- Leonel, sim senhor, este é o meu nome.
De fato, esse era o nome daquele homenzinho estranho. Ele era baixo e
tinha os cabelos despenteados, quase batendo nos ombros; tinha a barba grande e
muito negra e carregava um cheiro forte, de quem há muito tempo não se banhava.
Apesar de estar todo ensopado daquela chuva, podiam-se divisar bem as suas
vestes, e eram roupas simples, porém, eram também roupas de quem aparentava bom
gosto: trajava um sapato velho com o bico do pé direito rasgado, uma calça
velha de brim e um terno aparentando ser o complemento da primeira; por baixo
vestia uma camisa aberta, de cor branca, já muito encardida e uma gravatinha
borboleta preta com algumas bolinhas brancas dispostas em grandes espaços entre
si.
Aquele nunca haveria de ser um homem de grande importância, mas uma nota
sobre a sua existência seria encontrada, tempos depois, no livro retrospectiva
história e geográfica do município de Coração de Jesus, de Ubirajara Macedo, em
cujo seria lido: “Talvez tenha nascido em
1.860 ou depois, não é certo até os dias de hoje de quando nasceu e de quando
morreu”. Suas previsões foram fantásticas pela época, em uma região agreste em
que nada existia (...)’’.
Teria sido um profeta, se antes não fosse um louco. Leonel falava
corretamente o português e conhecia plenamente todas as regras para se passar
por um “gentleman”. Cumprimentava
todas as mulheres com uma delicada reverência e apertava firmemente a mão dos
homens com quem conversava; nunca dizia qualquer palavra que fosse, de alguma
forma, indelicada e media bem todas as ideias que precisasse exprimir. Nunca se
passaria por louco se não fossem as previsões que sempre vinham em sua mente.
Nascera em Coração de Jesus e ali previu tudo aquilo que não conhecia: o avião,
máquinas motorizadas, luz elétrica, além de várias outras maravilhas do mundo
moderno.
Leonel sempre se sentira
como se fosse um incompreendido; um dia, teve um sonho e saiu dizendo para
aqueles a quem conhecia que haveria de buscar um garoto, em outra região, e que
aquele comprovaria que suas previsões não eram blefe ou loucura; contou toda a
história que se passaria com aquele menino, pediu que alguém a anotasse, e saiu
pelo mundo, como se fosse um caminheiro, a procura do seu destino.
Já era quase noite quando Leonel entrou naquela casa, da qual sairia, três
meses depois, carregando consigo o pequeno Bento. E após ter jantado junto com
aquela família, Leonel começou a contar a sua história, de quando nasceu até
aquele instante, falou sobre um garotinho estranho que perderia os seus poderes
após atravessar a pinguela do Sanharó e, mesmo vendo que ninguém acreditava em
sua história, começou a contar uma previsão triste de um rapaz que fugiu de
casa e, após esquecer todo do seu passado, criou um novo mundo, um novo nome e
uma outra história.
Nenhuma daquelas pessoas rudes e sofridas deu maior importância à
estranha estória que Leonel contava, porém, nenhum deles seria capaz de fazê-lo
calar. Era uma estória triste a que ele contava e dizia que o personagem era
inventado, embora sempre enfatizasse que os fatos e os cenários fossem todos
verossímeis, contanto que haveriam de acontecer num futuro de tempo mediano.
A chuva, que há muito
tempo não parava de cair, continuava forte e criava poças d’água em todo o
terreiro e fazia uma lama escura e grudenta onde os cachorros se enrolavam para,
depois, correrem para o Sanharó. E o velho rio descia manso, apesar da chuva e
do vento, e se alguém parasse para olhá-lo naquele instante haveria de dizer
que ele tinha parado para ouvir a estória do andarilho, no entanto, poderia se
dizer ainda que ele houvesse parado para confirmar a estória que o homenzinho
narrava e ele podia ver que o menino com quem sempre conversava tinha um brilho
nos olhos e que aquela era uma das suas últimas visões por ali.
Bento nunca tinha atravessado a pinguela do Sanharó, mas ele via, passo
a passo, na estória do Leonel, tudo aquilo que, em algum momento de sua vida,
haveria de passar. Sentia no peito todo o sofrimento antecipado e, pelas
entonações roucas da voz do andarilho, via todos os percalços que teria de
enfrentar; ele sentia a fala do Leonel, que era pausada e tão correta como ele nunca
tinha visto em sua vida e que, após um grande pigarreio para limpar a garganta,
sentenciou:
“O destino é o pai das coisas deste mundo. Esta chuva que não para é um
prenúncio do destino. Esta minha vinda até aqui é uma trama do destino, ele
existe de fato, e é forte, bastante forte para nos guiar, mas ele não é o único
e nem o maior, existe uma força maior que comanda todos os nossos passos, todos
os nossos pensamentos, e o destino, este empregado honesto e muito esforçado,
seria o seu principal representante. Pois agora apenas alguns acreditam naquilo
que digo, mas o tempo é amigo do destino e a história há de se construir por
suas próprias pernas; por isso, tenham que sou um simples mensageiro da poesia
da vida e venho, única e exclusivamente, para lhes contar uma história triste,
e emocionante, daquelas que começam sem ter um sentido concreto e terminam como
se fossem um foguete em desgoverno, ou, talvez, rápido e brilhante como o são
os raios, sem, apenas, ter em seu encalço a grande trovoada do sobreaviso.
Antes de começar a narrativa em si, eu confesso que sou um grande admirador das
prosas ditas por nossos ancestrais, e, como que seguindo seus mais recônditos e
simplórios ensinamentos, que deveriam ser exemplos para os nossos, já afamados
prosadores; confesso, ainda, que tenho aqui distorcido alguns detalhes, fatos
ou informações – coisas irrelevantes para o fim da história - para que alguns
de vocês não me queiram levar assim tão a sério, pois, creio em meu peito, que
aquele a quem me dirijo já conhece o seu futuro e o resto são apenas alegorias
e pequenos desencontros. Façam o grande favor de ouvir-me com esmerada atenção e,
depois, como é de praxe entre os seres mais democráticos, tirem, vocês mesmos,
as suas próprias conclusões, pois fio na sabedoria que cada qual carrega no seu
âmago, e entendam o que lhes for mais fácil e de maior segurança...”.
E
Leonel continuou a sua história, entremeando ares de suspense e previsão: “Pois
que me perdoem se os confundo, mas esta história aconteceu num futuro distante,
e era uma Segunda-feira quente, talvez num mês de agosto ou setembro; fazia
vinte anos que Luís estava preso. Aquele seria o dia da sua libertação, mas nem
mesmo tão grande acontecimento seria capaz de tirá-lo da agonia em que se
encontrava. De fato, a cela em que estivera por todos aqueles anos era bastante
pequena e muito pouco iluminada; num canto escuro, uma minúscula cama de
concreto com um pequeno colchonete velho e sobre ele um travesseiro branco, já
bastante encardido, e um cobertor xadrez, repleto de rasgões e pontas
desfiadas; num outro lado da cela, havia um pequeno orifício na parede, por
onde saía a água fria com a qual se banhava todos os dias, e, numa terceira
extremidade, recanto onde existia uma pequena janela com grades, de onde se
podia ter como paisagem os fundos da cadeia, uma visão nem um pouco prazerosa
para quem fazia vinte anos que se encontrava recluso naquele lugar”.
“Ele
tinha um aspecto bastante tristonho e o seu semblante, como não poderia deixar
de ser, era bastante pesado para um homem de certa idade. Talvez tivesse ainda
uns trinta e poucos anos de idade, era pálido como se fosse um mocinho das
velhas histórias Românticas; alguma beleza, mesmo que cheia de rudeza, ainda
permanecia em sua face enrugada, mas o tempo não fora forte o bastante para
manter toda a plenitude de eras passadas e, como se fosse castigo do destino, a
vida havia passado rápido de mais para ele. Os cabelos já lhe eram muito ralos
e possuíam uma cor quase branca, e era um branco quase ao tom de encardido, era
como se o tempo tivesse começado um serviço e o deixado sem um término; seus
olhos eram azuis, mas não tinham mais a vivacidade de outros tempos e neles já
não se podia ver o futuro brilhante e paradisíaco com o qual tanto havia sonhado
em sua juventude; seu corpo se havia encurvado para frente, como se o tronco
quisesse chegar ao destino antes que as pernas pudessem alcançá-lo. Digo
novamente que ele não era velho, mas o seu espírito o fez de tal maneira, que
já se pensava que o fosse; era um homem triste, e esse sentimento o derrubara
algum dia e não queria mais deixá-lo levantar-se; era como se fosse um homem forte,
daqueles troncudos e ignorantes, que derrubam seu oponente (aquele corpo)
colocando todo o seu peso sobre a vítima, tornando-o incapaz de reagir. Não
obstante, reafirmo que ele não era apenas uma vítima da prisão dos homens, mas
a sua consciência era o seu juiz, e fora ela que o havia condenado, a sua
consciência o prendera, e ela tinha um nome: Ismália Morena, e tinha a voz tão
doce como seu corpo bonito”.
Leonel
parecia viajar naquela narrativa e, sem dar tempo para qualquer pergunta,
continuava: “Já eram quase nove horas da manhã, completava vinte anos de reclusão,
e às dez horas ganharia a sua liberdade. Um sentimento dúbio tomava conta do
seu peito e ele não sabia qual seria o seu verdadeiro sentimento, afinal,
queria reconquistar tudo aquilo que havia perdido, mas achava-se um criminoso e
tinha medo que os outros também o vissem assim. Passara todo aquele tempo sozinho,
nenhuma visita, nenhuma vivalma para vê-lo; desde que deixara a roça em que vivia
nunca mais pudera rever os pais e sabia que nunca mais tornaria a vê-los; o destino,
aquele que lhes havia dito, sempre quis que desta forma acontecesse , havia
tramado toda a sua tessitura e já tinha em mãos todo o destino do infeliz. Eram
muitos os amigos que tinha, mas nenhum nunca o tinha visitado naquele lugar,
quando cometera aquele crime pareceu que tudo ao seu redor tinha chegado ao fim
, tentava não se preocupar com aquilo, não que lhe faltassem bons sentimentos,
sentia saudades da família e dos amigos, mas nunca os tivera como se fossem
eternos , sabia das suas limitações para com o mundo e sempre que possível
tentara ver as coisas como de fato elas devem ser, acostumou-se a estar sozinho
naquele lugar e se entretinha em remoer as suas antigas dores de amor. E eram
estas o seu maior sofrimento; de fato, o coração era o que mais lhe fazia
sofrer, Ismália nunca o havia visitado. As lembranças lhe eram amargas, mas ele
nunca havia tentado esquecê-las: era início de noite quando os homens o prenderam,
algemaram-no toscamente, de forma que os anéis cortavam-lhe os pulsos, sentia o
suor correndo pelo seu rosto e embebia, brutalmente, toda a dor e o cansaço que
tudo aquilo lhe causara, sentia-se envergonhado e não tinha coragem alguma de
encarar a sua amada; abaixou a cabeça, como que se não tivesse mais força
alguma para lutar, e deixou que o levassem aos empurrões, gritos e sopapos. Era
uma noite fria, e uma garoa caía sobre sua cabeça, ele estava nervoso com a
visão que a pouco tivera e não era capaz de responder por suas próprias ações;
havia se enchido de uma raiva estranha, como se algum demônio o tivesse
possuído e, depois da verdadeira revelação dos fatos, sentia-se envergonhado e
tinha vontade de morrer. Ele já estava entrando na viatura quando a curiosidade
fê-lo virar-se; olhou rapidamente, virando o rosto de forma brusca, e a viu,
com os olhos avermelhados pelo choro convulsivo, sendo amparada pelos vizinhos
que vieram socorrê-la; tentou pedir perdão, mas sentiu-se um pecador e chegou à
conclusão de que de nada adiantaria fazê-lo; ele resignou-se ao seu sofrimento
e deixou que o jogassem para dentro do carro”.
“Ismália
nunca o havia visitado na cadeia, no entanto, há muito tempo ele a havia
perdoado pela omissão, ou melhor, jogava sobre si próprio toda a responsabilidade
pelo acontecido, mas convencia-se de que, no dia em que saísse daquele inferno,
haveria de procurá-la e pedir o seu perdão. Sabia da sua vontade, mas não
conhecia mais a mulher a quem sempre amara e que, de fato, era a sua vida;
imploraria seu perdão, mas, como deveria ser, aceitaria passivo todo o seu
rancor, pois estava convicto de que nunca deveria ter praticado aquela ação tão
irracional, uma tremenda brutalidade; enfim, coisa de um mero idiota.
Lembrava-se fortemente daquele dia e os acontecimentos vinham como flashes em
sua mente, sem que ele pudesse controlar as suas ações. Os gritos de Ismália...
O tiro... A roupa rasgada... O corpo caído, estirado ao chão, e os sangues se misturando...
Ela chorando... E, depois da verdadeira história esclarecida, aquelas duas
prisões: a do homem e da sua consciência. Poderia ter fugido se quisesse e,
naquele momento a sua vida poderia ter outros fatos para narrar; no entanto,
achou-se indigno daquela chance; poderia se esconder dos homens, mas não da sua
consciência, aquele sentimento seria a sua grande prisão e, mesmo que fugisse,
ele o acompanharia pelo resto da sua vida. Sentou-se, então, numa velha cadeira,
toda tecida de palha e, enquanto fumava um cigarro, esperou com o coração aos
pulos, que o viessem prender”.
“Faltavam
vinte minutos para as dez horas da manhã, e uma aflição grandiosa tomava todo o
seu coração, sentia-o acelerado e as pernas trêmulas; o suor descia lentamente,
queimando a sua pele, e ele podia sentir, fortemente, que uma fraqueza intensa
apossava de si. Durante todas as noites, em todos aqueles vinte anos, sonhara
com Ismália, aquela moça pequena e de olhar dengoso, com quem um dia pensara em
se casar e construir uma bela família, aquela em quem sempre pôde confiar e há
quem um dia, possuído de grande idiotice, traiu a confiança por força de um
ciúme doentio. Sonhava sonhos bons em que se casavam jurando um amor feliz e
duradouro; outroras, estavam num grande campo repleto de gramas verdes, muitas
flores de várias cores e grandes borboletas de colorações verde- amarelo- azul
pousavam nos cabelos de Ismália, mas os sonhos eram entrecortados pelos flashes
daquela estúpida noite e Luís acordava suado, às vezes querendo dar um fim à
sua vida, outras, menos tensas, chorando com saudade da felicidade que um dia
tinha jogado junto àquele sangue que marcou toda a linha do seu destino.
Sentia-se desanimado e queria apodrecer naquela cela; sentia-se fraco e tinha
um grande temor de enfrentar o mundo, tinha medo de encontrar tudo aquilo de
que um dia abrira mão; eram intermináveis vinte anos sem ver o mundo , as
pessoas, sem ter contato com outras vidas libertas e, agora, se confundia: não
sabia mais se era um homem enjaulado ou se um animal em extinção”.
“O
corredor parecia cada vez mais longo. Já eram dez horas da manhã e, com passos
lentos e receosos, ele seguia rumo à luz que, de pequena e distante, ia se
avolumando a cada passo que ele andava, e, a cada instante se tornavam mais
fortes e pungentes as lembranças de Ismália. Havia vinte anos que Luís não via
o movimento das ruas e nenhum outro ser vivo além dos guardas e os outros
presos da cadeia, e as únicas notícias do lado de fora só chegavam de vez em quando,
quando um novo preso chegava para lhe fazer companhia. A luz foi ficando mais
forte, até que, com o coração aos pulos de emoção, Luís atravessou a grande
porta que dava para a liberdade, e, de repente, um sentimento estranho tomou
conta daquele homem que, primeiro, se ajoelhou no chão, em meio às pessoas que passavam,
debaixo do sol quente da quase-hora do almoço, e começou a beijá-lo, enquanto
as lágrimas encharcavam o seu rosto avermelhado, era um misto de alegria e
tristeza num único semblante”.
Parabéns!!
ResponderExcluirMuito bom !
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