quinta-feira, 27 de julho de 2017

SANHARÓ (2ª PARTE)


Quem não o tivesse visto esticado no jirau, só a muito custo poderia acreditar no fato da sua morte. Não é que fosse um homem imortal, no entanto, muitos descriam de que um dia ele pudesse desencarnar. Gumercindo Torres era, de fato, um homem morto. Muito morto de verdade. Apenas um corpo velho e cansado estendido bem no meio da grande sala de visitas. Vestia um terno preto, todo de um linho velho, mas de muito boa conservação, uma gravata vermelha com bolinhas pretas e algumas linhas pretas em diagonal. Verdade seja dita, mas quem parasse para fitá-lo naquele velho jirau, se lhe olhasse bem, na sua feição, bem seria capaz de dizer que o velho não estava ainda morto, pois bem nas extremidades de sua boca, alguma coisa estranha não deixava de acontecer, era como se um sorriso, de desdém ou, quem sabe, de alegria, começava a ser esboçado; não se podia discernir se ele de fato sorria para a morte que o recebia ou se galhofava daqueles que, falsamente choravam a sua morte, enquanto, no seu âmago, desejavam a sua riqueza.

Não havia mais de três horas que o “Seu” Torres tinha morrido e, mal a notícia se espalhou, a casa já estava cheia de visitas, eram homens, mulheres – parentes ou não-, uns chorando pelos cantos da casa, outros contando, com lágrimas enchendo os olhos, as tantas bondades do falecido. É bem verdade que nem todos, ou quase ninguém, era da família do coronel, no entanto, em sua grande parte, eram todos afilhados ou protegidos do homem, pessoas que deviam tudo que tinham e, até mesmo, a própria vida à boa vontade dele. Não que o coronel fosse algum santo – e, ele tinha muito dos chamados pecados escabrosos – mas era, para aqueles descamisados, o pai que muitos nunca um dia puderam ter, e era ele quem os protegia e ajudava em troca de serviços e lealdade.

O coronel Torres não era lá um homem de muita conversa e à força de muita braveza e vários homens ao seu dispor para serviços mais sujos fez a sua fama percorrer todo o Sanharó, o que o fazia, por força de fama e armas, era dono de todas aquelas terras e todos que nelas vivessem. Não havia aquele que ousasse contrariar uma palavra sua e o seu pedido era mais que uma ordem para quem tivesse a mínima quantidade de juízo.
José foi quem primeiro o encontrou, e, de fato, o coronel Gumercindo Torres já estava bem morto, deitado no jirau, com os braços abertos, enquanto da sua boca descia uma gosma branca e fedorenta. Era depois do almoço – mais ou menos na hora da sesta - e José saíra do quarto em que estava cochilando, a fim de tomar um banho para refrescar o sufocante calor que fazia àquela hora. A porta do quarto estava aberta e quem passasse por ali, logo, o veria jazente no seu jirau; o suor descia pelo seu rosto, realçando ainda mais as rugas que já tomavam toda a face, e apenas um velho calção de banho era o que lhe cobria a nudez. Fora grande a correria dentro da casa e até que tudo pudesse voltar a sua aparente normalidade, numa casa de defunto, e até que todos pudessem tomar conhecimento do trágico acontecido, José não se fez de rogado e tomou frente em todos os afazeres necessários naquele dia.

A fazenda ficava ainda nos territórios do Sanharó, mas, mais para os lados do Pitão, já bem próximo à casa de Zé Roxão e a de Zé de Ana Grande. O cerrado era a riqueza daquele lugar, pois eram as suas muitas árvores que faziam movimentar a todo vapor às carvoarias que por ali se instalavam, renda maior de toda região e a mais nova esperança de riqueza do sofrido sertanejo. A lavoura definhava a olhos vistos e com as, cada vez mais escassas, chuvas, que teimavam em não cair, aqueles que não partiam com as suas famílias para um lugar distante e incerto, em busca de um futuro melhor, aventuravam-se em outros tipos de trabalhos para sobreviverem. O destino daqueles que não queriam enfrentar a dureza do machado era sempre o mesmo, fugir de casa em busca de algum eldorado perdido, e foi desta forma que a pequena população daquele recanto foi, ainda mais, se rareando. Menos da metade foram os que ficaram no Sanharó e na casa de Justino e Gentil, sobraram apenas Luzia, Madalena e José.


Inicialmente, cabe explicar a você, amigo leitor, que, desde o sumiço do pequeno Bento, há mais de dez anos, a chuva foi ficando sempre mais escassa até que, por fim, não choveu nem uma gotícula sequer. As roças morreram de sede e de tantos animais apenas alguns, mais resistentes, conseguiram, com muito custo, sobreviver. O rio, que antes era taludo e brincalhão, diminuíra a sua quantidade de água e apenas na presença de José mostrava um pouco de felicidade e começava atinar a algum tipo de brincadeira. Dos viventes que havia na casa de Justino, Geraldo foi quem primeiro seguiu seu rumo, saiu numa madrugada, antes que alguém pudesse acordar, arrumou as suas coisas e partiu , atravessou a pinguela e desapareceu, talvez para nunca mais voltar. Depois foi Gentil, que, começou a sentir dores fortes no peito e , por mais que os outros pedissem , negava-se a procurar um médico; um dia, amanheceu reclamando dores e, antes que o dia findasse, morreu nos braços de Luzia, que quase não aguenta de tamanho sofrimento.

De todos aqueles, Justino foi quem mais sofreu; primeiro viu a mulher perder o juízo, pouco depois da partida de Geraldo, momentos em que ela saía correndo nua pelos matos, sempre gritando pelo nome do filho fugidio; depois, veio a morte dolorosa da velha, que desfaleceu em seus braços após jurar-lhe amor eterno. Ele foi quem mais resistira a tantos sofrimentos, trabalhava como se fosse um condenado, nas lavouras mortas, e, todas as noites, dormia bêbado, na velha palhoça perto do rio, chamando, aos prantos, pelo nome de Margarida; um dia, quando José ia para o serviço , encontrou-o jazente à beira do rio Sanharó, estava todo emagrecido pela dor da perda e o álcool havia tirado toda a sua alegria de viver. Restaram apenas aqueles três, sozinhos naquele velho e rude sertão.


O coronel Gumercindo Torres tinha se enviuvado desde muito moço e vivia, desde então, naquela fazenda com o filho, Eleovaldo, que criara sozinho e a quem tinha como se fosse o grande tesouro da sua vida. O rapaz que crescera correndo por aqueles matagais, foi para a cidade grande, fez-se doutor advogado, mas, como tinha as suas raízes na roça e fosse muito apegado ao pai, resolvera então voltar para o Sanharó e ir levando a sua vidinha do jeito que Deus quisesse. Ao contrário do velho, ele tinha um bom coração e prezava sempre pela justiça e os direitos iguais para todos, herança da vida acadêmica; tinha uma grande fraqueza por festas e cachaçadas e foi por uma destas que se tornou no grande amigo de José. Ambos andavam sempre juntos, como se fossem unha e carne, e gostavam quase sempre das mesmas coisas, e, não é de se estranhar que, por ironia do destino, gostassem também da mesma mulher, a doce e meiga Madalena. Eleovaldo sabia do amor que o amigo cultivava por Madalena, respeitava-o como a um irmão e nunca ousava tocar no assunto do seu amor por ela, no entanto, guardava num cantinho do peito uma pitada mínima de esperança.

         O filho do coronel sabia das dificuldades pelas quais o amigo estava passando e, como prova verdadeira de sua grande amizade, resolveu convidá-lo para uma parceria: José produziria o carvão nas terras do coronel e todo o lucro que obtivessem  seria dividido entre eles. O rapaz sempre negaceava da proposta, mas, a situação estava a cada dia pior e ele já não sabia mais o que fazer; tinha dúvidas e um grande medo de errar na hora de escolher. Eleovaldo, vendo que o amigo cambaleava na resposta, convidou para um final de semana na fazenda, conheceria todo o lugar e os que ali trabalhavam e só depois é que daria a sua resposta final. E foi então que se deu a inesperada morte do Coronel Gumercindo Torres.

         José sentia-se cansado e resolveu sair para o jardim a fim de tomar um pouco de ar fresco. O corpo do coronel começa a exalar um cheiro forte, já quase insuportável, e o hálito dos presentes já cheios de álcool o estava deixando tonto. O céu estava coberto de estrelas e a lua cheia fazia-o lembrar os olhos de Madalena. Lembrou-se da proposta feita por Eleovaldo; ele, José, bem queria mudar de vida, transformar-se num homem rico e ser o maior carvoeiro de toda aquela região, mas ele tinha medo. José era um homem que tinha medo de mudanças. Nascera na beira do rio e foi ali que se criou, correndo, pulando e brincando com ele, achava injusto abandoná-lo num momento tão difícil como aquele. Pensava em Madalena e tinha a certeza, como apenas os sábios podem ter, que naquele lugar, vivendo das bondades da terra, nunca poderia dar a Madalena a vida que ela sempre mereceu.

         Bento um dia havia dito que Madalena um dia seria sua e que o rio os havia apadrinhado; mas agora a sua cabeça estava cheia de dúvidas e ele não queria mais acreditar nas palavras do amigo. Pensou em Bento e quis que ele estivesse ali para aconselhá-lo; não havia tido mais nenhuma notícia dele, talvez estivesse feliz em algum lugar distante ou, então, poderia estar morto, como um indigente, por aí. Lembrou-se do coronel morto, estendido no jirau no meio da sala, sob os olhares curiosos de todas aquelas pessoas. Já era bem tarde e um dos empregados o viera chamar, pois precisavam dele para que pudesse despachar as últimas ordens daquela noite e fazer companhia ao amigo desconsolado. Benzeu-se com fervor enquanto pensava em Madalena; e, naquele mesmo instante, sem qualquer motivo de grande relevância, pois as coisas eram monótonas e constantes naquele lugar, não contando as coisas do coração que era o que mais se transformava e fazia girar as coisas ali, há algumas poucas léguas daquela grande fazenda, uma pobre moça chorava sozinha, sentada à beira do Sanharó, enquanto o rio, mansamente, vinha molhar os seus pés, parecendo os acariciar.

         O rio descia mansamente enquanto suas águas claras banhavam os pés macios de Madalena. Apesar das águas quase paradas, podia-se notar certa intranquilidade naquele ambiente árcade, era como se alguma coisa incerta estivesse por acontecer, algo que ninguém sabia, mas que o rio sabia que não era bom.

         O céu estava limpo de nuvens e as estrelas estavam todas reluzentes e abriam caminho para uma lua cheia e toda coberta de formosura. Bem sabe o leitor que seria redundante afirmar aqui que o céu estava lindo e que se acaso algum dos famosos poetas o vissem naquele instante, na certa, fariam uma das mais belas poesias de que se poderia ter notícia. No entanto, a vida é toda feita de contradições e contrariedades, e, junto ao rio se encontrava a mais triste dentre todas as mulheres da beira do Sanharó.

         Mesmo que não tivesse motivos, a pobre moça chorava. Sentara-se à beira do rio enquanto entardecia e, agora, punha-se a desabafar. Lembrava dos irmãos, Jeremias e Luisinho, que tinham ido embora para o Maranhão e nunca mais tinham dado qualquer notícia; lembrava-se deles, mas não era por eles que chorava. Estava em prantos por si mesma e pelo que já estava por acontecer; não tinha certeza do que poderia ser, mas sentia, como sentem todas as mulheres, e sabia que não podia ser nada que viesse para o bem . Madalena pensava em José e gostava de estar com ele; sabia que o amava e, como lhe disse Bento, certa feita, guardava em seu coração a esperança de que um dia seria a sua esposa. É certo que ela o queria como homem, ás vezes sonhava com ele e sentia um intenso calor subir-lhe por baixo do vestido, outras vezes, ainda, quando ele estava por perto , sentia uma vontade imensa de possuí-lo entre as suas coxas e afogá-lo nos seus seios pequenos e duros, sentia o seu calor quando estava perto e, quando ele estava longe, sentia uma grande saudade de vê-lo, tinha certeza de que ele era o seu verdadeiro amor. Mas o destino é o inimigo de todas as coisas bonitas e certas e parecia sempre estar contra aqueles dois, pois sempre que estavam próximos um do outro sempre tinha algo para atrapalhá-los.

         Madalena sentiu um fogo estranho tomar todo o seu corpo. Fechou os olhos e começou a pensar em José; sentiu que a sua mão grossa acariciava o corpo dela e, por um momento, pôde sentir o grande prazer daquele corpo penetrando no seu. O coração batia rápido e as pernas pareciam tremer de emoção, sentia que o tempo estava frio, no entanto, um enorme calor a cada instante que passava penetrava ainda mais pelo seu corpo. Ela ainda chorava, mas não se sabe se era um choro de tristeza ou se tudo não era mais que sussurros prazerosos de amor. José estava longe, mas ela o sentia dentro de si, ao seu lado e, como nunca, no seu coração. O suor descia pelo seu corpo moreno e, à medida que o calor tomava o seu corpo, sentiu uma grande vontade de banhar-se nas águas do rio. Tirou toda a sua roupa e, nua em todo o seu pudor e sentimento, entrou pelas águas claras e mansas e deixou que o rio abraçasse o seu corpo, o acariciasse e o embebesse do mel das suas entranhas; e ela se fez em mel, mel de moça virgem, como se fosse um botão de rosa pronta para desabrochar nas águas daquele rio.

         Fazia já muito tempo que Madalena estava fora de casa e Luzia começou a se preocupar, olhou pela janela da cozinha e, não a vendo por perto, resolveu sair para procurá-la. Foi direto para a beira do rio, como se fosse guiada para aquele lugar; chegou devagar, talvez temendo que pudesse assustar a pobre moça que continuava sentada no barranco com os pés encobertos pela água do rio.

         - Quê que ocê tem que chora desse jeito, Madalena, minha filha?

         Os olhos da moça estavam com um tom avermelhado, de quem chorara por muitas horas a fio, mas, entre soluços, que fazia grande força para controlar, e um sorriso que forçava para sair dos cantos de sua boca, respondeu:

         - Não sei por que não, minha mãe. Parece que me deu vontade, é como se tivesse alguma coisa aqui dentro de mim, doido para saltar pra fora, sempre querendo sair de mim.         

         A velha ainda tentou dizer alguma coisa que pudesse consolar a sua filha, mas, entendendo que aquela não era hora para se dizer o que quer que fosse, calou-se, e, sentando-se junto à filha, abraçou-a, e, ambas, ficaram paradas olhando concentradas para o rio que descia mansamente pelo seu curso. Luzia sentiu que a filha estava molhada e, ainda, que um calor intenso subia do seu corpo; não perguntou nada, apenas olhou brandamente para o rio que pareceu brincar de um lado para outro.

         Luzia olhava fixamente para o rio e, conhecendo-o há tanto tempo, entendeu, com toda a sua compreensão de mãe, de tudo aquilo que, naquele lugar, tinha se passado. Fechou também os olhos e sentiu, bem no fundo do seu coração, que tudo ali estava mudado, sentiu que havia chegado a hora, teriam de sair daquele lugar e que, talvez, nunca mais ela voltaria para ver o seu velho amigo. Deixou que uma lágrima lhe caísse dos olhos e disse:

         - É chegada a hora. – E antes que a filha questionasse – continuou:

- Talvez eu não volte mais nesse lugar... Um dia o rio me disse que sinal havia de ser dado. Mas peço que depois, logo depois da minha ida para o outro mundo, ocês me enterra nesse lugar, pois foi aqui que eu nasci e sei que aqui é que devo ficar... Cês tem de voltar pra cá e depois há de ir de novo, pois já há de ter chegado o tempo que tem que ir. – Madalena ainda tentou pronunciar alguma palavra que fosse, mas os dedos grossos de Luzia tamparam a sua boca e ela, submissa, deixou-se ficar em seu canto, pois sabia que não era a sua mãe quem falava, mas o rio que dizia por ela.

         Um vento brando soprava um pouco mais forte e o rio começava a ficar agitado. Ao longe, um cachorro do mato uivava e morcegos sobrevoavam na imensidão escura da noite em busca de alimentos; uma coruja piava no alto de um coqueiral e as estrelas ainda brilhavam fortemente no céu. Luzia olhou vagamente ao seu redor e disse:

         - Filha, vamo dormir que já é tarde e amanhã é dia de muito trabalho. José deve chegar amanhã ainda bem cedo e nós deve de tá de pé, pra que ele diga o que é pra nós fazer. A moça levantou-se e ambas – mãe e filha- foram embora enquanto o rio brincava com suas margens parecendo querer espantar a dor da separação.


         Alguns diziam que a morte da velha era apenas uma questão de tempo. Luzia não tinha mais forças para andar, tinha a tristeza estampada nos olhos e vivia sempre reclamando da vida, sentia saudades dos filhos e, de uns tempos pra cá, passou a conversar intermináveis ladainhas com o marido morto. Fazia apenas dois dias que haviam se mudado do Sanharó, e, de manhãzinha, acordou com uma forte dor no braço esquerdo. Tomou todos os remédios e chás que conhecia, mas a dor sempre ia aumentando, até que, pouco depois da ave-maria, sentiu uma forte dor no peito e desfaleceu; acordou já bem tarde no outro dia, sem sentir mais as suas pernas; perdeu muito da agilidade que lhe era peculiar e, no ato da fala, mais se fazia entender por gestos e palavras entrecortadas.

         Era muito grande o sofrimento de Luzia, e junto dela aumentava também o sofrimento de Madalena, pois a pobre moça sofria pela dor de sua mãe e, sempre mais, penava pelo amor de José. Ele trabalhava durante todo o dia, enquanto ela cuidava dos afazeres domésticos e da mãe moribunda. O rosto moreno, que sempre fora sinal de alegria e desprendimento, é bem verdade que ainda guardava a essência de tempos passados, no entanto, agora, carregava nos detalhes a tristeza e a seriedade do tempo e das responsabilidades. Madalena sabia do sentimento que cultivava por José, mas tinha medo de perdê-lo, ou, quem sabe, tinha medo de possuí-lo, de se entregar ao homem que amava e a quem, pelas águas do rio, fora um dia prometida. Ela o queria, mas tinha como se tem a um irmão de sangue; haviam sido criados juntos e isso a enchia de uma grande culpa; sonhava com ele de noite e um grande calor subia pelo seu corpo, pensava serem pecados aqueles pensamentos e punha-se a rezar, como se tudo aquilo fosse uma grande heresia. Às vezes, pelo motivo mais banal ficavam sozinhos os dois, ele se envergonhava e deixava saltar dos olhos uma pontinha de amor e dos lábios um sorriso tímido; ela sentia que uma onda de calor subia por baixo do seu vestido, o suor descia pelo seu corpo e começava a se molhar por entre as pernas, e tudo aquilo era uma sensação aprazível, bem igual àquela que tinha sentido na noite em que se banhara nas águas mansas do rio, mas ela sentia medo, sentia como se fosse ficando impura, como as mulheres perdidas de quem os grandes falavam quando ela ainda era uma menina, e então inventava uma desculpa qualquer e saía de onde estivessem, muito embora fosse grande a vontade de agarrá-lo e tê-lo só para si. Gostava de José, mas não o queria; não sabia o que queria, se um amigo ou se um homem todo seu.

         José criava forças para se declarar, mas era fraco, e, na hora exata, sentia raiva dos seus sentimentos. O destino parecia não colaborar com os dois e, aos poucos, eles iam, de alguma forma, se afastando. Muito pouco se falavam, e José se culpava por aquela distância entremeando os dois e sentia uma grande falta do rio, e se culpava, ainda mais, pela debilidade de Luzia, por isso, afastava-se de casa e falava ainda menos com Madalena e sua mãe.

Luzia já não tinha mais forças, mas ainda era bastante esperta para saber sobre qual sentimento era a perdição do rapaz. Ela gostava muito dele, sabia do amor que sentia por sua filha e, também, do amor que ela carregava por ele, e, ademais, sabia que o destino lhes era uno e que, ainda que qualquer um tentasse afastá-los, o certo é que o destino não se desfaz, pois este já está traçado e não resta-nos nada mais do que apenas cumpri-lo da melhor maneira possível. Ela sabia que, em alguns casos, as pessoas logo descobriam o seu desfecho, noutros, porém, como no caso daquele casal, eles recusam-se a vê-lo e, como consequência dessa displicência, vivem a sofrer desolados.

         Um dia a dor veio mais forte no peito e, vendo que já estava por abandonar este mundo, mandou que Madalena fosse chamar por José. Este chegou meio ressabiado enquanto Madalena, sentada junto à mãe, alisava os seus cabelos brancos. Luzia tinha os olhos fundos e sua respiração era fraca e ofegante, estava pálida e tinha o olhar ao longe enquanto rezava baixinho nas contas de um terço que imaginava em seus dedos. O ar parecia pesado dentro daquele quarto e uma grande tristeza tomava conta daquele ambiente. Num balançar de sua mão, Madalena, ainda com os olhos cheios de lágrimas, saiu do quarto para que pudessem ficar a sós. Ela ordenou-o que assentasse, pois que a conversa era de grande importância e, talvez, a ultima de suas vidas. Ela respirou profundamente, talvez buscando uma última força para expressar-se, olhou firmemente nos olhos assustados de José, e disse:

         - Meu filho, Sei que tô morrendo e isso não tem mais volta... Faz tempo que espero por isso... Mas ainda pude me assustar.  
                   
         José tentou falar alguma coisa, nem que fosse alguma besteira para dissipar o ambiente amargo em que se tornara aquele quarto, mas a voz calou-se na sua garganta. Luzia, ofegante e quase cochichando no seu ouvido, falou-lhe algumas coisas incompreensíveis, até que chegasse ao assunto que a perturbava:

         Cê sabe que Madalena gosta d’ocê... E eu sei que ocê também gosta dela. Ocês num sabe, mas o destino... Foi ele que me disse na voz do rio... E ele disse que ocês é uma alma só. Sei que ocê sente por causa de mim, mas, esquece, e procura conquistar o que o tempo e o rio te deu... – E ela calou-se subitamente. Não morreu ainda, mas não falou ou fez qualquer gesto que fosse. José, entendendo o que aquilo poderia significar, foi até a porta, onde Madalena chorava, e chamou-a para perto de si, ambos ficaram juntos, velando a forte mulher que acabava de suspirar. Era o destino, e embora eles não soubessem, tudo aquilo tinha sido escrito no livro que a eles pertencia.


         Eleovaldo acabara ficando sozinho e José era o único amigo que o poderia ajudar naquela hora difícil. O féretro foi conduzido garbosamente pela estrada em direção ao cemitério e o caixão tinha como condutores os dois amigos, que o guiavam circunspectos.  Luzia e Madalena haviam chegado quase na hora do enterro e não tinham coragem de apartá-los daquele sofrimento; sentaram-se, as duas, num dos vários bancos estendidos pelo interior da sala e conversaram baixinho enquanto o tempo não avançava.

         José sentia uma imensa vontade de estar junto de Madalena, queria abraçá-la e sentir seu corpo quente, mas continha-se e ficava ao lado do seu amigo. O clima não era propício a amores incertos e dores de cotovelo, ele sabia disso, e, como era de praxe, enchia-se, novamente, de pesares e torcia para que tudo aquilo pudesse acabar rapidamente.

         Ele sofria mais pelo fato de não poder estar ao lado de Madalena do que pela morte do coronel Torres. No entanto, um outro sofrimento, de equivalente proporção, enchia o seu coração de agonia: era difícil de aceitar, mas, daquela hora em diante, o amigo viveria sozinho naquela casa grande. Tinha ido ali apenas para conhecer a casa do amigo e dar-lhe uma resposta que, segundo a sua concepção, haveria de ser uma negativa, à proposta de Eleovaldo. Não tinha a menor vontade de ficar ali, pois estava certo de que o rio era a sua verdadeira casa; no entanto, um sentimento profundo o unia ao amigo, sentia-se estranho, como se fosse toda sua a culpa pela morte do velho coronel. Nunca fora homem de resoluções precipitadas, mas a morte do coronel tirava dele todo o direito de negar o pedido do amigo. Eram, de fato, grandes amigos e não seria mais que sua obrigação estar sempre ao lado dele para consolá-lo e diminuir, o quanto fosse capaz, todo o sofrimento que devia estar sentindo naquele momento.

         A casa já estava praticamente toda vazia; o velho não possuía outros parentes próximos e as pessoas que velavam o corpo, logo que terminou o enterro, foram se retirando, ficando apenas os empregados, Luzia, Madalena e José. Ele estava sentado com Eleovaldo a um canto da sala, enquanto as mulheres conversavam em um banco escondido próximo à porta de saída; deixou-o sentado com seu sofrimento e veio ter com elas. José sabia em mente todas as coisas que teria que dizer e, ainda que elas pudessem causar alguma discussão, não teria mais como retroceder na sua resolução, e estava certo de que tudo aquilo era o melhor para eles e para o amigo, já estava tudo acertado com Eleovaldo.

         Chegou de um modo vagaroso, como se pensasse em alguma coisa distante daquele mundo, e, olhando bem nos olhos de cada uma, falou decidido:

- Talvez essa não seja a hora certa, mas já tá tudo decidido; sai que cês gosta da roça e do rio... mas a seca e todo o resto...vou ser é carvoeiro, vou mudar de vida e ocês, se quiser pode vir comigo...

         As mulheres não disseram palavra alguma. É bem verdade que tinham o coração apertado e todo cheio de sofrimento, não queriam deixar o velho rio, mas sabiam que José era o homem da casa e tinham plena convicção de que ele sabia o que tinha que fazer. Madalena olhou fixamente para a sua mãe e, como num gesto sincronizado, abaixaram, ambas, as cabeças e aceitaram com submissão . José ainda tentou pronunciar alguma palavra de acalento, mas, desistiu e, após respirar profundamente, voltou para junto do amigo.

         Dormiram todos na casa grande àquela noite e no outro dia, antes que o sol raiasse, José e as mulheres seguiram para a casa velha para buscarem o que os pertencia. A noite fora longa e nenhum dos que ali estavam conseguiu adormecer, mas José foi o único que, na sua impaciência, levantou-se e passou quase toda a noite sentado num banco do jardim, olhando a lua e as estrelas no céu, lembrando os ensinamentos do pai e da mãe que partiram, sem saber se estava certo ou errado na forma que tinha agido. Madalena quis se levantar também e ir para junto do amado, queria sentir o seu cheiro e tinha esperança de receber em troca um pouco do seu amor, mas teve vergonha do seu sentimento, benzeu-se, rezou um credo e uma Salve Rainha e passou toda a noite revirando na cama. Luzia compenetrou-se na sua tristeza e ficou toda a noite quietinha, como se estivesse morta, pensando no rio e nos espíritos dos parentes que lá ficavam, sem companhia alguma. Pode até soar estranho, mas Eleovaldo era o único que estava feliz; também não conseguira dormir e ficara a noite toda virando na cama e sorrindo em silêncio.
       

        A vida é mesmo cheia de surpresa. Eleovaldo, seguindo o curso original da história, deveria estar apenas entristecido com a morte do coronel – como, de fato, verdadeiramente o estava – porém, o sentimento que o deixava naquele estado de alegria era outro bem diferente. Veja você, leitor, que o rapaz tinha muita bondade em seu coração, prezava pelo pai e gostava de verdade de José, no entanto, o destino lhe fora cruel e ele gostava realmente de Madalena.

         Também é verdade que, no início ele queria apenas o bem de José, o que ainda desejava de todo o coração, no entanto, com o passar do tempo, o amor foi crescendo e tomando conta do seu coração, e esse amor o deixou ganancioso quando o assunto era a sua amada, e, então, ele passou a distinguir o que era amor e o que seria apenas amizade. Tinha certeza de que nunca seria capaz de trair o seu amigo, mas estava certo de que, com os seus dotes e toda a sua beleza, poderia conquistar o coração de Madalena. Traçou todos os planos nos seus mínimos detalhes e deduziu, enfim, que, lavando todos para o seu território, maiores se tornariam as suas chances naquela questão. Não pense que a morte do coronel Torres tenha sido culpa dele; o velho, ainda que ninguém soubesse, fazia tempos que andava já bastante debilitado e a sua morte foi apenas o desfecho de um doloroso episódio. Eleovaldo se entristecia pela morte do velho, mas era esperto, e apaixonado, o bastante, para ver naquele acontecimento uma grande chance de conseguir o amor de Madalena, pois sabia da amizade que José tinha por si e, por esse motivo, ele não seria capaz de recusar a sua proposta. Estava quase cego de amor por Madalena, mas era sóbrio o bastante para ver que tudo aquilo seria também um grande favor ao seu melhor amigo.

         Toda história que se preze deve ter um mocinho, uma linda mulher e um terrível bandido, no entanto, peco neste último, pois Eleovaldo não era nenhuma cobra peçonhenta; contrariamente, ele era um homem sério e cheio de boas intenções; não era feio, gozando de alguns traços de beleza. Era alto, sem, contudo, ser muito grande; tinha os cabelos negros e corridos, como bem mandava a boa moda das cidades; usava um bigode curto e bem aparado e vestia-se com esmero. Ele era o que se diz “um partido a altura”; estava sempre limpo e seus perfumes eram caros e cheirosos, no entanto, era simples e conquistava a todos com sua conversa fácil e seu jeito sincero. Apenas não conseguira conquistar Madalena, e era este o seu maior desgosto. Eis que tudo foi se acumulando em seu coração, até que o amor o cegou por inteiro e ele não conseguia pensar em nada que não fosse Madalena; não queria mal a quem quer que fosse, mas seria capaz de tudo para tê-la ao seu lado.



         Após algum tempo, a carvoaria trabalhava a todo vapor; José quase não dormia e estava sempre junto aos camaradas para que pudessem dar andamento à fabricação do carvão. Eram muitos os caminhões que saíam dali para siderúrgicas em Sete Lagoas e, em contrapartida, era muito o dinheiro que entrava no bolso dele e de Eleovaldo. A amizade deles era incontestável, andavam sempre juntos e a cozinha da casa em que José morava era o lugar preferido do amigo; José não sabia, mas não era a sua amizade a principal razão daquele gosto de Eleovaldo, ele gostava mesmo é de poder todo dia estar vendo toda a beleza de Madalena. Todos os dias, Eleovaldo ia à casa do amigo e, ainda que este não estivesse, só saía  depois que fosse tarde da noite. José quase sempre tinha que viajar para outras fazendas da cercania, onde tinha que virar a noite, pois eram grandes as discussões pelo preço do carvão e, ademais, a fazenda de Eleovaldo era um pouco mais afastada do que todas as outras fazendas; não sabia ele, no entanto que estas tantas viagens seriam a sua perdição.

         Eleovaldo não perdia tempo, e, enquanto o amigo viajava em busca de negócios para a carvoaria, ele ficava na sua casa tentando conquistar o coração de Madalena. Ambos, José e Madalena, viviam quase como que se fossem marido e mulher; José gostava de Madalena e, por sua vez, ela devolvia este sentimento, no entanto, apesar de toda a paixão que os unia, nunca encontraram coragem de se unirem de verdade.
         Eleovaldo se aproveitava desta distância que ainda existia entre os dois e, na ausência do amigo, se declarava e contava falsas histórias, sobre José para a sua amada. Madalena não acreditava em Eleovaldo, mas uma gotinha de ciúme começava a brotar em seu coração.
        


         Era ainda madrugada quando José partia para mais um dia de viagens; passaria na casa de Zé Roxão e depois iria para a casa de Pituxo, já bem próximo de Lagoa dos Patos. Levantou-se em silêncio, para não acordar Madalena, e foi preparar o café; ia passando pelo corredor quando a viu deitada sobre a cama, desembrulhada e com a porta entreaberta; chegou até a porta e parou a contemplá-la, estava vestida apenas de calcinha e sutiã e, então, ele pôde notar o quanto eram belas as suas formas; já gostava dela de verdade, mas agora era um sentimento estranho que subia pelo seu corpo; antes gostava de estar junto dela, mas agora sentia um desejo grande de possuí-la; entrou devagar e, em silêncio, sentou-se junto dela, começou a acariciar todo o seu corpo, enquanto era tomado pelo calor do desejo. Madalena não pensou em desviar-se, sentia um grande desejo de possuí-lo e, silenciando-se, deixou que ele a possuísse e deleitou-se de cada momento que se passava.

         O sol já estava alto quando José saiu para a viagem, Madalena ficou deitada, relembrando os momentos felizes que haviam se passado e pensando em como seriam as suas vidas a partir daquele momento. Ele ia feliz pela estrada, pensando em Madalena e fazendo muitos planos para o futuro; voltaria ao entardecer e falaria com ela e, se fosse à vontade de Madalena, casariam-se brevemente e viveriam felizes para sempre, com muitos filhos e uma grande fazenda que pretendia comprar nas proximidades do Pitinha.

         Imagino que você já esteja pensando que estejamos chegando ao final da história e, talvez, pensando que Eleovaldo ficaria sem ação frente a tanto amor; no, entanto, apesar de afirmar que já chegamos ao bem adiantado da história, digo-lhe que ainda há tempo para que o nosso Eleovaldo apronte das suas. Pois eis que, ao José sair daquela casa, e, pouco depois de Madalena ter se levantado, ele chegou, pronto para dar fim aos seus planos; convenceria Madalena de que seria o melhor partido e que o seu futuro com ele seria a sua melhor escolha.

         A rudeza e a simplicidade são a principal fraqueza do sertanejo e foi justamente deste detalhe que Eleovaldo se aproveitou. Várias foram as mentiras de que o rapaz valeu-se para tentar convencer Madalena, e, dentre elas, a que  mais  a deixou estarrecida foi a história de que José teria uma mulher com quem se encontrava em todas as suas supostas viagens; ela acreditava no seu amado, mas ficou abalada com aquele assunto. Eleovaldo atento a todos os detalhes, contou-lhe a história e ainda citou nomes que, ele sabia, ela nunca poderia confirmar. José viajava durante quase toda a semana, mas Madalena cria nas suas versões e nunca ousara perguntá-lo sobre coisa alguma, mas agora uma grande dúvida tomara o seu coração. Eleovaldo, vendo que já estava quase a convencendo, quis tirar a sua última cartada e afiançou que naquele dia José não voltaria; disse a ela que ele estaria em casa da amante e, querendo Madalena, iriam ambos até a dita casa para dissipar qualquer dúvida que permanecesse em seu coração. Ela não aceitou e, respeitando as palavras do amado, preferiu esperar até que o dia terminasse. Eleovaldo não se demorou como nos outros dias, mas, ao sair, deixou a sua proposta: quisesse ela, iam os dois à casa da amante de José e, se acaso mudasse de ideia, ele estaria pronto a tomá-la como esposa.

         Madalena foi tomada por um sentimento estranho, confiava em José, mas o que Eleovaldo tinha dito começava a criar certa razão em sua mente; resolveu esperar e só depois é que tomaria a sua decisão, ainda não pensava em se casar com o outro.

         O destino é, de fato, um grande traiçoeiro e, ainda que José tenha feito todos os esforços para voltar para casa no mesmo dia, vários problemas o fizeram atrasar; primeiro foi uma terrível doença que tomou um seu cavalo que Eleovaldo o havia dado como presente, e, depois, alguns arruaceiros – a mando de Eleovaldo – que o fizeram se atrasar por quase uma semana; prenderam-no numa pequena cabana e, talvez, o matariam se não conseguisse fugir por um pequeno buraco que fizera em uma das telhas de amianto. Chegou em casa uma semana depois do dia em que saíra e grande foi o baque quando encontrou Madalena casada com Eleovaldo. Tentou se explicar, mas a mulher quase não o escutou; tentou falar com o amigo, mas este, que passara a andar com vários capangas, nem fez questão de ouvi-lo.

         Uma grande tristeza tomou conta de José, quase perdera a vida em uma emboscada e ao voltar para casa havia encontrado a mulher casada com o seu melhor amigo. Sentiu que aquele não era mais o seu lugar, pegou as suas coisas, abandonou a carvoeira e voltou para junto do Sanharó. Passou a viver sozinho em sua velha casinha, já não pensava em trabalhar e nem mesmo queria viver; ficava todo o dia sentado à beira do rio ou ia para as vendas em busca de cachaça para fazê-lo esquecer de Madalena.


         Madalena vivia com Eleovaldo, mas nunca conseguira esquecer do antigo amor; sentia saudades de José, mas, como que de repente, um grande ódio tomava o seu coração e ela não conseguia perdoá-lo e, então, uma grande confusão se fazia em sua cabeça. Ela não gostava de Eleovaldo, mas achava que era seu dever ficar do lado do homem que a salvara de uma terrível traição. E, desta forma, viviam, Madalena e José, cada qual cuidando da sua infelicidade.

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