quinta-feira, 20 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 10)

      Devo concordar com o caro leitor. Pois é bem verdade que já passamos de um ponto bem avançado deste livro e, é verdade também, ainda não temos nenhuma história por si mesma definida. Entenda-se, e há de perdoar, que nesta vida ora se peca por muita pressa em querer andar mais rápido que as pernas possam permitir, outras vezes se peca por entreter-se em superfluosidades ou embromações, divagações sem eira nem beira. Pois vamos devagar, mas que não erremos o passo, não deixemos que o bonde nos passe, nem percamos de vida os objetivos que almejamos; vamos de acordo com os acordes da orquestra, o vagar do sertanejo.

      O Grande Machado de Assis haveria de dizer em tais circunstâncias: “Deixemos, pois, de tanta pressa e delongas e sigamos o meu pensamento, caro leitor.” Mas, confesso que o pensamento é vago e, ademais, a história não permite que a construamos; antes, é ela que se constrói por si mesma, com sua forma, em cada momento e em cada situação. Observe que não são os poetas quem faz as sensações que se dão de expressar, mas são elas que se aninham no mais profundo recanto dos seus corações. Devaneio. Não existe poesia no sertão, existem apenas dor, ilusão, loucura, sertões.

      É visto que este capítulo não pretencia chegar à lugar algum, haja vista que, nas devidas proporções, não tem saído de lugar algum, mas pretende falar das crianças, almas puras e cheias de graça, anjos alheios aos problemas e complicações que são exclusividades das desventuras adultas.

     Diz-se que, quando se é criança, ainda muito em pequena, o anjo da guarda, vez por outra, dá nas contas de aparecer, e traz mensagens e conversa com os mais ingênuo, ensinando-os a caminharem pelos caminhos menos árduos e tortuosos. Depois que cresce, o homem suja-se com as imundices do mundo e esquece o velho amigo, e esquece o quanto eram boas as inocências dos tempos de criança. Talvez tudo isso não passem de lendas e crendices, coisas de religiosidade excessiva, mas era certo, todos sabiam que Bento conversava com alguém e foi José quem primeiro soube que era com o seu anjo da guarda, e depois dele veio Madalena, e depois vieram os outros meninos. A partir daquele dia ele não andava mais sozinho, sempre existia um menino de prontidão, à espera de que o garoto conversasse com o seu anjo, e, ele, Bento, continuava calado e não olhava nos olhos dos outros e não lhes dizia nada que lhes fizesse alguma lembrança de anjo ou coisa parecida.

      Era noite alta no céu e chovia uma água forte, e Bento, o menino que conversava com o anjo da guarda dele, sonhou, e, neste sonho, ele viu que tinha um homem que chegava de um lugar diferente e que ele não conhecia, nem o lugar nem o homem; um homem sujo que falava diferente, que falava como as gentes da cidade e contava uma história estranha só para ele ouvir direito; e o coração de Bento batia acelerado no peito, um grande calafrio tomava conta do seu corpo e ele, então, sabia que aquela história era a sua verdadeira e única história, que ele tinha de ir junto do homem para nunca mais voltar. Seu corpo tremia e o suor tomava conta de todo ele debaixo do cobertor.

      - Bento, acorda. Cê tá passando mal?

     O menino acordou com os olhos esbugalhados e a respiração ofegante, olhou fundo nos olhos de José, apertou a sua mão e disse:

     - Zé; eu tenho medo, sempre sonho esse sonho e sei que ele tem de acontecer, eu sei, mas tenho medo!


      Bento não gostava de chorar, mas sempre chorava e, naquela noite, chorou nos braços do amigo e contou toda a sua história para ele, que não disse nada, mas sabia que tudo aquilo era a mais pura verdade.

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