Paremos um instante, e
façamos uma rápida análise daquele pequeno profeta; afinal, de nada nos
adiantaria a pressa de chegarmos ao nosso destino se não tivéssemos a paciência
e a inteligência necessárias para observarmos o que se passa em tão oportuna
hora. Não digo para nos contentarmos com estas poucas páginas, pois sei que a
sede de quem lê uma história é, de fato e razão, saber como se finda a questão;
no entanto, andemos devagar e com os olhos atentos ao que por ventura possamos
ver nas entrelinhas, e mantenhamos os ouvidos aguçados para que possamos
escutar tudo aquilo que a nossa mente possa nos dizer.
Imagino que já deve estar
a bocejar em sua poltrona, pois, talvez a história esteja desgastada e
entediante, mas reafirmo (se é que já disse em algum ponto) que nem mesmo eu
sei aonde deveremos chegar, não sou eu quem faz os personagens, mas, são eles
que se criam por si mesmos e, por ser assim, seria injusto que o Leonel fosse
diferente dos demais. Tenho ideias e fatos para escrever, no entanto eles é que
se fazem dizer, da forma que lhes convier.
Seria utopia acreditar que
todos os fatos aqui descritos sejam verossímeis, no entanto, ponho o dedo na
ferida, e afirmo que todos os personagens, sem qualquer exceção, existem ou
existiram, alguns permanecem aqui com o seu nome verdadeiro, enquanto outros
ganharam novos nomes, feições e características diferentes, cabendo a você,
leitor, descobrir o que é fato ou invenção nesta história; afinal, a vida é uma
eterna desconfiança.
Digo que o Leonel existiu
de fato e penso até que fosse um enviado daquele rio; talvez, ele o tenha
escolhido para guiar a tarefa do pequeno Bento ao seu, ainda encoberto,
destino. Certifico de que o rio era cúmplice daquele homem e, por isso, parara
atencioso enquanto ele narrava a história, nenhuma gota de água se mexia,
nenhum barulho saía daquele espelho d’água ; com certeza, ele sabia de tudo
aquilo que seria dito e talvez buscasse apenas confirmar , com os seu próprios
sentidos, de que tudo seria dito e que todo o emaranhado do destino se faria
cumprir.
Já era noite no Sanharó e
quase todos já tinham adormecido, apenas os dois patriarcas e os dois pequenos
eram quem escutava aquela narrativa. Gentil e Justino, incrédulos como sempre ,
não levavam a sério aquilo que ele falava , tinham-no como doido, e o escutavam
apenas para que o tempo passasse com maior rapidez, os garotos, contudo, eram
tomados por distintas sensações; José sentia um grande medo tomar-lhe o peito,
sabia que aquela era a história do seu amigo e, a cada novo fato narrado, tinha
maior medo de perdê-lo; Bento, por sua vez, gozava de grande tranquilidade e,
vez ou outra, sentia um pequeno arrepio tomar o seu corpo, era como se já
soubesse de toda aquela história e visse, de frente a si, todo o seu futuro nas
palavras daquele homem; não temia pelo que pudesse acontecer, apenas não queria
esquecer àqueles a quem amava. O destino é o único que não cultiva amigos e,
sabendo disso, Bento estava ciente que, ao atravessar a pinguela do rio , o que
muito brevemente aconteceria, lembraria ainda daqueles que ficavam, no entanto,
o tempo o faria esquecê-los e, sozinho no mundo, seria um único homem perdido
no grande caminho da vida.
Algumas goteiras caíam das
velhas telhas e miravam bem próximo de onde estavam aqueles homens, e era uma
água fria que descia lentamente, fazendo um barulho trágico e medonho. Justino
levantou-se para pegar uma vasilha que pudesse aparar aquela goteira
entediante, enquanto Gentil preparava um grosso cigarro de palha, alisando-a
com a ponta da língua e tendo em uma das mãos uma caixa de fósforos e um
punhado de fumo já picado e apertado contar os dedos. As crianças nem se mexiam
e concentravam toda a atenção nas palavras roucas e bem elaboradas que
saltavam, mansamente, da voz daquele homem. Lá fora, junto com a chuva que
teimava em cair, batia um vento forte e relâmpagos entrecortavam o céu como se
fossem flashes e, como nas histórias de terror, davam um ar obscuro à história
que saía como em conta-gotas da boca do profeta. Os cachorros latiam ferozmente
no quintal tentando se esconder da chuva e aquilo causava uma grande irritação
em José, que não conseguia se desligar daquele homem e que, mesmo pensando em
Madalena, que dormia com Luzia no quarto dos fundos, ouviu quando Leonel
pigarreou forte, para limpar a garganta, fez uma pequena pausa enquanto
estralava os dedos de ambas as mãos, olhou para o tempo lá fora, através da
velha janela de madeira entreaberta e, após piscar três vezes sem para,
continuou a contar-lhes a história...
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