quinta-feira, 27 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 16)

“O sol estava quente e, àquela hora, poucas eram as pessoas que transitavam por ali, apenas alguns homens e mulheres passavam rapidamente, a fim de chegarem com maior rapidez às suas casas ou escritórios. Luís saiu devagar e foi dessa maneira que ele pôde observar o quanto as coisas haviam mudado enquanto estivera do lado de dentro daquele portão; ajoelhado, após ter beijado o chão, pôs-se a chorar enquanto imaginava sobre o que fazer a partir daquele instante, olhou para o céu e teve  a certeza de que era o seu dever procurar por sua amada, contaria toda a sua história, falaria do seu sofrimento e do seu arrependimento,  ela haveria de perdoá-lo, e, se acaso , ela não o perdoasse, seria aquele o último instante de sua vida , deixaria tudo para se entregar à eternidade”.

         “Levantou-se devagar e, como se tentasse se acostumar com a nova vida, seguiu em direção à igreja matriz, sentia uma grande necessidade de conversar com Deus, precisava desabafar, contar todos os seus pecados para alguém em quem pudesse confiar, pois, cria ele que apenas dessa forma, liberto de todos os seus pecados, tudo poderia se desenrolar com maior clareza e facilidade. E, enquanto caminhava, flashes vinham ao seu encontro e, de certa forma, isso o causava estranhamento, pois, de todas as recordações que lhe tomavam a mente, nenhuma o fazia relembrar a sua infância, sabia que, um dia, tivera pais, irmãos e amigos, mas, era desconfortante, em momento algum conseguia lembrá-los a feição ou, mesmo, algum detalhe que os pudesse revelar, era como se a sua vida partisse de uma data posterior, como se nada lhe houvesse acontecido nos tempos antecedentes àquele”.

         “A igreja, como em toda cidade pequena, era bem próxima à cadeia, algo como a distância entre dois quarteirões, ou ainda menos que isso. Luís não se considerava católico nem protestante, de quando versam as suas lembranças, sabia que tinha ido apenas uma vez a uma igreja, justamente naquela igreja, numa noite de natal, acompanhando a sua amada, achou, daquela vez, que era tudo muito bonito e prazeroso, mas, depois, nunca mais voltara naquele lugar. Agora retornava, vinte anos depois, numa outra situação, de uma maneira que, talvez nunca pudesse esperar; mas sentia dentro de si uma imensa paz, que parecia encher o seu coração de alegria, ou algo parecido; no, entanto, a falta que Ismália lhe fazia parecia ser bem maior que todo aquele sentimento, e, abruptamente, as lembranças vinham, e ele recordava que, naquela noite natalina, num daqueles bancos de madeira, deixaram tudo acertado, e, num futuro bem próximo, naquele altar, sob a proteção do Senhor crucificado, realizariam o seu casamento. Ajoelhou-se, compenetrado, e pôs-se a rezar, depois, procurou pelo padre, a fim de se confessar, não o encontrando, precipitou-se escada abaixo e, rapidamente, saiu em direção ao morro de Lourdes, sentia-se ainda muito leve, quase como se quisesse flutuar, não distinguia se estava triste ou alegre e uma lágrima solitária teimava em molhar o seu rosto”.

         “O morro estava vazio àquela hora e em nada lembrava o que era há vinte anos; a grama verde de outros tempos tinha dado espaço a cinco bancos de cimento espalhados por entre flores de vários aspectos e diferentes cores, eram flores verdes, amarelas, azuis e vermelhas, e, por algum motivo, vermelho era a cor que não queria sair da cabeça de Luís. Podia sentir o seu coração batendo de forma acelerada, as mãos tremiam e sua testa já estava totalmente ensopada de suor. As lembranças eram a sua incômoda companhia, recordava Ismália, e ela, linda como uma deusa, aparecia-lhe toda vestida de vermelho, em um longo vestido de seda com alcinhas de fita e miçangas douradas; um arco fino, branco com bolinhas douradas muito pequenas, prendia os seus cabelos que eram muito negros e de um liso muito macio, deixando-os escorrer pelos ombros descobertos. Ela calçava um tamanquinho preto, e Luís sabia que seus pés eram lindos e macios, e na suas unhas desfilavam pequenos desenhos de flores em verde e vermelho. Eram as lembranças, resquícios da formatura de Ismália e, na festa ou mesmo na igreja, para ele, era ela a mais bela de todas. Tendo acabado a missa, de braços entrelaçados, foram passear por ali, sentaram-se à grama, bem junto ao Cristo Redentor, e ficaram a contemplar o céu e as estrelas até que o dia amanheceu, perderam todo o resto da festa, mas eram felizes de verdade.

         “Aquelas lembranças eram, de fato, as melhores que Luís poderia ter, mas, ao mesmo tempo, eram terríveis, grandes crueldades para com o seu coração”.

         “Levantou-se do banco em que se prostrara e, dando uma olhada para o clarão da cidade ao longe (como estava bonita!), saiu vagaroso, pensando no quanto havia desgraçado a sua vida. E, enquanto caminhava, ia pensando em Ismália e nos seus olhos negros, pensava no quanto eram profundos e em quanta paixão se podia ver dentro deles, coisas que só naquele instante tinha sido capaz de descobrir. A sua cabeça parecia um turbilhão de pensamentos e, além do mais, para completar o seu inferno astral, as lembranças oscilavam entre toda a beleza de sua amada e as terríveis reminiscências daquela noite trágica. As pernas se moviam quase que de forma automática e ele nem viu todo aquele caminho que tantas vezes, em outros tempos, havia feito de braços dados com Ismália: Passou devagar pela loja do Benício, cabisbaixo, contornou a escola de mesmo nome até chegar à rodoviária, que não descobrira ser, agora, bem diferente e maior que a anterior; passou ainda pelo clube Cecorje e parou, finalmente, entre perplexo e feliz, junto ao armazém de Zé do Retiro, havia chegado à sua velha rua e, ainda mais, as lembranças passaram a fluir com maior constância e facilidade...”

         Leonel dava certo ar de suspense àquela história, mas como o leitor, atento como o há de ser, talvez já tenha observado, a partir de certo ponto, toda a narrativa é tomada por um considerável espaçamento entre os detalhes e maior velocidade; talvez não se possa ter certeza do porquê, mas pode ser que ele, Leonel,  tenha descoberto o desinteresse da maioria  que ali estava, o que , de certa forma, pouco ou nada o preocupava, uma vez que o principal interessado, Bento, ainda se mantivesse com os olhos bem abertos, ou, quem sabe, se para que os outros não pudessem recordar dos detalhes se, depois , um dia adiante, resolvessem desfazer o fio condutor do destino, o que, venhamos e convenhamos, é impossível de se fazer, pois, uma vez traçado , ninguém pode desfazê-lo. Talvez nunca saibamos ao certo o porquê daquele acontecimento, mas é certo que ele coçou a barba, pigarreou novamente, como se alguma coisa lhe obstruísse a garganta e, olhando para todos que ali estavam, com um sorriso estranho na boca, finalizou a história:

         “Sei que a história lhes é triste e, por muitas vezes, dá por alguns pareceres semelhanças com as tantas histórias românticas da nossa literatura, mas fio-lhes que apenas coisa verdadeira, como o é o fato de estar a minha presença hoje aqui neste lugar. Poupar-lhes-ei os maiores detalhes da dura caminhada que o nosso herói percorreu até que chegasse, finalmente, a casa de sua querida Ismália, mas digo-lhes que fora tão tensa como tem sido todas aquelas, que anteriormente relatei.”

         “O tempo, que estava quente, naquele momento era coberto de nuvens negras, e uma chuva fina começava a cair sobre o nosso homem; o seu coração pulava forte quando chegou de frente à casa de Ismália; parou de uma só vez e, olhando para aquela velha fachada, lembrou-se daquela cena terrível que não lhe saía da cabeça e quase nunca o deixava dormir: Aquele corpo estendido no chão e Ismália, desconsolada, sentada num canto toda suja e soluçando; respirou fundo e tomou a sua grande resolução: ou ela lhe perdoava e aceitava-o de volta, ou daria um fim a sua própria vida, acabando com todo aquele sofrimento”.

         “Vejam vocês que muito tempo já havia que ele estava ali parado; levantou-se e começou a bater palmas em frente àquela casa, primeiro com muita calma, depois, vendo que ninguém aparecia para atendê-lo, começou a esmurrar a porta verde, ao lado de uma janela de madeira, já envelhecida pelo tempo, de mesma cor. As lágrimas lhe desciam pela face quando, da casa vizinha, saiu, com os olhos grandes e espantados uma mulher, era uma mulher gorda, que vestia um longo vestido azul e um grande avental cheio de flores e desenhos muito vivos; aquele barulho a tinha assustado, no entanto, naquele momento, era o sofrimento daquele homem que a deixava ainda mais assustada”.

         “Chegou à porta de um jeito manso, parou toda cheia de si bem debaixo do esteio da pequena varanda e, olhando fixamente para aquele insignificante ser que estava a sua frente, falou:”

         “- Moço, mora ninguém nessa casa aí não. Faz tempo que saiu todo mundo desse lugar... Eu não morava aqui ainda não, mas me disseram que foi tudo por causa de um rapaz, de quem o nome nunca fiquei sabendo. Sabe? Ninguém aqui nem toca no nome dele e, pelo que me disseram, eu acho que tinha mesmo é que ter matado aquele desgraçado. O senhor me desculpa, viu, moço, é que eu gosto de falar é a verdade. Olha, dizem que esse sujeitinho, por causa de um ciúme besta, matou o irmão da menina que morava aí, Ismália, que, de fato e direito, era noiva dele; mas olha... Ele pensou que o irmão era o amante da coitada, sabe! E, depois, ele ainda tentou violentar a coitadinha...” 

         “Ele não disse uma só palavra, mas via toda aquela história, como se fosse um filme que reprisava em sua mente; os sentimentos se confundiam na sua cabeça e, a cada instante que passava, aumentava ainda mais o seu sofrimento. E a mulher, alheia a todo aquele sofrimento, continuou:”

         “- Olha moço, aquele homem deveria era ter sido morto, mas a polícia veio logo e o prendeu; e a menina, coitadinha, quem viu disse que era morrer de dó, gostava tanto dele e tinha tanto amor para com o irmão, teve uma crise de dar pena na mais desalmada das almas; como se fosse um castigo de Deus, endoideceu a ponto de terem de interná-la num sanatório lá em Montes Claros...”


         “O pobre homem ao ouvir as palavras que saía da boca daquela mulher, pôs-se logo em desespero e, aos gritos, saiu correndo pela rua afora gritando pelo nome de Ismália, e aquela foi a ultima vez que se teve alguma notícia dele.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário