenas olhou brandamente para o rio que pareceu brincar de um lado para outro.

         Luzia olhava fixamente para o rio e, conhecendo-o há tanto tempo, entendeu, com toda a sua compreensão de mãe, de tudo aquilo que, naquele lugar, tinha se passado. Fechou também os olhos e sentiu, bem no fundo do seu coração, que tudo ali estava mudado, sentiu que havia chegado a hora, teriam de sair daquele lugar e que, talvez, nunca mais ela voltaria para ver o seu velho amigo. Deixou que uma lágrima lhe caísse dos olhos e disse:

         - É chegada a hora. – E antes que a filha questionasse – continuou:

- Talvez eu não volte mais nesse lugar... Um dia o rio me disse que sinal havia de ser dado. Mas peço que depois, logo depois da minha ida para o outro mundo, ocês me enterra nesse lugar, pois foi aqui que eu nasci e sei que aqui é que devo ficar... Cês tem de voltar pra cá e depois há de ir de novo, pois já há de ter chegado o tempo que tem que ir. – Madalena ainda tentou pronunciar alguma palavra que fosse, mas os dedos grossos de Luzia tamparam a sua boca e ela, submissa, deixou-se ficar em seu canto, pois sabia que não era a sua mãe quem falava, mas o rio que dizia por ela.

         Um vento brando soprava um pouco mais forte e o rio começava a ficar agitado. Ao longe, um cachorro do mato uivava e morcegos sobrevoavam na imensidão escura da noite em busca de alimentos; uma coruja piava no alto de um coqueiral e as estrelas ainda brilhavam fortemente no céu. Luzia olhou vagamente ao seu redor e disse:

         - Filha, vamo dormir que já é tarde e amanhã é dia de muito trabalho. José deve chegar amanhã ainda bem cedo e nós deve de tá de pé, pra que ele diga o que é pra nós fazer. A moça levantou-se e ambas – mãe e filha- foram embora enquanto o rio brincava com suas margens parecendo querer espantar a dor da separação.


         Alguns diziam que a morte da velha era apenas uma questão de tempo. Luzia não tinha mais forças para andar, tinha a tristeza estampada nos olhos e vivia sempre reclamando da vida, sentia saudades dos filhos e, de uns tempos pra cá, passou a conversar intermináveis ladainhas com o marido morto. Fazia apenas dois dias que haviam se mudado do Sanharó, e, de manhãzinha, acordou com uma forte dor no braço esquerdo. Tomou todos os remédios e chás que conhecia, mas a dor sempre ia aumentando, até que, pouco depois da ave-maria, sentiu uma forte dor no peito e desfaleceu; acordou já bem tarde no outro dia, sem sentir mais as suas pernas; perdeu muito da agilidade que lhe era peculiar e, no ato da fala, mais se fazia entender por gestos e palavras entrecortadas.

         Era muito grande o sofrimento de Luzia, e junto dela aumentava também o sofrimento de Madalena, pois a pobre moça sofria pela dor de sua mãe e, sempre mais, penava pelo amor de José. Ele trabalhava durante todo o dia, enquanto ela cuidava dos afazeres domésticos e da mãe moribunda. O rosto moreno, que sempre fora sinal de alegria e desprendimento, é bem verdade que ainda guardava a essência de tempos passados, no entanto, agora, carregava nos detalhes a tristeza e a seriedade do tempo e das responsabilidades. Madalena sabia do sentimento que cultivava por José, mas tinha medo de perdê-lo, ou, quem sabe, tinha medo de possuí-lo, de se entregar ao homem que amava e a quem, pelas águas do rio, fora um dia prometida. Ela o queria, mas tinha como se tem a um irmão de sangue; haviam sido criados juntos e isso a enchia de uma grande culpa; sonhava com ele de noite e um grande calor subia pelo seu corpo, pensava serem pecados aqueles pensamentos e punha-se a rezar, como se tudo aquilo fosse uma grande heresia. Às vezes, pelo motivo mais banal ficavam sozinhos os dois, ele se envergonhava e deixava saltar dos olhos uma pontinha de amor e dos lábios um sorriso tímido; ela sentia que uma onda de calor subia por baixo do seu vestido, o suor descia pelo seu corpo e começava a se molhar por entre as pernas, e tudo aquilo era uma sensação aprazível, bem igual àquela que tinha sentido na noite em que se banhara nas águas mansas do rio, mas ela sentia medo, sentia como se fosse ficando impura, como as mulheres perdidas de quem os grandes falavam quando ela ainda era uma menina, e então inventava uma desculpa qualquer e saía de onde estivessem, muito embora fosse grande a vontade de agarrá-lo e tê-lo só para si. Gostava de José, mas não o queria; não sabia o que queria, se um amigo ou se um homem todo seu.

         José criava forças para se declarar, mas era fraco, e, na hora exata, sentia raiva dos seus sentimentos. O destino parecia não colaborar com os dois e, aos poucos, eles iam, de alguma forma, se afastando. Muito pouco se falavam, e José se culpava por aquela distância entremeando os dois e sentia uma grande falta do rio, e se culpava, ainda mais, pela debilidade de Luzia, por isso, afastava-se de casa e falava ainda menos com Madalena e sua mãe.

Luzia já não tinha mais forças, mas ainda era bastante esperta para saber sobre qual sentimento era a perdição do rapaz. Ela gostava muito dele, sabia do amor que sentia por sua filha e, também, do amor que ela carregava por ele, e, ademais, sabia que o destino lhes era uno e que, ainda que qualquer um tentasse afastá-los, o certo é que o destino não se desfaz, pois este já está traçado e não resta-nos nada mais do que apenas cumpri-lo da melhor maneira possível. Ela sabia que, em alguns casos, as pessoas logo descobriam o seu desfecho, noutros, porém, como no caso daquele casal, eles recusam-se a vê-lo e, como consequência dessa displicência, vivem a sofrer desolados.

         Um dia a dor veio mais forte no peito e, vendo que já estava por abandonar este mundo, mandou que Madalena fosse chamar por José. Este chegou meio ressabiado enquanto Madalena, sentada junto à mãe, alisava os seus cabelos brancos. Luzia tinha os olhos fundos e sua respiração era fraca e ofegante, estava pálida e tinha o olhar ao longe enquanto rezava baixinho nas contas de um terço que imaginava em seus dedos. O ar parecia pesado dentro daquele quarto e uma grande tristeza tomava conta daquele ambiente. Num balançar de sua mão, Madalena, ainda com os olhos cheios de lágrimas, saiu do quarto para que pudessem ficar a sós. Ela ordenou-o que assentasse, pois que a conversa era de grande importância e, talvez, a ultima de suas vidas. Ela respirou profundamente, talvez buscando uma última força para expressar-se, olhou firmemente nos olhos assustados de José, e disse:

         - Meu filho, Sei que tô morrendo e isso não tem mais volta... Faz tempo que espero por isso... Mas ainda pude me assustar.  
                   
         José tentou falar alguma coisa, nem que fosse alguma besteira para dissipar o ambiente amargo em que se tornara aquele quarto, mas a voz calou-se na sua garganta. Luzia, ofegante e quase cochichando no seu ouvido, falou-lhe algumas coisas incompreensíveis, até que chegasse ao assunto que a perturbava:

         Cê sabe que Madalena gosta d’ocê... E eu sei que ocê também gosta dela. Ocês num sabe, mas o destino... Foi ele que me disse na voz do rio... E ele disse que ocês é uma alma só. Sei que ocê sente por causa de mim, mas, esquece, e procura conquistar o que o tempo e o rio te deu... – E ela calou-se subitamente. Não morreu ainda, mas não falou ou fez qualquer gesto que fosse. José, entendendo o que aquilo poderia significar, foi até a porta, onde Madalena chorava, e chamou-a para perto de si, ambos ficaram juntos, velando a forte mulher que acabava de suspirar. Era o destino, e embora eles não soubessem, tudo aquilo tinha sido escrito no livro que a eles pertencia.


         Eleovaldo acabara ficando sozinho e José era o único amigo que o poderia ajudar naquela hora difícil. O féretro foi conduzido garbosamente pela estrada em direção ao cemitério e o caixão tinha como condutores os dois amigos, que o guiavam circunspectos.  Luzia e Madalena haviam chegado quase na hora do enterro e não tinham coragem de apartá-los daquele sofrimento; sentaram-se, as duas, num dos vários bancos estendidos pelo interior da sala e conversaram baixinho enquanto o tempo não avançava.

         José sentia uma imensa vontade de estar junto de Madalena, queria abraçá-la e sentir seu corpo quente, mas continha-se e ficava ao lado do seu amigo. O clima não era propício a amores incertos e dores de cotovelo, ele sabia disso, e, como era de praxe, enchia-se, novamente, de pesares e torcia para que tudo aquilo pudesse acabar rapidamente.

         Ele sofria mais pelo fato de não poder estar ao lado de Madalena do que pela morte do coronel Torres. No entanto, um outro sofrimento, de equivalente proporção, enchia o seu coração de agonia: era difícil de aceitar, mas, daquela hora em diante, o amigo viveria sozinho naquela casa grande. Tinha ido ali apenas para conhecer a casa do amigo e dar-lhe uma resposta que, segundo a sua concepção, haveria de ser uma negativa, à proposta de Eleovaldo. Não tinha a menor vontade de ficar ali, pois estava certo de que o rio era a sua verdadeira casa; no entanto, um sentimento profundo o unia ao amigo, sentia-se estranho, como se fosse toda sua a culpa pela morte do velho coronel. Nunca fora homem de resoluções precipitadas, mas a morte do coronel tirava dele todo o direito de negar o pedido do amigo. Eram, de fato, grandes amigos e não seria mais que sua obrigação estar sempre ao lado dele para consolá-lo e diminuir, o quanto fosse capaz, todo o sofrimento que devia estar sentindo naquele momento.

         A casa já estava praticamente toda vazia; o velho não possuía outros parentes próximos e as pessoas que velavam o corpo, logo que terminou o enterro, foram se retirando, ficando apenas os empregados, Luzia, Madalena e José. Ele estava sentado com Eleovaldo a um canto da sala, enquanto as mulheres conversavam em um banco escondido próximo à porta de saída; deixou-o sentado com seu sofrimento e veio ter com elas. José sabia em mente todas as coisas que teria que dizer e, ainda que elas pudessem causar alguma discussão, não teria mais como retroceder na sua resolução, e estava certo de que tudo aquilo era o melhor para eles e para o amigo, já estava tudo acertado com Eleovaldo.

         Chegou de um modo vagaroso, como se pensasse em alguma coisa distante daquele mundo, e, olhando bem nos olhos de cada uma, falou decidido:

- Talvez essa não seja a hora certa, mas já tá tudo decidido; sai que cês gosta da roça e do rio... mas a seca e todo o resto...vou ser é carvoeiro, vou mudar de vida e ocês, se quiser pode vir comigo...

         As mulheres não disseram palavra alguma. É bem verdade que tinham o coração apertado e todo cheio de sofrimento, não queriam deixar o velho rio, mas sabiam que José era o homem da casa e tinham plena convicção de que ele sabia o que tinha que fazer. Madalena olhou fixamente para a sua mãe e, como num gesto sincronizado, abaixaram, ambas, as cabeças e aceitaram com submissão . José ainda tentou pronunciar alguma palavra de acalento, mas, desistiu e, após respirar profundamente, voltou para junto do amigo.

         Dormiram todos na casa grande àquela noite e no outro dia, antes que o sol raiasse, José e as mulheres seguiram para a casa velha para buscarem o que os pertencia. A noite fora longa e nenhum dos que ali estavam conseguiu adormecer, mas José foi o único que, na sua impaciência, levantou-se e passou quase toda a noite sentado num banco do jardim, olhando a lua e as estrelas no céu, lembrando os ensinamentos do pai e da mãe que partiram, sem saber se estava certo ou errado na forma que tinha agido. Madalena quis se levantar também e ir para junto do amado, queria sentir o seu cheiro e tinha esperança de receber em troca um pouco do seu amor, mas teve vergonha do seu sentimento, benzeu-se, rezou um credo e uma Salve Rainha e passou toda a noite revirando na cama. Luzia compenetrou-se na sua tristeza e ficou toda a noite quietinha, como se estivesse morta, pensando no rio e nos espíritos dos parentes que lá ficavam, sem companhia alguma. Pode até soar estranho, mas Eleovaldo era o único que estava feliz; também não conseguira dormir e ficara a noite toda virando na cama e sorrindo em silêncio.
       

        A vida é mesmo cheia de surpresa. Eleovaldo, seguindo o curso original da história, deveria estar apenas entristecido com a morte do coronel – como, de fato, verdadeiramente o estava – porém, o sentimento que o deixava naquele estado de alegria era outro bem diferente. Veja você, leitor, que o rapaz tinha muita bondade em seu coração, prezava pelo pai e gostava de verdade de José, no entanto, o destino lhe fora cruel e ele gostava realmente de Madalena.

         Também é verdade que, no início ele queria apenas o bem de José, o que ainda desejava de todo o coração, no entanto, com o passar do tempo, o amor foi crescendo e tomando conta do seu coração, e esse amor o deixou ganancioso quando o assunto era a sua amada, e, então, ele passou a distinguir o que era amor e o que seria apenas amizade. Tinha certeza de que nunca seria capaz de trair o seu amigo, mas estava certo de que, com os seus dotes e toda a sua beleza, poderia conquistar o coração de Madalena. Traçou todos os planos nos seus mínimos detalhes e deduziu, enfim, que, lavando todos para o seu território, maiores se tornariam as suas chances naquela questão. Não pense que a morte do coronel Torres tenha sido culpa dele; o velho, ainda que ninguém soubesse, fazia tempos que andava já bastante debilitado e a sua morte foi apenas o desfecho de um doloroso episódio. Eleovaldo se entristecia pela morte do velho, mas era esperto, e apaixonado, o bastante, para ver naquele acontecimento uma grande chance de conseguir o amor de Madalena, pois sabia da amizade que José tinha por si e, por esse motivo, ele não seria capaz de recusar a sua proposta. Estava quase cego de amor por Madalena, mas era sóbrio o bastante para ver que tudo aquilo seria também um grande favor ao seu melhor amigo.

         Toda história que se preze deve ter um mocinho, uma linda mulher e um terrível bandido, no entanto, peco neste último, pois Eleovaldo não era nenhuma cobra peçonhenta; contrariamente, ele era um homem sério e cheio de boas intenções; não era feio, gozando de alguns traços de beleza. Era alto, sem, contudo, ser muito grande; tinha os cabelos negros e corridos, como bem mandava a boa moda das cidades; usava um bigode curto e bem aparado e vestia-se com esmero. Ele era o que se diz “um partido a altura”; estava sempre limpo e seus perfumes eram caros e cheirosos, no entanto, era simples e conquistava a todos com sua conversa fácil e seu jeito sincero. Apenas não conseguira conquistar Madalena, e era este o seu maior desgosto. Eis que tudo foi se acumulando em seu coração, até que o amor o cegou por inteiro e ele não conseguia pensar em nada que não fosse Madalena; não queria mal a quem quer que fosse, mas seria capaz de tudo para tê-la ao seu lado.



         Após algum tempo, a carvoaria trabalhava a todo vapor; José quase não dormia e estava sempre junto aos camaradas para que pudessem dar andamento à fabricação do carvão. Eram muitos os caminhões que saíam dali para siderúrgicas em Sete Lagoas e, em contrapartida, era muito o dinheiro que entrava no bolso dele e de Eleovaldo. A amizade deles era incontestável, andavam sempre juntos e a cozinha da casa em que José morava era o lugar preferido do amigo; José não sabia, mas não era a sua amizade a principal razão daquele gosto de Eleovaldo, ele gostava mesmo é de poder todo dia estar vendo toda a beleza de Madalena. Todos os dias, Eleovaldo ia à casa do amigo e, ainda que este não estivesse, só saía  depois que fosse tarde da noite. José quase sempre tinha que viajar para outras fazendas da cercania, onde tinha que virar a noite, pois eram grandes as discussões pelo preço do carvão e, ademais, a fazenda de Eleovaldo era um pouco mais afastada do que todas as outras fazendas; não sabia ele, no entanto que estas tantas viagens seriam a sua perdição.

         Eleovaldo não perdia tempo, e, enquanto o amigo viajava em busca de negócios para a carvoaria, ele ficava na sua casa tentando conquistar o coração de Madalena. Ambos, José e Madalena, viviam quase como que se fossem marido e mulher; José gostava de Madalena e, por sua vez, ela devolvia este sentimento, no entanto, apesar de toda a paixão que os unia, nunca encontraram coragem de se unirem de verdade.
         Eleovaldo se aproveitava desta distância que ainda existia entre os dois e, na ausência do amigo, se declarava e contava falsas histórias, sobre José para a sua amada. Madalena não acreditava em Eleovaldo, mas uma gotinha de ciúme começava a brotar em seu coração.
        


         Era ainda madrugada quando José partia para mais um dia de viagens; passaria na casa de Zé Roxão e depois iria para a casa de Pituxo, já bem próximo de Lagoa dos Patos. Levantou-se em silêncio, para não acordar Madalena, e foi preparar o café; ia passando pelo corredor quando a viu deitada sobre a cama, desembrulhada e com a porta entreaberta; chegou até a porta e parou a contemplá-la, estava vestida apenas de calcinha e sutiã e, então, ele pôde notar o quanto eram belas as suas formas; já gostava dela de verdade, mas agora era um sentimento estranho que subia pelo seu corpo; antes gostava de estar junto dela, mas agora sentia um desejo grande de possuí-la; entrou devagar e, em silêncio, sentou-se junto dela, começou a acariciar todo o seu corpo, enquanto era tomado pelo calor do desejo. Madalena não pensou em desviar-se, sentia um grande desejo de possuí-lo e, silenciando-se, deixou que ele a possuísse e deleitou-se de cada momento que se passava.

         O sol já estava alto quando José saiu para a viagem, Madalena ficou deitada, relembrando os momentos felizes que haviam se passado e pensando em como seriam as suas vidas a partir daquele momento. Ele ia feliz pela estrada, pensando em Madalena e fazendo muitos planos para o futuro; voltaria ao entardecer e falaria com ela e, se fosse à vontade de Madalena, casariam-se brevemente e viveriam felizes para sempre, com muitos filhos e uma grande fazenda que pretendia comprar nas proximidades do Pitinha.

         Imagino que você já esteja pensando que estejamos chegando ao final da história e, talvez, pensando que Eleovaldo ficaria sem ação frente a tanto amor; no, entanto, apesar de afirmar que já chegamos ao bem adiantado da história, digo-lhe que ainda há tempo para que o nosso Eleovaldo apronte das suas. Pois eis que, ao José sair daquela casa, e, pouco depois de Madalena ter se levantado, ele chegou, pronto para dar fim aos seus planos; convenceria Madalena de que seria o melhor partido e que o seu futuro com ele seria a sua melhor escolha.

         A rudeza e a simplicidade são a principal fraqueza do sertanejo e foi justamente deste detalhe que Eleovaldo se aproveitou. Várias foram as mentiras de que o rapaz valeu-se para tentar convencer Madalena, e, dentre elas, a que  mais  a deixou estarrecida foi a história de que José teria uma mulher com quem se encontrava em todas as suas supostas viagens; ela acreditava no seu amado, mas ficou abalada com aquele assunto. Eleovaldo atento a todos os detalhes, contou-lhe a história e ainda citou nomes que, ele sabia, ela nunca poderia confirmar. José viajava durante quase toda a semana, mas Madalena cria nas suas versões e nunca ousara perguntá-lo sobre coisa alguma, mas agora uma grande dúvida tomara o seu coração. Eleovaldo, vendo que já estava quase a convencendo, quis tirar a sua última cartada e afiançou que naquele dia José não voltaria; disse a ela que ele estaria em casa da amante e, querendo Madalena, iriam ambos até a dita casa para dissipar qualquer dúvida que permanecesse em seu coração. Ela não aceitou e, respeitando as palavras do amado, preferiu esperar até que o dia terminasse. Eleovaldo não se demorou como nos outros dias, mas, ao sair, deixou a sua proposta: quisesse ela, iam os dois à casa da amante de José e, se acaso mudasse de ideia, ele estaria pronto a tomá-la como esposa.

         Madalena foi tomada por um sentimento estranho, confiava em José, mas o que Eleovaldo tinha dito começava a criar certa razão em sua mente; resolveu esperar e só depois é que tomaria a sua decisão, ainda não pensava em se casar com o outro.

         O destino é, de fato, um grande traiçoeiro e, ainda que José tenha feito todos os esforços para voltar para casa no mesmo dia, vários problemas o fizeram atrasar; primeiro foi uma terrível doença que tomou um seu cavalo que Eleovaldo o havia dado como presente, e, depois, alguns arruaceiros – a mando de Eleovaldo – que o fizeram se atrasar por quase uma semana; prenderam-no numa pequena cabana e, talvez, o matariam se não conseguisse fugir por um pequeno buraco que fizera em uma das telhas de amianto. Chegou em casa uma semana depois do dia em que saíra e grande foi o baque quando encontrou Madalena casada com Eleovaldo. Tentou se explicar, mas a mulher quase não o escutou; tentou falar com o amigo, mas este, que passara a andar com vários capangas, nem fez questão de ouvi-lo.

         Uma grande tristeza tomou conta de José, quase perdera a vida em uma emboscada e ao voltar para casa havia encontrado a mulher casada com o seu melhor amigo. Sentiu que aquele não era mais o seu lugar, pegou as suas coisas, abandonou a carvoeira e voltou para junto do Sanharó. Passou a viver sozinho em sua velha casinha, já não pensava em trabalhar e nem mesmo queria viver; ficava todo o dia sentado à beira do rio ou ia para as vendas em busca de cachaça para fazê-lo esquecer de Madalena.


         Madalena vivia com Eleovaldo, mas nunca conseguira esquecer do antigo amor; sentia saudades de José, mas, como que de repente, um grande ódio tomava o seu coração e ela não conseguia perdoá-lo e, então, uma grande confusão se fazia em sua cabeça. Ela não gostava de Eleovaldo, mas achava que era seu dever ficar do lado do homem que a salvara de uma terrível traição. E, desta forma, viviam, Madalena e José, cada qual cuidando da sua infelicidade.