segunda-feira, 24 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 14)

     - Leonel, sim senhor, este é o meu nome.

       De fato, esse era o nome daquele homenzinho estranho. Ele era baixo e tinha os cabelos despenteados, quase batendo nos ombros; tinha a barba grande e muito negra e carregava um cheiro forte, de quem há muito tempo não se banhava. Apesar de estar todo ensopado daquela chuva, podiam-se divisar bem as suas vestes, e eram roupas simples, porém, eram também roupas de quem aparentava bom gosto: trajava um sapato velho com o bico do pé direito rasgado, uma calça velha de brim e um terno aparentando ser o complemento da primeira; por baixo vestia uma camisa aberta, de cor branca, já muito encardida e uma gravatinha borboleta preta com algumas bolinhas brancas dispostas em grandes espaços entre si.

       Aquele nunca haveria de ser um homem de grande importância, mas uma nota sobre a sua existência seria encontrada, tempos depois, no livro retrospectiva história e geográfica do município de Coração de Jesus, de Ubirajara Macedo, em cujo seria lido: “Talvez tenha nascido em 1.860 ou depois, não é certo até os dias de hoje de quando nasceu e de quando morreu”. Suas previsões foram fantásticas pela época, em uma região agreste em que nada existia (...)’’.

      Teria sido um profeta, se antes não fosse um louco. Leonel falava corretamente o português e conhecia plenamente todas as regras para se passar por um “gentleman”. Cumprimentava todas as mulheres com uma delicada reverência e apertava firmemente a mão dos homens com quem conversava; nunca dizia qualquer palavra que fosse, de alguma forma, indelicada e media bem todas as ideias que precisasse exprimir. Nunca se passaria por louco se não fossem as previsões que sempre vinham em sua mente. Nascera em Coração de Jesus e ali previu tudo aquilo que não conhecia: o avião, máquinas motorizadas, luz elétrica, além de várias outras maravilhas do mundo moderno.

Leonel sempre se sentira como se fosse um incompreendido; um dia, teve um sonho e saiu dizendo para aqueles a quem conhecia que haveria de buscar um garoto, em outra região, e que aquele comprovaria que suas previsões não eram blefe ou loucura; contou toda a história que se passaria com aquele menino, pediu que alguém a anotasse, e saiu pelo mundo, como se fosse um caminheiro, a procura do seu destino.
 
       Já era quase noite quando Leonel entrou naquela casa, da qual sairia, três meses depois, carregando consigo o pequeno Bento. E após ter jantado junto com aquela família, Leonel começou a contar a sua história, de quando nasceu até aquele instante, falou sobre um garotinho estranho que perderia os seus poderes após atravessar a pinguela do Sanharó e, mesmo vendo que ninguém acreditava em sua história, começou a contar uma previsão triste de um rapaz que fugiu de casa e, após esquecer todo do seu passado, criou um novo mundo, um novo nome e uma outra história.  

      Nenhuma daquelas pessoas rudes e sofridas deu maior importância à estranha estória que Leonel contava, porém, nenhum deles seria capaz de fazê-lo calar. Era uma estória triste a que ele contava e dizia que o personagem era inventado, embora sempre enfatizasse que os fatos e os cenários fossem todos verossímeis, contanto que haveriam de acontecer num futuro de tempo mediano.

A chuva, que há muito tempo não parava de cair, continuava forte e criava poças d’água em todo o terreiro e fazia uma lama escura e grudenta onde os cachorros se enrolavam para, depois, correrem para o Sanharó. E o velho rio descia manso, apesar da chuva e do vento, e se alguém parasse para olhá-lo naquele instante haveria de dizer que ele tinha parado para ouvir a estória do andarilho, no entanto, poderia se dizer ainda que ele houvesse parado para confirmar a estória que o homenzinho narrava e ele podia ver que o menino com quem sempre conversava tinha um brilho nos olhos e que aquela era uma das suas últimas visões por ali. 

     Bento nunca tinha atravessado a pinguela do Sanharó, mas ele via, passo a passo, na estória do Leonel, tudo aquilo que, em algum momento de sua vida, haveria de passar. Sentia no peito todo o sofrimento antecipado e, pelas entonações roucas da voz do andarilho, via todos os percalços que teria de enfrentar; ele sentia a fala do Leonel, que era pausada e tão correta como ele nunca tinha visto em sua vida e que, após um grande pigarreio para limpar a garganta, sentenciou:

     “O destino é o pai das coisas deste mundo. Esta chuva que não para é um prenúncio do destino. Esta minha vinda até aqui é uma trama do destino, ele existe de fato, e é forte, bastante forte para nos guiar, mas ele não é o único e nem o maior, existe uma força maior que comanda todos os nossos passos, todos os nossos pensamentos, e o destino, este empregado honesto e muito esforçado, seria o seu principal representante. Pois agora apenas alguns acreditam naquilo que digo, mas o tempo é amigo do destino e a história há de se construir por suas próprias pernas; por isso, tenham que sou um simples mensageiro da poesia da vida e venho, única e exclusivamente, para lhes contar uma história triste, e emocionante, daquelas que começam sem ter um sentido concreto e terminam como se fossem um foguete em desgoverno, ou, talvez, rápido e brilhante como o são os raios, sem, apenas, ter em seu encalço a grande trovoada do sobreaviso. Antes de começar a narrativa em si, eu confesso que sou um grande admirador das prosas ditas por nossos ancestrais, e, como que seguindo seus mais recônditos e simplórios ensinamentos, que deveriam ser exemplos para os nossos, já afamados prosadores; confesso, ainda, que tenho aqui distorcido alguns detalhes, fatos ou informações – coisas irrelevantes para o fim da história - para que alguns de vocês não me queiram levar assim tão a sério, pois, creio em meu peito, que aquele a quem me dirijo já conhece o seu futuro e o resto são apenas alegorias e pequenos desencontros. Façam o grande favor de ouvir-me com esmerada atenção e, depois, como é de praxe entre os seres mais democráticos, tirem, vocês mesmos, as suas próprias conclusões, pois fio na sabedoria que cada qual carrega no seu âmago, e entendam o que lhes for mais fácil e de maior segurança...”.

            E Leonel continuou a sua história, entremeando ares de suspense e previsão: “Pois que me perdoem se os confundo, mas esta história aconteceu num futuro distante, e era uma Segunda-feira quente, talvez num mês de agosto ou setembro; fazia vinte anos que Luís estava preso. Aquele seria o dia da sua libertação, mas nem mesmo tão grande acontecimento seria capaz de tirá-lo da agonia em que se encontrava. De fato, a cela em que estivera por todos aqueles anos era bastante pequena e muito pouco iluminada; num canto escuro, uma minúscula cama de concreto com um pequeno colchonete velho e sobre ele um travesseiro branco, já bastante encardido, e um cobertor xadrez, repleto de rasgões e pontas desfiadas; num outro lado da cela, havia um pequeno orifício na parede, por onde saía a água fria com a qual se banhava todos os dias, e, numa terceira extremidade, recanto onde existia uma pequena janela com grades, de onde se podia ter como paisagem os fundos da cadeia, uma visão nem um pouco prazerosa para quem fazia vinte anos que se encontrava recluso naquele lugar”.

            “Ele tinha um aspecto bastante tristonho e o seu semblante, como não poderia deixar de ser, era bastante pesado para um homem de certa idade. Talvez tivesse ainda uns trinta e poucos anos de idade, era pálido como se fosse um mocinho das velhas histórias Românticas; alguma beleza, mesmo que cheia de rudeza, ainda permanecia em sua face enrugada, mas o tempo não fora forte o bastante para manter toda a plenitude de eras passadas e, como se fosse castigo do destino, a vida havia passado rápido de mais para ele. Os cabelos já lhe eram muito ralos e possuíam uma cor quase branca, e era um branco quase ao tom de encardido, era como se o tempo tivesse começado um serviço e o deixado sem um término; seus olhos eram azuis, mas não tinham mais a vivacidade de outros tempos e neles já não se podia ver o futuro brilhante e paradisíaco com o qual tanto havia sonhado em sua juventude; seu corpo se havia encurvado para frente, como se o tronco quisesse chegar ao destino antes que as pernas pudessem alcançá-lo. Digo novamente que ele não era velho, mas o seu espírito o fez de tal maneira, que já se pensava que o fosse; era um homem triste, e esse sentimento o derrubara algum dia e não queria mais deixá-lo levantar-se; era como se fosse um homem forte, daqueles troncudos e ignorantes, que derrubam seu oponente (aquele corpo) colocando todo o seu peso sobre a vítima, tornando-o incapaz de reagir. Não obstante, reafirmo que ele não era apenas uma vítima da prisão dos homens, mas a sua consciência era o seu juiz, e fora ela que o havia condenado, a sua consciência o prendera, e ela tinha um nome: Ismália Morena, e tinha a voz tão doce como seu corpo bonito”.

            Leonel parecia viajar naquela narrativa e, sem dar tempo para qualquer pergunta, continuava: “Já eram quase nove horas da manhã, completava vinte anos de reclusão, e às dez horas ganharia a sua liberdade. Um sentimento dúbio tomava conta do seu peito e ele não sabia qual seria o seu verdadeiro sentimento, afinal, queria reconquistar tudo aquilo que havia perdido, mas achava-se um criminoso e tinha medo que os outros também o vissem assim. Passara todo aquele tempo sozinho, nenhuma visita, nenhuma vivalma para vê-lo; desde que deixara a roça em que vivia nunca mais pudera rever os pais e sabia que nunca mais tornaria a vê-los; o destino, aquele que lhes havia dito, sempre quis que desta forma acontecesse , havia tramado toda a sua tessitura e já tinha em mãos todo o destino do infeliz. Eram muitos os amigos que tinha, mas nenhum nunca o tinha visitado naquele lugar, quando cometera aquele crime pareceu que tudo ao seu redor tinha chegado ao fim , tentava não se preocupar com aquilo, não que lhe faltassem bons sentimentos, sentia saudades da família e dos amigos, mas nunca os tivera como se fossem eternos , sabia das suas limitações para com o mundo e sempre que possível tentara ver as coisas como de fato elas devem ser, acostumou-se a estar sozinho naquele lugar e se entretinha em remoer as suas antigas dores de amor. E eram estas o seu maior sofrimento; de fato, o coração era o que mais lhe fazia sofrer, Ismália nunca o havia visitado. As lembranças lhe eram amargas, mas ele nunca havia tentado esquecê-las: era início de noite quando os homens o prenderam, algemaram-no toscamente, de forma que os anéis cortavam-lhe os pulsos, sentia o suor correndo pelo seu rosto e embebia, brutalmente, toda a dor e o cansaço que tudo aquilo lhe causara, sentia-se envergonhado e não tinha coragem alguma de encarar a sua amada; abaixou a cabeça, como que se não tivesse mais força alguma para lutar, e deixou que o levassem aos empurrões, gritos e sopapos. Era uma noite fria, e uma garoa caía sobre sua cabeça, ele estava nervoso com a visão que a pouco tivera e não era capaz de responder por suas próprias ações; havia se enchido de uma raiva estranha, como se algum demônio o tivesse possuído e, depois da verdadeira revelação dos fatos, sentia-se envergonhado e tinha vontade de morrer. Ele já estava entrando na viatura quando a curiosidade fê-lo virar-se; olhou rapidamente, virando o rosto de forma brusca, e a viu, com os olhos avermelhados pelo choro convulsivo, sendo amparada pelos vizinhos que vieram socorrê-la; tentou pedir perdão, mas sentiu-se um pecador e chegou à conclusão de que de nada adiantaria fazê-lo; ele resignou-se ao seu sofrimento e deixou que o jogassem para dentro do carro”.

            “Ismália nunca o havia visitado na cadeia, no entanto, há muito tempo ele a havia perdoado pela omissão, ou melhor, jogava sobre si próprio toda a responsabilidade pelo acontecido, mas convencia-se de que, no dia em que saísse daquele inferno, haveria de procurá-la e pedir o seu perdão. Sabia da sua vontade, mas não conhecia mais a mulher a quem sempre amara e que, de fato, era a sua vida; imploraria seu perdão, mas, como deveria ser, aceitaria passivo todo o seu rancor, pois estava convicto de que nunca deveria ter praticado aquela ação tão irracional, uma tremenda brutalidade; enfim, coisa de um mero idiota. Lembrava-se fortemente daquele dia e os acontecimentos vinham como flashes em sua mente, sem que ele pudesse controlar as suas ações. Os gritos de Ismália... O tiro... A roupa rasgada... O corpo caído, estirado ao chão, e os sangues se misturando... Ela chorando... E, depois da verdadeira história esclarecida, aquelas duas prisões: a do homem e da sua consciência. Poderia ter fugido se quisesse e, naquele momento a sua vida poderia ter outros fatos para narrar; no entanto, achou-se indigno daquela chance; poderia se esconder dos homens, mas não da sua consciência, aquele sentimento seria a sua grande prisão e, mesmo que fugisse, ele o acompanharia pelo resto da sua vida. Sentou-se, então, numa velha cadeira, toda tecida de palha e, enquanto fumava um cigarro, esperou com o coração aos pulos, que o viessem prender”.

            “Faltavam vinte minutos para as dez horas da manhã, e uma aflição grandiosa tomava todo o seu coração, sentia-o acelerado e as pernas trêmulas; o suor descia lentamente, queimando a sua pele, e ele podia sentir, fortemente, que uma fraqueza intensa apossava de si. Durante todas as noites, em todos aqueles vinte anos, sonhara com Ismália, aquela moça pequena e de olhar dengoso, com quem um dia pensara em se casar e construir uma bela família, aquela em quem sempre pôde confiar e há quem um dia, possuído de grande idiotice, traiu a confiança por força de um ciúme doentio. Sonhava sonhos bons em que se casavam jurando um amor feliz e duradouro; outroras, estavam num grande campo repleto de gramas verdes, muitas flores de várias cores e grandes borboletas de colorações verde- amarelo- azul pousavam nos cabelos de Ismália, mas os sonhos eram entrecortados pelos flashes daquela estúpida noite e Luís acordava suado, às vezes querendo dar um fim à sua vida, outras, menos tensas, chorando com saudade da felicidade que um dia tinha jogado junto àquele sangue que marcou toda a linha do seu destino. Sentia-se desanimado e queria apodrecer naquela cela; sentia-se fraco e tinha um grande temor de enfrentar o mundo, tinha medo de encontrar tudo aquilo de que um dia abrira mão; eram intermináveis vinte anos sem ver o mundo , as pessoas, sem ter contato com outras vidas libertas e, agora, se confundia: não sabia mais se era um homem enjaulado ou se um animal em extinção”.

            “O corredor parecia cada vez mais longo. Já eram dez horas da manhã e, com passos lentos e receosos, ele seguia rumo à luz que, de pequena e distante, ia se avolumando a cada passo que ele andava, e, a cada instante se tornavam mais fortes e pungentes as lembranças de Ismália. Havia vinte anos que Luís não via o movimento das ruas e nenhum outro ser vivo além dos guardas e os outros presos da cadeia, e as únicas notícias do lado de fora só chegavam de vez em quando, quando um novo preso chegava para lhe fazer companhia. A luz foi ficando mais forte, até que, com o coração aos pulos de emoção, Luís atravessou a grande porta que dava para a liberdade, e, de repente, um sentimento estranho tomou conta daquele homem que, primeiro, se ajoelhou no chão, em meio às pessoas que passavam, debaixo do sol quente da quase-hora do almoço, e começou a beijá-lo, enquanto as lágrimas encharcavam o seu rosto avermelhado, era um misto de alegria e tristeza num único semblante”.


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